Conversa Constitucional

As rosas são eternas

Cartola disse que "as rosas não falam". Falam pouco, é verdade, mas fazem muito, e seus feitos têm, mesmo nas mais graves circunstâncias de uma história repleta de armadilhas, marcado permanentemente tudo por onde elas passam. As rosas são eternas.

6/2/2023

Elas encantaram o grande William Shakespeare, que lembrou a Romeu do seu perfume; fizeram Umberto Eco com o seu nome batizar sua obra mais conhecida; e cobriram de sensibilidade as reflexões do Pequeno Príncipe, pensadas por Antoine de Saint-Exupéry. Quando Louis Armstrong sentiu a mão de Deus inspirá-lo a escrever o milagre “Que mundo maravilhoso” (What a Wonderful World), lá estavam as árvores verdes, os céus azuis, as nuvens brancas, os brilhantes dias abençoados, as escuras noites sagradas e todas as cores do arco-íris. Mas que mundo maravilhoso seria esse, sem elas? Corrigindo a grave falha, Armstrong tratou de complementar o verso: "red roses too".     

Não parece ser apenas a beleza ou o perfume da planta, tampouco a sonoridade do nome, muito menos sua mera cor ou forma, há algo maior, uma coisa de força e mistério que anima, no espírito humano, tamanho carinho pelas rosas.

Quando uma mulher, judia, feminista, filósofa e amante da luta política nasceu na Polônia, em 1871, os astros se alinharam para que a ela fosse dado esse nome: Rosa.

Nos Estados Unidos, em 1955, o desmantelamento da odiosa segregação racial ganhou impulso com um gesto simples, mas poderoso, vindo de uma trabalhadora negra do Alabama que não aceitou mais ceder seu assento no ônibus sempre que um branco aparecia. O seu nome? Rosa.

Elas são assim, navegantes do tempo, enviadas a muitos lugares, apresentadas sob corpos distintos, alimentadas pelas mesmas causas. Elas se espalham com a ajuda do vento da primavera, semeando os campos nos quais, cumprindo os seus destinos, costumam florescer.

E não apenas os campos se completam com as rosas, como também as instituições. Na Coreia do Sul, o emblema oficial da Corte Constitucional é a Rosa de Saron, símbolo nacional presente no hino do país e designador da eternidade. No Brasil, para a nossa sorte, também há rosas entre nós e elas são muitas.

Dia 8 de janeiro de 2023, o prédio do Supremo Tribunal Federal foi destruído pelo terror. Dias depois, diante dos governadores, de ministros de Estado e do presidente da República, a presidente da Suprema Corte prometeu que dia 1º de fevereiro o Tribunal abriria o Ano Judiciário.

Ao final do encontro, todas as autoridades saíram juntas, de braços dados, como caules entremeados, caminhando pela Praça dos Três Poderes, do Palácio do Planalto até a sede do Supremo. O trajeto fez lembrar a Passagem do Knesset, em Jerusalém, percurso que liga a Suprema Corte de Israel ao Parlamento, cruzando o lindo bosque chamado Jardim das Rosas.  

A promessa foi cumprida. Dia 1º de fevereiro, o Ano Judiciário foi aberto. Presidindo a sessão, estava ela: Rosa. Nesse que é o seu último ano no STF, o gesto dignifica todas as mulheres que vieram antes e deixa espalhados por um solo fértil botões de inspiração que serão colhidos pelas muitas outras que estão por vir, imortalizando uma mensagem absolutamente necessária, que diz: sejam corajosas!

Rosa Weber, presidente do STF(Imagem: Fellipe Sampaio/SCO/STF)

Os portugueses, em 1974, derrotaram o fascismo colocando cravos em fuzis. Em 2023, para colocar o terror em seu devido lugar pelo o que fizeram contra o STF, não dispúnhamos de cravos, mas tínhamos Rosa. Por seu intermédio, dissemos: no jardim da nossa democracia, o fascismo não se cria.

Tendo vencido o terror, e apesar de ter sido inteiramente restaurada, a sede do Supremo deixou à vista de todos, para que se preserve a memória dos episódios, alguns machucados gravados em sua alma institucional.

Rui Barbosa teve seu rosto ferido, e, mesmo marcado, seguirá lá. O espelho que compunha o Salão Nobre foi destruído e seus estilhaços serão exibidos para sempre. É possível ver as fotos da Galeria de Presidentes que foram arrancadas e rasgadas. Um exemplar queimado da Constituição de 1988 integra a memória dessa tragédia. O STF agora se parece mais com o povo brasileiro: tem marcas em sua pele, cicatrizes em seu corpo, traumas a serem tratados, feridas a serem curadas, mas, apesar de todos os golpes, está de pé, pronto para seguir adiante, sem desistir.

Em seu discurso na abertura do Ano Judiciário, perante as mais altas autoridades do país, a presidente do Supremo Tribunal Federal falou de "tempos verdadeiramente perturbadores de maniqueísmos e deformações". Citou, na fala, Carlos Drummond de Andrade. Foi uma feliz lembrança. A mais madura obra do poeta, publicada em 1945, foi dedicada precisamente ao combate a maniqueísmos e deformações. A ela Drummond deu um belo nome: "A Rosa do Povo". Como têm sido fortes, essas rosas.

Cartola disse que "as rosas não falam". Falam pouco, é verdade, mas fazem muito, e seus feitos têm, mesmo nas mais graves circunstâncias de uma história repleta de armadilhas, marcado permanentemente tudo por onde elas passam. As rosas são eternas.

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Colunista

Saul Tourinho Leal é doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP, tendo ganhado, em 2015, a bolsa de pós-doutorado Vice-Chancellor Fellowship, da Universidade de Pretória, na África do Sul. Foi assessor estrangeiro da Corte Constitucional sul-africana, em 2016, e também da vice-presidência da Suprema Corte de Israel, em 2019. Sua tese de doutorado, "Direito à felicidade", tem sido utilizada pelo STF em casos que reafirmam direitos fundamentais. É advogado em Brasília.