Em 2009, Barack Obama estava radiante diante do púlpito no Parlamento de Gana, em Acra, capital, quando disse: "A África não precisa de homens fortes. Ela precisa de instituições fortes". A mensagem combatia o desmantelamento de instituições importantes motivado por caprichos políticos de governantes que se enxergavam como estando acima das leis e da Constituição.
Três anos depois, Daron Acemoglu e James A. Robins publicaram Why Nations Fail (Por que as nações fracassam), no qual apontaram que o destino de uma nação depende, basicamente, das instituições pelas quais ela é governada.
A Constituição brasileira de 1988 anteviu isso. O Ministério Público é "instituição permanente" (art. 127), assim como a Defensoria Pública (art. 134). A Advocacia-Geral da União é a "instituição" que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente (art. 131). É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios zelar pela guarda da Constituição, das leis e das "instituições" democráticas e conservar o patrimônio público (art. 23, I). O Título V trata "Da Defesa do Estado e das 'Instituições' Democráticas".
A essas instituições foram conferidas garantias. Para Paulo Bonavides, garantias institucionais são a "proteção que a Constituição confere a algumas instituições, cuja importância reconhece fundamental para a sociedade, bem como a certos direitos fundamentais providos de um componente institucional que os caracteriza". Constituem "proibições dirigidas ao Legislativo para não ultrapassar na organização do instituto aqueles limites extremos, além dos quais o instituto como tal seria aniquilado ou desnaturado"1.
É nesse contexto que surge essa afirmação histórica: "No Direito Privado, o indivíduo pode se comportar com certo 'capricho', embora tal 'capricho' não seja o que deveria ser. Mas, no domínio do Direito Público - Direito Constitucional e Administrativo - o 'capricho' é uma doença terminal"2.
A colocação acima compôs a discussão, em 2003, na Suprema Corte de Israel, no caso "The Movement for Quality Government in Israel v. Attorney-General" (HCJ 7367/97), que levou o Primeiro Ministro Ariel Sharon aos Tribunais. A razão? Uma controvertida escolha para o Ministério da Segurança Pública.
Tzahi Hanebi havia sido o indicado. Em 1982, jovem, ele foi condenado por se envolver numa confusão na universidade. Posteriormente, já figura pública, viu seu nome pululando em três investigações sem que tivesse sido condenado em nenhuma delas.
O Movimento entendia que Hanebi não poderia servir ao Governo, pois apesar de não ter sido condenado, todos os rumores que seu nome despertava estilhaçavam o cristal da confiança pública no Ministério, o que terminava gerando obstruções dos populares. Essas obstruções, somadas a toda a mídia que o indicado atraía e ao burburinho de que novas investigações poderiam surgir atrapalhavam a continuidade do serviço público e pareciam limitar a capacidade do próprio Hanebi executar uma agenda com legitimidade.
O justice Mishael Cheshin, proferindo o seu voto, arrematou: "Aqueles que exercem autoridade em nome do Estado ou de qualquer outra autoridade pública - no nosso caso, o Primeiro-Ministro e o Ministro da Segurança Pública - devem estar conscientes de que suas questões não são suas. Trata-se de questões que dizem respeito a outros e eles são obrigados a conduzirem-se com justiça e integridade, em estrita conformidade com os princípios da administração pública"3. Ficou vencido.
A Suprema Corte de Israel concluiu não haver razão para impedir que Ariel Sharon empossasse Tzahi Hanebi. Vetar a assunção ao posto sem que houvesse taxativa previsão a respeito ou, pelo menos, que o conjunto dos fatos indicasse evidências mais robustas, poderia se tornar um hábito caprichoso de juízes voluntaristas.
No Brasil, sempre que chamado a analisar potencial violação da Constituição em razão da indicação, pelo presidente, de um nome, ou quando demandado a deliberar sobre as consequências de um comportamento desviante dessas autoridades, o STF antecipou que esse tipo de escrutínio judicial é excepcional.
No Mandado de Segurança n. 25.579 (Pleno, DJe 24/8/2007), o ministro Joaquim Barbosa, relator, anotou: "Na qualidade de guarda da Constituição, o STF tem a elevada responsabilidade de decidir acerca da juridicidade da ação dos demais Poderes do Estado. No exercício desse mister, deve a Corte ter sempre em perspectiva a regra de auto-contenção que lhe impede de invadir a esfera reservada à decisão política dos dois outros Poderes, bem como o dever de não se demitir do importantíssimo encargo que a Constituição lhe atribui de garantir o acesso à jurisdição de todos aqueles cujos direitos individuais tenham sido lesados ou se achem ameaçados de lesão".
