Conversa Constitucional

Auditores fiscais municipais e subteto remuneratório previsto em Constituições locais

Auditores fiscais municipais e subteto remuneratório previsto em Constituições locais.

17/8/2021

Está submetida a julgamento virtual iniciado em 13/08/2021, a ação direta de inconstitucionalidade nº 6811, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República, sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes. 

A ação pede a declaração de inconstitucionalidade da expressão "e municípios", constante do art. 97, § 6º, da Constituição de Pernambuco, acrescido pelo art. 1º da EC nº 35/2013, que fixa subteto remuneratório único para os servidores públicos estaduais e municipais.1 O dispositivo, na referida redação, teria afrontado os artigos 18, caput, 29, V (autonomia dos municípios para dispor sobre a remuneração de seus agentes públicos), e 37, XI e § 12 (subsídio do prefeito como subteto remuneratório único em âmbito municipal), da Constituição Federal.

O ministro Alexandre de Moraes, relator, aplicou ao caso as razões de decidir da ADI-MC nº 6221, ajuizada em face da EC nº 72/2018, que deu nova redação ao §2º do art. 39 da Constituição do Pará. No caso, a maioria concedeu parcialmente a cautelar, suspendendo a eficácia da expressão "e dos Municípios", constante do art. 39, § 2º, da Constituição do Pará, na redação dada pela EC nº 72/20182, afirmando-se que o teto remuneratório aplicável aos servidores municipais, excetuados os vereadores, é o subsídio do prefeito municipal.

Vale rememorar o que escreveu, em seu voto, na anterior ADI nº 6221, o ministro Edson Fachin: "a própria Constituição da República expressamente estendeu aos Estados a possibilidade de estabelecer o subteto aos municípios do seu território. Essa previsão deriva da utilização no art. 37, §12, da expressão ‘no seu âmbito’, que, do contrário, seria redundante, e pela expressa exceção aos vereadores, que, do contrário, seria, senão paradoxal, inócua".

Para o ministro Edson Fachin, "desvincula-se, assim, também o subsídio dos servidores municipais ao subsídio do prefeito (na forma do art. 37, XI), o qual naturalmente depende de influxos políticos, impondo-se, ainda, certa isonomia regional".

O ministro Edson Fachin conclui: "se previu expressamente a exceção é porque a autorização abrange os demais servidores municipais". Logo, "a fixação do teto – e do subteto, portanto – não implica aumento de despesa, uma vez que a lei que fixa a remuneração persiste sendo de iniciativa do chefe do Poder". A exegese adequada reclamaria a desvinculação "do teto remuneratório aos subsídios de agentes políticos - governadores e prefeitos -, mitigando a permissividade advinda dessa vinculação".

Todavia, para o ministro Alexandre de Morais, que liderou a maioria formada no caso, “a faculdade conferida aos estados para a regulação do teto aplicável a seus servidores não permite que a regulamentação editada com fundamento nesse permissivo venha a inovar no tratamento do teto dos servidores municipais”. Isso porque o art. 37, XI, da Constituição "já estabelece um teto único para os servidores municipais, não havendo motivo para se cogitar da utilização do art. 37, § 12, para fixação de teto único diverso, pois essa previsão é direcionada apenas para servidores estaduais, esfera federativa na qual existem as alternativas de fixação de teto por poder ou de forma única". Logo, "o inciso XI define o teto único dos servidores municipais (subsídio de prefeito); e o § 12 excepciona desse teto os vereadores, sem permitir que os demais servidores municipais sejam submetidos a teto remuneratório diverso". Ficaram vencidos os ministros Edson Fachin, Cármen Lúcia, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Marco Aurélio.

O STF vem construindo, cautelosamente, algumas exceções constitucionalmente aceitáveis. Quando esse STF apreciou o pedido cautelar na ADI nº 3854 (DJe 29/06/2007), o douto relator, ministro Cezar Peluso, anotou: “seria distinção arbitrária, portanto em descompasso com o princípio da igualdade, estabelecer limites remuneratórios diferenciados para os membros das carreiras da magistratura federal e estadual, ante o caráter nacional do Poder Judiciário”. (DJe 29/06/2007),

Na oportunidade, o ministro Ricardo Lewandowski enfatizou o “caráter unitário e nacional da magistratura, o qual se mostra com muita clareza na medida em que ela está submetida a um regime único, definido nos arts. 93 a 96 da Constituição e, mais ainda, por ter ela uma lei orgânica nacional única”.

O STF deu intepretação conforme ao inciso XI e ao §12 do art. 37 da CF, no sentido de desconsiderar, para fins de fixação de teto da magistratura, a parte final desses dispositivos, que vinculavam o teto do Desembargador do TJ a 90,25% do subsídio do Ministro do STF.3

Posteriormente, no Tema nº 510, no RE nº 663.696 (Rel. Min. Luiz Fux, DJe 22/08/2019), constou: “2. O teto de remuneração fixado no texto constitucional teve como escopo, no que se refere ao thema decidendum, preservar as funções essenciais à Justiça de qualquer contingência política a que o Chefe do Poder Executivo está sujeito, razão que orientou a aproximação dessas carreiras do teto de remuneração previsto para o Judiciário”.

