O Supremo Tribunal Federal pautou, para quinta-feira, 25/2, em seu plenário, o recurso extraordinário nº 1.101.937, que veicula o Tema nº 1.075 da repercussão geral, de relatoria do ministro Alexandre de Moraes, qual seja, a discussão sobre a "constitucionalidade do art. 16 da lei 7.347/85, segundo o qual a sentença na ação civil pública fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator".
O assunto é mais do que relevante. Em sua redação original, o art. 16 da lei 7.347/85 – Lei da Ação Civil Pública - determinava, de forma genérica, que a sentença civil proferida em ação civil pública operaria eficácia erga omnes. Isso, sem explicitar os limites territoriais do provimento jurisdicional prolatado: "Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, exceto se a ação for julgada improcedente por deficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova."
O art. 2º da Medida Provisória nº 1570-5/97, convertida na lei 9.494/97, alterou a redação do dispositivo e explicitou que os efeitos da coisa julgada em sede de ação civil pública é erga omnes, mas nos limites territoriais do órgão prolator da sentença. Eis a redação: "Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova."
No STF, o ministro Marco Aurélio anotou, ao julgar a cautelar pleiteada na ação direta de inconstitucionalidade nº 1576, que a lei 9.494/97, ao promover a emenda aditiva ao art. 16 da lei 7.347/85, apenas explicitou a eficácia erga omnes da sentença proferida em sede de ação civil pública aos limites territoriais do órgão prolator da sentença. Eis trecho do acórdão nesse particular:
"A alteração do artigo 16 correu à conta da necessidade de explicitar-se a eficácia erga omnes da sentença proferida na ação civil pública. Entendo que o artigo 16 da lei 7.347, de 24 de julho de 1985, harmônico com o sistema Judiciário pátrio, jungia, mesmo na redação primitiva, a coisa julgada erga omnes da sentença civil à área de atuação do órgão que viesse a prolatá-la. A alusão à eficácia erga omnes sempre esteve ligada à ultrapassagem dos limites subjetivos da ação, tendo em conta até mesmo o interesse em jogo – difuso ou coletivo – não alcançando, portanto, situações concretas, quer sob o ângulo objetivo, quer subjetivo, notadas além das fronteiras fixadoras do juízo. Por isso, tenho a mudança de redação como pedagógica, a revelar o surgimento de efeitos erga omnes na área de atuação do Juízo e, portanto, o respeito à competência geográfica delimitada pelas leis de regência. Isso não implica esvaziamento da ação civil pública nem, tampouco, ingerência indevida do Poder Executivo no Judiciário. Indefiro a liminar".
Em 2006, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial nº 293.407 e seguindo posição de 2001 no Recurso Especial nº 253.589, concluiu não haver como, no âmbito do "microssistema processual das tutelas coletivas", estender-se a eficácia da sentença em ação civil pública para além dos limites territoriais em que prolatada.
De fato, não se coaduna com o juiz natural que um provimento jurisdicional emanado em uma determinada Circunscrição, Comarca ou Seção Judiciária irradie seus efeitos para além do limite territorial em que exarado. No REsp nº 293.407, por exemplo, o ministro Ruy Rosado registrou: "assim como não cabe centralizar em uma Vara de Brasília a competência para todas as ações civis públicas do país, pelos evidentes inconvenientes que disso decorreriam, também inadmissível que sentença com trânsito em julgado de pequena comarca do interior desse imenso Brasil possa produzir efeito sobre todo o território nacional".
Com algumas oscilações, o STJ passou a sinalizar, em meados de 20091, que alteraria seu entendimento para afastar a limitação territorial imposta pela norma contida no art. 16 da Lei nº 7.347/85, prognóstico que veio se confirmar anos mais tarde com o recurso especial repetitivo n.º 1.243.887, de relatoria do ministro Luís Felipe Salomão.
Ocorre que, quanto ao art. 16 da Lei nº 7.347/85, não se afigura constitucionalmente adequado ou funcional em termos de organização do Sistema de Justiça, que um magistrado de 1º grau de jurisdição, cujas competências são restritas ao âmbito de seu território ou mesmo um Tribunal, limitado pelas fronteiras com outras Regiões ou Estados, exerça sua jurisdição nacionalmente impondo obrigações a realidades absolutamente distintas entre si.
Vale recordar o que anotou o ministro Néri da Silveira, na citada ADI nº 1576: "sempre entendi essa cláusula da eficácia erga omnes nos limites da competência do juiz. Creio que há um princípio maior concernente à definição da competência do juiz. O juiz só pode oficiar sobre matéria a respeito da qual é competente e dentro dos limites da sua jurisdição".
Nessa mesma ação, registrou o ministro Nelson Jobim: "o que está dito é que a eficácia erga omnes da decisão é contra todos dentro do universo de competência territorial do juiz prolator. É evidente, senão estaríamos estendendo a competência de um juiz, em termos concretos, reais, fora do seu território de competência, o que é uma inversão total do critério da competência e da territorialidade".
Logo, só há decisão, porque há um Juízo prévio fixado em um limite territorial. Seus provimentos só produzem efeitos onde ele possui jurisdição. Se assim não fosse, ter-se-ia, como já se têm, uma ‘autofagia federativa’, ocasionando-se prejuízos não apenas ao cidadão, mas aos mercados regulados que se desenvolvem em território nacional.
E é sobre esses mercados regulados que os efeitos são mais perversos.
Consoante o art. 22, IV da Constituição, compete privativamente à União legislar sobre telecomunicações. O art. 21, XI entrega à União a competência para “explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais”.
Realizando esses comandos, veio a lei 9.472/97 - Lei Geral de Telecomunicações -, dispondo "sobre a criação dos serviços de telecomunicações, a criação e funcionamento de um órgão regulador e outros aspectos institucionais", qual seja, a Anatel.
Ocorre que, não raramente, provimentos jurisdicionais, a pretexto de corrigirem distorções em benefício de uma suposta tutela de direitos, acabam por desconsiderar a complexa regulação técnica feita pela Anatel e por todos os demais setores essenciais regulados. Cria-se verdadeiro dano reverso, com quebra de isonomia entre usuários distintos.
Essa substituição da discricionariedade técnica do administrador por uma decisão judicial que, por sua 'capacidade institucional', não leva em conta fatores sistêmicos que fazem parte de uma escolha regulatória, se revela ainda mais gravoso com a expansão dos efeitos de uma ação civil pública para além dos limites territoriais do órgão prolator, pois cria-se dificuldade de (i) precificação de serviços públicos prestados e de estabelecimento de uma adequada contraprestação pecuniária que remunere a prestação do serviço de telecomunicações; (ii) de cumprimento de decisões judiciais que criam múltiplos, diversos e contraditórios cenários "regulatórios" para regiões completamente diferentes entre si, ocasionando não apenas danos ao arquétipo regulatório da Anatel, mas desigualdades entre os próprios usuários e consumidores ao se estender indistintamente regras criadas por decisões que refletem a realidade de um local a outro totalmente distinto; e (iii) de se estabelecer um marco normativo-regulatório seguro em razão da necessidade de a todo tempo e ao sabor de decisões contraditórias se adequarem regras que devem ser estáveis.
Sensível a esses aspectos, é de fundamental importância que o Supremo Tribunal Federal, ao deliberar sobre o Tema nº 1.075 da repercussão geral, nessa quinta-feira, fixe a interpretação constitucionalmente aceitável do art. 16 da lei 7.347/85, vedando qualquer exegese que desconsidere a letra do comando para conferir-lhe uma ampliação para além dos limites do órgão prolator do pronunciamento.
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1 REsp nº 399.357/SP.