No caso acima, a Corte definiu que o membro do Congresso que se licencia do mandato para investir-se no cargo de ministro de Estado não perde os laços com o Parlamento (art. 56, I), devendo seguir observando as vedações e incompatibilidades inerentes ao estatuto constitucional do congressista, assim como as exigências ético-jurídicas que a Constituição (art. 55, § 1º) e o que os regimentos internos das casas legislativas estabelecem como elementos caracterizadores do decoro parlamentar4.
Noutra oportunidade, a Corte definiu que "os ministros de Estado, por estarem regidos por normas especiais de responsabilidade (CF, art. 102, I, c; lei 1.079/1950), não se submetem ao modelo de competência previsto no regime comum da Lei de Improbidade Administrativa (lei 8.429/1992)".
O Supremo também precisou definir se a nomeação de um secretário de Estado irmão do governador que o nomeou violaria a posição da Corte contra o nepotismo (Súmula Vinculante nº 13). Julgando a reclamação 6650 MC-AgR (Min. Ellen Gracie, Pleno, DJe 21/11/2008), a Corte afastou a aplicação da citada súmula.
Não custa recordar o Mandado de Segurança n. 34.070 (Min. Gilmar Mendes), que questionou o ato de nomeação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para o cargo de ministro chefe da Casa Civil.
O relator, ministro Gilmar Mendes, registrou: "Nenhum Chefe do Poder Executivo, em qualquer de suas esferas, é dono da condução dos destinos do país; na verdade, ostenta papel de simples mandatário da vontade popular, a qual deve ser seguida em consonância com os princípios constitucionais explícitos e implícitos, entre eles a probidade e a moralidade no trato do interesse público 'lato sensu'".
Esse racional esteve presente na decisão da Suprema Corte de Israel em "Women's Lobby v. The Minister of Labor and Welfare, (HCJ 2671/98)". Ficou registrado: "Ao agir no domínio do direito público, a autoridade investida do poder de nomeação opera na qualidade de administrador público. Assim como um administrador fiduciário não possui nada próprio, também a autoridade que nomeia não possui nada dela. Deve conduzir-se à maneira do administrador: agir com integridade e equidade, considerando apenas fatores relevantes, atuando com razoabilidade, igualdade e sem discriminação"5.
No caso brasileiro, o ministro Gilmar Mendes pontuou: "O princípio da moralidade pauta qualquer ato administrativo, inclusive a nomeação de Ministro de Estado, de maneira a impedir que sejam conspurcados os predicados da honestidade, da probidade e da boa-fé no trato da 'res publica'". Então, arrematou: "o argumento do desvio de finalidade é perfeitamente aplicável para demonstrar a nulidade da nomeação de pessoa criminalmente implicada, quando prepondera a finalidade de conferir-lhe foro privilegiado".
Noutra oportunidade, julgando a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 388, de relatoria do ministro Gilmar Mendes (DJe 1º/8/2016), a Suprema Corte estabeleceu a interpretação de que membros do Ministério Público não podem ocupar cargos públicos fora do âmbito da instituição, salvo o de professor e funções de magistério (art. 128, § 5º, II, "d", da CF). Derrubou-se a resolução 72/2011 do Conselho Nacional do Ministério Público.
Eis a ordem: "Outrossim, determinada a exoneração dos ocupantes de cargos em desconformidade com a interpretação fixada, no prazo de até vinte dias após a publicação da ata deste julgamento". O então Ministro da Justiça caiu.
A exoneração de um Ministro de Estado pelo fato de a sua nomeação violar a Constituição encontra a companhia da Suprema Corte de Israel. No citado “The Movement for Quality Government in Israel v. Attorney-General (2003)”, o justice Eliezer Rivlin, relator, registrou em seu voto-vencedor: "Tanto a decisão do Primeiro-Ministro de nomear uma pessoa e sua decisão de não exonerar um indicado ao seu gabinete estão sujeitas a padrões de razoabilidade, integridade, proporcionalidade, boa-fé e ausência de arbitrariedade ou discriminação"6.
