Victor Hugo costumava repetir: "Nada é mais forte do que uma ideia cujo tempo chegou". A modernização do Sistema Tributário Nacional é uma ideia cujo tempo chegou. Para entendermos a oportunidade da afirmação, precisamos recorrer, antes, à história constitucional, feita por aqueles que optaram por viver a verdade e percorrer o caminho, lutando por reformas que libertaram os semelhantes do caos no qual viviam.
A trajetória do Direito Tributário liga os extremos de um pêndulo cujas pontas contrapostas trazem os verbos "manter" e 'reformar". Nos Estados Unidos, forças imobilizadoras insistiam em taxar a produção de chá dos colonos ingleses sem que eles tivessem voz no processo. George Washington liderou a Festa do Chá de Boston (1773) para, com um intenso protesto, colocar a pauta tributária na agenda da Coroa. O resultado foi a Independência dos Estados Unidos (1776). A ordem era "reformar".
Não foi diferente na França. A Revolução Francesa (1789), dentre tantas causas, acendeu o seu próprio pavio ao patrocinar uma cruel tributação sobre os mais pobres. Enquanto isso, Versalhes dançava e bebia vinho. Deu no que deu. Cabeças rolaram sem dança nem vinho.
A Derrama (1751) de Minas Gerais inspirou o nascimento de um mártir como Tiradentes. Tudo pelo Quinto. Como as forças muito bem estabelecidas de então trataram o reformista Tiradentes? Todos sabemos do seu fim cruel e até macabro.
Cada geração tem os seus pactos inquebrantáveis. A nossa geração, pelo menos normativamente, imortalizou o respeito pela Constituição de 1988. Esse é o compromisso irrenunciável do nosso tempo. Exatamente por isso, qualquer conversa séria sobre reformas constitucionais deve ter início, claro, na Constituição. Dado o primeiro passo, os seguintes hão de ser animados por um elevado espírito público, por uma sábia visão de Estado e, acima de tudo, por empatia com os que perdem com o modelo atual de tributação no país – e são muitos os que perdem.
Antes de tudo, vale reconhecer que a Constituição de 1988 traz uma teleologia abertamente transformadora. É natural que países como o nosso almejem sair do lamaceiro no qual quase sempre se encontraram. A Constituição da África do Sul, por exemplo, é conhecida como "Constituição Transformadora". A única chance é mudar, pois manter significa preservar um tipo de establishment que muitas vezes se alimenta de uma estrutura estatal exaurida que impede as pessoas de realizarem as suas mais justas aspirações. No Direito e na Vida, ressignificar-se às vezes é a única saída.
Esse compromisso jurídico com a transformação é ínsito a Constituições como a brasileira, que muito mais do que apenas tirar um retrato do que está posto, como sugeriu Ferdinand Lassale, optou por imprimir o que Konrad Hesse denominou de "força normativa" ou "vontade de Constituição", o elemento que impele mudanças para que o próprio compromisso celebrado pela Assembleia Nacional Constituinte permaneça de pé.
Esse ethos por dinamismo está presente no Direito Constitucional-Tributário. O art. 52, XV – fruto da Emenda Constitucional 42/2003 -, confere privativamente ao Senado Federal a competência para "avaliar periodicamente a funcionalidade do Sistema Tributário Nacional, em sua estrutura e seus componentes, e o desempenho das administrações tributárias da União, dos Estados e do Distrito Federal e dos municípios".
Não há, no texto constitucional, palavras vazias, desprovidas de sentido, muito menos proclamações retóricas. Não se trata de uma exortação moral, mas da Lei das leis, aquela norma a partir da qual todas as normas são feitas. Como se viu, o Senado tem o grave dever de avaliar periodicamente a funcionalidade do Sistema Tributário Nacional, quanto à sua estrutura e componentes. E que o faça para aferir o desempenho das administrações tributárias da União, dos Estados e do Distrito Federal.
Essas administrações tributárias estão regradas pelos incisos XVIII e XXII do art. 37 da Constituição, também com alterações da Emenda Constitucional 42/2003, todas elas vinculadas ao princípio da eficiência, constante do caput do art. 37. Estão, as nossas administrações tributárias, operando com a eficiência que determina a Constituição, na relação que mantêm conosco, os contribuintes? É difícil dizer que sim.
Nações ansiosas por realizar a grandeza de suas ambições têm tentado imprimir flexibilidade aos seus modelos tributários de forma a mantê-los mais cosmopolitas e menos provincianos, exatamente para, sentados em pé de igualdade perante o tabuleiro das nações, mostrarem-se internamente empáticas aos desafios domésticos e externamente amigáveis a quem busca locais atrativos para investir.
A África do Sul, uma democracia constitucional regida por uma Constituição tão recente quanto a nossa, tem como rotina a revisão das legislações sobre Direito Tributário. Em fevereiro de cada ano, o Ministro das Finanças vai ao Parlamento anunciar o orçamento público anual e as propostas de emendas às leis tributárias.
O governo cria comissões temporárias para elaborem relatórios minuciosos sobre os aspectos da estrutura tributária com o fim de identificar as áreas carentes de reformas.