Para o STF, os Procuradores do Município “devem se submeter, no que concerne ao teto remuneratório, ao subsídio dos desembargadores dos Tribunais de Justiça estaduais, como impõe a parte final do art. 37, XI, da Constituição da República”.

A Suprema Corte anotou que "o texto constitucional não compele os Prefeitos a assegurarem aos Procuradores municipais vencimentos que superem o seu subsídio, porquanto a lei de subsídio dos procuradores é de iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo municipal, ex vi do art. 61, §1º, II, c, da Carta Magna".

Para o ministro Luiz Fux, "atrelar a remuneração dos advogados públicos municipais ao subsídio do Prefeito relega a carreira a um indesejável e iníquo desprestígio quando em cotejo com a advocacia pública dos Estados e da União. E não foi essa a intenção do constituinte ao redigir o art. 37, XI, da CRFB/88".

Consta do RE nº 663.696: "o Prefeito é a autoridade com atribuição para avaliar politicamente, diante do cenário orçamentário e da sua gestão de recursos humanos, a conveniência de permitir que um Procurador do Município receba efetivamente mais do que o Chefe do Executivo municipal". E concluiu: "As premissas da presente conclusão não impõem que os procuradores municipais recebam o mesmo que um Desembargador estadual, e, nem mesmo, que tenham, necessariamente, subsídios superiores aos do Prefeito". Isso porque o Chefe do Executivo municipal está, apenas, autorizado a implementar, no seu respectivo âmbito, a mesma política remuneratória já adotada na esfera estadual, em que os vencimentos dos Procuradores dos Estados têm, como regra, superado o subsídio dos governadores".4

Na ADI nº 6257 (DJe 03/02/2020), ajuizada pelo PSD, questionou-se o art. 1º da EC nº 41/2003, a qual conferiu nova redação ao art. 37, XI, da Constituição Federal. O Partido explicou que, no Estado de São Paulo, a nova redação do aludido art. 37, XI, estava contando com interpretação segundo a qual a sua abrangência incluiria, no subteto que ela fixa, as Universidades Estaduais, fazendo com que os professores ativos e inativos das três universidades sofressem profunda redução de seus proventos.

Na presidência do STF, o ministro Dias Toffoli, decidindo a cautelar, asseverou haver "risco de diminuição da remuneração de professores e pesquisadores das universidades públicas estaduais com a observância do subteto estabelecido pelo art. 37, XI, da CF/88, com a redação conferida pela EC nº 41/2003". E prosseguiu: "os professores que exercem as atividades de ensino e pesquisa nas universidades estaduais devem ser tratados em direito e obrigações de forma isonômica aos docentes vinculados às universidades federais. Essa é a percepção que me leva a entender que a interpretação constitucionalmente adequada do art. 37, XI, da Constituição Federal de 1988 deve contemplar também os docentes e pesquisadores das universidades estaduais".

A conclusão foi a de que é necessário "interpretar o art. 37, XI, da Constituição Federal de 1988 a partir da totalidade dos comandos constitucionais, não sendo possível conferir tratamento discriminatório sem observância do princípio da igualdade".5

Professores, pesquisadores, magistrados estaduais e procuradores municipais são exemplos de servidores públicos ligados a um tipo de atividade que reclama, quanto à valorização, uma leitura nacional, incluindo os parâmetros de teto e subteto remuneratórios, em razão da qualificação que a própria Constituição Federal lhes deu.  

Esse também é o caso dos auditores das administrações tributárias. Segundo o inciso XVIII do art. 37 da Constituição Federal: "a administração fazendária e seus servidores fiscais terão, dentro de suas áreas de competência e jurisdição, precedência sobre os demais setores administrativos, na forma da lei".

O inciso XXII do mesmo art. 37 diz: "as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, atividades essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreiras específicas, terão recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma da lei ou convênio".

Tanto as da União, como as dos Estados, como a do Distrito Federal, como as administrações tributárias dos Municípios são igualmente reputadas, pela Constituição Federal, "atividades essenciais ao funcionamento do Estado". Ao dispor sobre os servidores, a Constituição afirma que se trata de carreiras específicas, que terão "recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada".

Esse prestígio constitucional conferido às administrações tributárias de todos os entes da federação se deve ao fato de que apenas por meio delas se realiza o tão fundamental "dever de pagar tributos", qualificado, pelo STF, quando do julgamento do RE nº 601.314 (DJe 16/09/2016, Tema nº 225), no qual o relator, ministro Edson Fachin, anotou haver um "dever de pagar tributos, constituinte no que se refere à comunidade política, à luz da finalidade precípua da tributação de realizar a igualdade em seu duplo compromisso, a autonomia individual e o autogoverno coletivo".

Ou seja, os fundamentos os quais, no STF, resultaram na compreensão das carreiras dos professores, pesquisadores, magistrados e procuradores municipais, como demandantes de uma leitura exegética própria quanto à parte final do inciso XI do art. 37, está presente na leitura dogmática e teórica feita das administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, é dizer, a ratio decidendi da ADI nº 3854 (magistrados), do RE nº 663.696 (Tema nº 510 – procuradores municipais), da ADI nº 6257 (professores e pesquisadores das universidades) é extensível às carreiras constantes do inciso XXII do art. 37 da Constituição Federal.