No Brasil, o presidente da República está constitucionalmente vinculado aos princípios constitucionais da Administração Pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37, caput).
Indo além, segundo o art. 78, o presidente e o vice-presidente tomarão posse em sessão do Congresso, prestando o compromisso de "manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil".
Nesse sentido, na Reclamação n. 29.508, de relatoria da ministra Cármen Lúcia (DJe 1º/2/2018), constou: "é bem sabido que não compete ao Poder Judiciário o exame do mérito administrativo em respeito ao Princípio da separação dos Poderes. Este mandamento, no entanto, não é absoluto em seu conteúdo e deverá o juiz agir sempre que a conduta praticada for ilegal, mais grave ainda, inconstitucional, em se tratando de lesão a preceito constitucional autoaplicável".
O raciocínio repete a linha da excepcionalidade. Em 2016, a Suprema Corte de Israel apreciou o caso "Movement for Quality Government in Israel v. Prime Minister" (HCJ 232/16), no qual se questionava a indicação do membro do Knesset – Parlamento israelense –, Rabbi Aryeh Machlouf Deri, para o posto de Ministro do Interior. Deri havia sido condenado por corrupção na década de 1980, dentre outras coisas.
O justice Salim Joubran anotou: "a intervenção deste Tribunal, na discricionariedade das pessoas autorizadas a remover um Ministro ou Vice-Ministro do cargo, deve ser limitada às situações em que a gravidade da infração não pode ser conciliada com a continuidade do serviço público"7.
A verdade é que o poder que chefes do Executivo têm hoje não é nem de longe o que um dia tiveram. Esses governantes cada vez mais sofrem controles variados e não podem usar a caneta que lhe demos para fazer estripulias por aí. Moisés Naím, especialista no tema, chega a ser peremptório: "O poder está em degradação". Para ele, "no século XXI, o poder é mais fácil de obter, mais difícil de utilizar e mais fácil de perder".
Naím explica que os governantes estão cada vez com mais dificuldades de exercer o poder que sonhavam ter. "De Chicago a Milão e de Nova Délhi a Brasília, os chefes das máquinas políticas irão prontamente admitir que têm bem menor capacidade de tomar as decisões unilaterais que seus predecessores davam como certas"8.
Moisés Naím tem razão. São inúmeros os instrumentos de controle. No Brasil, eles decorrem da Constituição e chamam o povo a participar desse tipo de obstrução republicana quando partes legitimadas levam ao Judiciário a discussão sobre temas tais como a qualidade dos nomes apresentados à comunidade, pelo Presidente, para ocupar postos de chefia executando uma agenda de políticas públicas.
Destoa da ideia de estado constitucional supor que o chefe do Poder Executivo é absoluto em suas escolhas. Ele está submetido à Constituição. Entendendo ter havido uma escolha que compromete a confiança pública no governo ou mesmo a capacidade do indicado executar uma agenda, parece natural que alguém levante a mão no meio da multidão e diga: "Talvez devêssemos discutir melhor essa indicação". Isso engrandece o espaço público quanto a um assunto genuinamente republicano.
Indo além, não parece sábio argumentar que as altas autoridades da Administração Pública Federal não se submetem à moralidade administrativa. Basta ler a apresentação do Código da Alta Administração Federal (CCAAF): "A Constituição Federal de 1988 consagrou, no seu artigo 37, o princípio da moralidade como um daqueles a que todos os Poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, devem obedecer no exercício de suas atividades administrativas".
Eis o arremate: "Tendo a Constituição positivado, vale dizer, juridicizado a ética, esta deixou de ser um conjunto de normas de conduta voltadas para cada um em particular, pois no centro das considerações morais da conduta humana está o eu, conforme lição de Hannah Arendt. Passou, assim, a ética a ter status jurídico e interessar diretamente ao Estado, visto que ele está no centro das considerações jurídicas da conduta humana".
Bela apresentação. Foi escrita pelo jurista Américo Lacombe, presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência da República.
Segundo o art. 3º do Código, "no exercício de suas funções, as autoridades públicas deverão pautar-se pelos padrões da ética, sobretudo no que diz respeito à integridade, à moralidade, à clareza de posições e ao decoro, com vistas a motivar o respeito e a confiança do público em geral".