Se colocarmos o pensamento colonizado de lado, e não deixarmos o preconceito histórico comandar o nosso raciocínio, não doerá saber que a África do Sul, a despeito de seus graves problemas estruturais, conseguiu criar um sistema tributário no qual, segundo o Banco Mundial, as pessoas gastam 210 horas por ano (2019) para preparar e pagar seus tributos. O sistema é simples, ele não precisa de exércitos bem remunerados para preencher "Darfs". A realidade da simplicidade não liberta o país de suas cicatrizes profundas e ainda abertas, mas, pelo menos, liberta as pessoas de se verem enredadas nas teias de um compliance tributário impossível de compreender, algo que tira delas o foco que precisam para tocar os seus negócios.
Se a África do Sul gasta 210 horas por ano preparando e pagando seus tributos, o contribuinte brasileiro leva, de acordo com o mesmo ranking do Banco Mundial, 1,501 horas (2019)1. É uma barbárie. Somos, nesse aspecto, o que de pior o mundo conseguiu produzir. Párias mesmo. Próximo a nós está a Líbia, um país mergulhado numa fratricida guerra civil e sem qualquer unidade política. Apenas para ilustrar, dentre os membros da OCDE, o país em pior posição é a Polônia, com 334 horas por ano (2019).
É claro que o STF conhece essa situação vergonhosa e a ela não é indiferente. Nas palavras do ministro Joaquim Barbosa, "a legislação tributária de nosso país é uma das complexas e impenetráveis do mundo, segundo estudos realizados por entidades como o Banco Mundial (mencionado no RE 564.413 – Pleno), pesquisadores do IPEA, entidades representativas dos setores produtivos (e.g., a Fecomércio) e o Núcleo de Estudos Fiscais da FGV/SP" (ADI 2588, p. 230). Não se sai desse atoleiro "mantendo" o que quer que seja. É preciso "reformar", já.
Acontece que, além da Constituição, no seu art. 52, XV, ter normatizado o caráter transformador do Sistema Tributário Nacional, a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem vitalizado essa natureza dinâmica necessária à tributação brasileira.
Em 2010, a Suprema Corte apreciou a ação direta de inconstitucionalidade 875 (DJe 30/4/2010), tratando do Fundo de Participação dos Estados (FPE), mais especificamente, da presença, ou não, de uma omissão parcial na Lei Complementar 62/1989, que visava a, concretizando o art. 161, II da Constituição, estabelecer os critérios de rateio do aludido FPE, com a finalidade de promover o equilíbrio socioeconômico entre os entes federativos.
Repelindo o status quo profundamente disfuncional em nossa federação, o relator, ministro Gilmar Mendes, anotou: "Passados quase vinte anos da edição da lei, ela continua a reger a distribuição dos recursos do Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal, ou seja, até hoje são aplicados os índices previstos, inicialmente, apenas para os exercícios de 1990 e 1991" (página 33 do acórdão).
Parece claro que a acomodação negativa às pessoas naturais e à federação de designs normativos evidentemente disfuncionais tende a se converter, ela mesma, numa inconstitucionalidade capaz de reclamar, do Supremo Tribunal Federal, correção.
Quanto à determinação constitucional de "revisões periódicas dos coeficientes", a Corte Suprema anotou: "Ademais, deve haver a possibilidade de revisões periódicas dos coeficientes, de modo a se avaliar criticamente se os até então adotados ainda estão em consonância com a realidade econômica dos entes federativos e se a política empregada na distribuição dos recursos produziu o efeito desejado" (página 42 do acórdão).
O trecho acima é definitivo. "Se a política empregada na distribuição dos recursos produziu o efeito desejado". Essa passagem atira ribanceira abaixo a ideia de que, ainda que o sistema atual seja extremamente danoso às pessoas e que contribua para uma engrenagem na qual o país perde muito para alimentar uns poucos, ainda assim nada deve ser feito. Agir assim é ser indiferente. É também trair a Constituição.
Em 2017, apreciando a ação direta de inconstitucionalidade por omissão 25 (DJe 18/8/2017), a Suprema Corte discutiu a desoneração das exportações, fruto da Emenda Constitucional 42/2003, e a ausência das necessárias medidas compensatórias a tal desoneração a serem implementadas por lei complementar.
O relator, ministro Gilmar Mendes, chegou a discorrer acerca da redução da competência tributária estadual, e sua compatibilidade com a Constituição, concluindo que o que de fato poderia, ou não, ser inconstitucional, seriam as medidas compensatórias a tal redução, mas não havendo, no caso, uma inconstitucionalidade ex ante, por qualquer violação ao pacto federativo.
Não se negou, no caso, que o esforço de desoneração das exportações, em termos técnicos, ocorreu mediante redução dos limites da competência tributária estadual. Até mesmo em "prejuízo de uma fonte de receitas públicas estaduais" (p. 28 do acórdão). Mesmo assim, para a maioria do STF, "(...) para compensar a perda de arrecadação que naturalmente haveria de decorrer da desoneração das exportações imposta pela EC 42/2003, esta estabeleceu, no art. 91 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), uma fórmula de transferência constitucional obrigatória da União em favor dos estados e do Distrito Federal" (página 29 do acórdão).