É de fundamental importância que a Suprema Corte reconheça a distinção da ADI nº 6811 das razões de decidir da cautelar concedida na ADI nº 6221, vislumbrando, no cargo de auditor fiscal municipal, a natureza de carreira de Estado a contar com maior nível de independência vencimental quanto ao teto remuneratório do chefe do Poder Executivo, sob pena de sofrer graves prejuízos institucionais. Daí a necessidade de interpretação conforme à Constituição para excluí-los da declaração de inconstitucionalidade pleiteada pelo Procurador-Geral da República na ADI nº 6811.

__________

1 Comando impugnado: "Art. 97. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes do Estado e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, além dos relacionados nos arts. 37 e 38 da Constituição da República Federativa do Brasil e dos seguintes: (Redação alterada pelo art. 1º da EC n° 16/99.) (…) § 6º Para efeito do disposto no inciso XI e no § 12 do art. 37 da Constituição da República, fica fixado como limite da remuneração, subsídio, proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, no Estado de Pernambuco e municípios, abrangendo os Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, Ministério Público e Tribunal de Contas do Estado, o subsídio mensal dos desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal dos ministros do Supremo Tribunal Federal, não se aplicando o disposto neste parágrafo aos subsídios dos deputados estaduais e vereadores. (Acrescido pelo art. 1º da EC nº 35/2013)."

2 "Art. 1.º O art. 39, §2.º da Constituição do Estado do Pará, passa a vigorar com a seguinte redação: Art.39. ... §2.º A remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes do Estado e dos Municípios, dos agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aplicável este limite aos Membros do Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos, excluindo-se o disposto neste parágrafo aos subsídios dos Deputados Estaduais e Vereadores."

3 Eis a ementa do julgado: "Remuneração. Limite ou teto remuneratório constitucional. Fixação diferenciada para os membros da magistratura federal e estadual. Inadmissibilidade. Caráter nacional do Poder Judiciário. Distinção arbitrária. Ofensa à regra constitucional da igualdade ou isonomia. Interpretação conforme dada ao art. 37, inc. XI, e § 12, da CF. Aparência de inconstitucionalidade do art. 2º da Resolução nº 13/2006 e do art. 1º, § único, da Resolução nº 14/2006, ambas do Conselho Nacional de Justiça. Ação direta de inconstitucionalidade. Liminar deferida. Voto vencido em parte.” Vale dividir também a ementa do acórdão da ADI nº 4900, cuja redação do acórdão coube ao ministro Luís Roberto Barroso (DJe 20/04/2015): "(...) 1. No que respeita ao subteto dos servidores estaduais, a Constituição estabeleceu a possibilidade de o Estado optar entre: (i) a definição de um subteto por poder, hipótese em que o teto dos servidores da Justiça corresponderá ao subsídio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça (art. 37, XI, CF, na redação da Emenda Constitucional 41/2003); e (ii) a definição de um subteto único, correspondente ao subsídio mensal dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, para todo e qualquer servidor de qualquer poder, ficando de fora desse subteto apenas o subsídio dos Deputados (art. 37, § 12, CF, conforme redação da Emenda Constitucional 47/2005). 2. Inconstitucionalidade da desvinculação entre o subteto dos servidores da Justiça e o subsídio mensal dos Desembargadores do Tribunal de Justiça. Violação ao art. 37, XI e § 12, CF. 3. Incompatibilidade entre a opção pela definição de um subteto único, nos termos do art. Art. 37, § 12, CF, e definição de "subteto do subteto", em valor diferenciado e menor, para os servidores do Judiciário. Tratamento injustificadamente mais gravoso para esses servidores. Violação à isonomia. Ação direta a que se julga procedente."

4 A tese do Tema nº 510 ficou assim fixada: "A expressão 'Procuradores', contida na parte final do inciso XI do art. 37 da Constituição da República, compreende os Procuradores Municipais, uma vez que estes se inserem nas funções essenciais à Justiça, estando, portanto, submetidos ao teto de noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal".

5 O ministro Dias Toffoli deferiu a cautelar para dar interpretação conforme ao inciso XI do art. 37, da Constituição Federal, no tópico em que a norma estabelece subteto, para suspender qualquer interpretação e aplicação do subteto aos professores e pesquisadores das universidades estaduais, prevalecendo, assim, como teto único das universidades no país, os subsídios dos ministros do Supremo Tribunal Federal.

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Colunista

Saul Tourinho Leal é doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP, tendo ganhado, em 2015, a bolsa de pós-doutorado Vice-Chancellor Fellowship, da Universidade de Pretória, na África do Sul. Foi assessor estrangeiro da Corte Constitucional sul-africana, em 2016, e também da vice-presidência da Suprema Corte de Israel, em 2019. Sua tese de doutorado, "Direito à felicidade", tem sido utilizada pelo STF em casos que reafirmam direitos fundamentais. É advogado em Brasília.