É claro que não se deve vandalizar as indicações do Poder Executivo, mas é preciso constitucionalizá-las. Tanto que o Ministério Público Federal – exercendo as funções institucionais que a Constituição lhe conferiu (art. 129, IX) – recomendou no passado a troca de todos os vice-presidentes da Caixa Econômica Federal, invocando o artigo 34, o princípio republicano, o princípio da impessoalidade da Administração Pública, o art. 173, 'caput' e §1º, II, o artigo 170, IV e o artigo 219, todos da Constituição. Recomendou-se a "melhoria no processo de seleção de altos executivos" e a "troca imediata dos vice-presidentes"9. O chefe do Poder Executivo atendeu a recomendação.
A postura de atuar em harmonia com determinadas recomendações do Ministério Público não é diversa da que se vê em outros países do mundo cuja chaga da corrupção tem gangrenado uma República surrada pela desigualdade. É o caso da África do Sul.
No país, a Suprema Corte de Recursos, apreciando o caso "SABC v DA (393/2015) [2015] ZASCA 156", em outubro de 2015, contando com a Corruption Watch como amicus curiae, definiu que as recomendações da "Public Protector" - equivalente ao nosso Ministério Público – tem a mesma eficácia de uma decisão judicial. Logo, toda e qualquer autoridade tem que cumprir a recomendação. Caso entenda-a injusta, é preciso ir ao Judiciário desconstituí-la, numa corrida cara e exaustiva.
Por isso, a controvérsia judicial brasileira instalada em certas indicações do presidente da República não é mera artilharia inconsequente de uma batalha política de baixa qualidade. É bom para o país discutir, em sua Suprema Corte, questões ligadas ao princípio republicano, à confiança pública no governo, à moralidade administrativa, ao controle dos atos do Executivo e às condições necessárias, numa democracia contemporânea, para se conseguir uma boa-governança.
O século XXI não é o século do Executivo, nem do Legislativo ou do Judiciário. São as instituições os personagens mais influentes do nosso tempo. Isso, para que nunca mais tenhamos nossas vidas inteiramente entregues aos caprichos dos homens. Devem, os destinos de um povo, ser assegurados por meio de suas liberdades e pela virtude de suas instituições. Qualquer presidente da República precisa ter em mente que não há governo fora da Constituição. Simplesmente não há.
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1 Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 537. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 541.
2 Consta do parágrafo 24 (p. 400) do acórdão: "Within the area of private law the individual can behave with a measure of the "capriche", though such 'capriche' is not what it used to be, nor should it be. But in the realm of public law – constitutional and administrative law – caprice is a terminal illness".
3 Consta do parágrafo 24 (p. 400) do acórdão: "Those exercising authority on behalf of the state or any other public authority – in our case, the Prime Minister and the Minister of Public Security – must constantly be aware that their affairs are not their own. They are dealing with matters that concern others and are obligated to conduct themselves with fairness and integrity, in strict compliance with the principles of public administration".
4 O Ministro de Estado, que era parlamentar, havia sido acusado – e constou dos autos – de haver usado de sua influência para levantar fundos junto a bancos "com a finalidade de pagar parlamentares para que, na Câmara dos Deputados, votassem projetos em favor do Governo" (Representação 38/2005).
5 Consta do parágrafo 24 do acórdão: "When acting in the domain of public law, the appointing authority operates in the capacity of a public trustee. Just as a trustee possesses nothing of his own, so too, the appointing authority possesses nothing of its own. It must conduct itself in the manner of the trustee: acting with integrity and fairness, considering only relevant factors, acting with reasonableness, equality, and without discrimination".
6 No parágrafo 17 do acórdão consta: "Therefore, both the Prime Minister’s decision to appoint a person and his decision not to remove one from office are subject to the accepted standards of reasonableness, integrity, proportionality, good faith, and the absence of arbitrariness or discrimination".
7 Consta do parágrafo 28 do voto-vencedor no acórdão: "(...) the boundaries of the Court’s intervention in appointments is limited to those instances in which an appointment might seriously harm the standing of the institutions of government and the public’s confidence in them".
8 Naím, Moisés. O fim do poder: nas salas da diretoria ou nos campos de batalha, em Igrejas ou Estados, por que estar no poder não é mais o que costumava ser?/ Moisés Naím; tradução Luis Reyes Gil. – São Paulo: LeYa, 2013.
9 Recomendação 87/2017, do Ministério Público Federal (Força-Tarefa Greenfield).