Ou seja, ao contrário de violar a Constituição, a forma encontrada pelo Congresso Nacional para solucionar um problema foi reputada legítima, a depender, claro, de quais sejam as formas de compensação. "Por isso, o mecanismo de transferência de recursos, em tese, poderia representar um importante instrumento de federalismo cooperativo, de sorte a atenuar os impactos financeiros decorrentes da desoneração promovida pela EC 42/2003 nas contas estaduais", anotou o ministro Gilmar Mendes (página 32).
Fica claro ser possível haver uma mudança na Constituição que tire competências tributárias entregues aos entes federados mas, ao mesmo tempo, fortaleça o federalismo. Tudo dependerá das medidas compensatórias ofertadas nesse novo design normativo e de sua verdadeira e integral implementação.
Por isso, é preciso ter cuidado ao se invocar, retoricamente, o pacto federativo como tabu imobilizante a qualquer debate relativo a uma reforma tributária. Quem faz isso jura o Santo Nome em vão. "Santo Nome" porque, como sabemos, a forma federativa de Estado é uma das nossas cláusulas pétreas, de modo que, para a Constituição, esse é mesmo um "Santo Nome".
Vamos viver um pouco a verdade. No STF, dia 21/6/2019, o ministro Luiz Fux conduziu audiência pública para discutir os conflitos federativos relacionados ao bloqueio, pela União, de recursos dos Estados-membros em decorrência da execução de contragarantias em contratos de empréstimos não quitados. O tema é objeto da Ação Cível Originária (ACO) n. 3233, da qual o ministro Fux é relator. A audiência abordou desdobramentos no federalismo fiscal brasileiro.
Não bastasse os estertores jurisprudenciais, na política, o Poder Executivo acaba de apresentar a Proposta de Emenda à Constituição 188, de 2019, que, alterando o art. 6° do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, introduz o art. 115 dispondo que os municípios de até cinco mil habitantes deverão comprovar, até o dia 30 de junho de 2023, sua sustentabilidade financeira, sob pena de serem "varridos do mapa".
Esse é o quadro atual do federalismo brasileiro. Essa é a verdade vivida, não penas aquela conhecida de ouvir falar. Qualquer invocação retórica a esse respeito consiste apenas em se jurar o "Santo Nome" em vão. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário vêm gritando, há tempos: "O nosso federalismo está morrendo. Indignai-vos!"
Os incisos do art. 60, § 4º, da Constituição apontam que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: "I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais". Quanto à forma federativa de Estado, seguir omitindo-se, bloqueando reformas possíveis sob a alegação confortável de ferir o pacto federativo, é ignorar as exortações persistentes dos Poderes para que façamos algo.
Logo, há pelo menos duas premissas a serem reconhecidas. A primeira é a de que a Constituição revestiu o guardião político do pacto federativo, o Senado Federal, da irrenunciável missão de avaliar periodicamente a funcionalidade desse Sistema, numa clara exortação à transformação. A segunda é a de que o Supremo Tribunal, pelo seu plenário, tratando das competências tributárias constitucionalmente estabelecidas aos entes federados, excluiu a possibilidade de haver uma inconstitucionalidade manifesta numa reforma constitucional que restrinja tais competências, fixando que o que definirá a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da fórmula aplicada serão as medidas compensatórias apresentadas e a sua efetiva implementação.
Olhando para o país cujo sistema tributário exige das pessoas uma conformidade ultrajante, é preciso admitir que a vocação da Constituição de 1988 é a de ser um navio, jamais uma âncora. Passa da hora desse navio seguir a sua jornada, ainda que, para isso, precise quebrar as correntes que, amarradas à âncora, o impedem de partir. O país deve, livremente, discutir, no espaço público que a nossa democracia soube construir, um modelo que vitalize os comandos constitucionais do Sistema Tributário Nacional.
A Constituição quer progresso, não manutenção de status quo, especialmente quando ele sacrifica a própria realidade antevista pelo texto constitucional. Tanto que, segundo o inciso IX do art. 4º, a República rege-se nas suas relações internacionais pelo princípio da "cooperação entre os povos para o progresso da humanidade". A transformação pretendida pela Constituição nos exorta, no tempo presente, a cooperarmos com povos de todo o mundo, nessa grande aldeia global, sem provincianismos nem mesquinharias, tendo um Sistema Tributário Nacional menos bárbaro. Não façamos como Maria Teresa, Imperatriz da A'ustria entre 1740 e 1780, que, diante de sugesto~es sobre como melhorar as instituic¸o~es do seu pai's, recomendava: "Deixe tudo como esta'".
É preciso discutir. E discutir sem medo. Nesse convite histórico inadiável, o Congresso Nacional precisa recordar Victor Hugo uma vez mais: "Nada é mais forte do que uma ideia cujo tempo chegou". A Reforma Tributária apresenta uma ideia cujo tempo chegou.
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