Conversa Constitucional

A inconstitucionalidade que não estava no gibi

A inconstitucionalidade que não estava no gibi.

11/9/2019

Eis a Santíssima Trindade na qual se baseia qualquer Suprema Corte: (i) controle do poder estatal, (ii) reafirmação das liberdades e (iii) proteção de grupos vulneráveis. No Brasil e no mundo, havendo independência, é assim que funciona. E, no final de semana passado, o Supremo Tribunal Federal fez essa Santíssima Trindade operar seus milagres.

Há, no caso retratado nessa coluna, evidentes questões ligadas ao afeto. E por falar em afeto, o Papa Francisco, recentemente, em conversa com o comediante britânico Stephen K. Amos, afirmou que as pessoas que rejeitam os homossexuais "não têm o coração humano". Desmond Tutu, Prêmio Nobel da Paz e arcebispo da Igreja Anglicana, já havia dito, a esse respeito, que "não adoraria um Deus que é homofóbico"1. Os dois líderes religiosos de prestígio global falam, em resumo, sobre o amor ao próximo.

E no Brasil? Por aqui a história é diferente. Sexta-feira, dia 6/9/2019, o prefeito do Rio de Janeiro, o bispo Marcelo Crivella (PRB), determinou que o gibi "A Cruzada das Crianças" fosse retirado de nada mais nada menos do que a Bienal Internacional do Livro, realizada na cidade do Rio de Janeiro. Para o prefeito, a revista ofereceria "conteúdo sexual para menores", pois retratava, numa cena, o desenho de dois jovens do sexo masculino, de pé e vestidos dos pés à cabeça, dando um beijo na boca2.

O prefeito e o Secretário Municipal de Ordem Pública, ciosos de sua cruzada, enviaram notificação extrajudicial à Bienal do Livro. Eis um breve trecho:

"(...) notificar a entidade responsável por essa BIENAL DO LIVRO que, na forma da legislação federal e municipal, deverão ser recolhidas as obras que tratem do tema do homotransexualismo de maneira desavisada para o público jovem e infantil, ou seja, QUE NÃO ESTEJAM SENDO COMERCIALIZADAS EM EMBALAGEM LACRADA, COM ADVERTÊNCIA DE SEU CONTEÚDO, sob pena de apreensão dos livros e cassação de licença para a feira e demais que sejam cabíveis".

Apreender publicações e cassar licenças de feiras de livros, em razão do conteúdo de obras, constituem o que de mais grave pode haver contra as liberdades fundamentais. Mais do que isso, só queimar livros em praça pública. Seria o fim da linha, mas o Rubicão está logo ali. O país vai mesmo cruzá-lo?

No caso do gibi, era como se o beijo tivesse virado sexo explícito. O aparato estatal apareceu na Bienal para prender a revista. Uma liminar foi concedida no Mandado de Segurança nº 0056881-31.2019.8.19.0000, pela 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, visando a "(...) compelir as autoridades impetradas a se absterem de buscar e apreender obras em função do seu conteúdo, notadamente aquelas que tratam do homotransexualismo"; também, a "se absterem de cassar a licença para a Bienal, em decorrência dos fatos veiculados neste mandamus".

Rapidamente, a presidência do TJRJ suspendeu a liminar, com base nos artigos 783 e 794 do Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/1990)3, ao fundamento de que "o legislador não proíbe, de forma absoluta, a circulação de material impróprio ou inadequado para crianças e adolescentes, mas tão somente exige comprometimento com o dever de advertência, para além de dificultar acesso ao seu interior, por meio do lacre da embalagem (art. 78)". Mas qual exatamente é a impropriedade à luz da lei e da Constituição? Só pode ser o sexo dos personagens. Eles têm o mesmo sexo. Seria isso?

Não ficou claro. Mesmo assim, Sua Excelência prosseguiu: "(...) ao tratar, especificamente, de publicações voltadas para o público protegido pelo Estatuto, que constitui coletividade vulnerável, repele qualquer conteúdo afrontoso a valores éticos, morais ou agressivos à pessoa ou à família".

Não há problema em falar em "valores éticos". O art. 221, V da Constituição, por exemplo, diz que "a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão" ao "respeito aos ‘valores éticos’ e sociais da pessoa e da família". Acontece que a exegese necessária à identificação desses valores precisa vir em harmonia com a própria Constituição, que, no art. 3º, IV, aponta como um dos objetivos fundamentais da República "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, 'sexo', cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". Também em sintonia com o art. 5º, XLI, segundo o qual "a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais". E mais. O art. 227 aponta como dever da família, da sociedade e do Estado colocar a criança, o adolescente e o jovem a salvo de toda forma de "discriminação". Alguém tem dúvida quanto à visão da Constituição quanto às discriminações de toda e qualquer natureza? Evidentemente, ela as excomunga.

Para o presidente do TJ/RJ, contudo, "o conteúdo objeto da demanda mandamental, não sendo corriqueiro e não se encontrando no campo semântico e temático próprio da publicação (livro de quadrinhos de super-heróis que desperta notório interesse em enorme parcela das crianças e jovens, sem relação direta ou esperada com matérias atinentes à sexualidade), desperta a obrigação qualificada de advertência, nos moldes pretendidos pelo legislador"4.

A decisão tende a se tornar uma peça do rebotalho das exegeses que estigmatizam, ao contrário de vitalizar os comandos constitucionais que vedam os preconceitos e as discriminações.

Não pode. Censura, mesmo a judicial, simplesmente não pode. A Constituição veda. O Supremo veda. A civilização veda. A democracia veda. O Estado Constitucional veda. À luz da Constituição, nada de "impróprio" há no desenho num gibi de dois jovens, vestidos dos pés a cabeça, dando um beijo. Apreender revistas e cassar a licença de funcionamento de uma feira de livros como a Bienal, por conta disso? Logo numa democracia constitucional como a brasileira, que é tolerante, inclusiva e veementemente contrária aos preconceitos e às discriminações? Não pode acontecer. Não vai acontecer.

As obras, no Brasil, existem para serem consumidas, não tolhidas. O que se proíbe, excepcionalmente, é o discurso de ódio. Mas e quanto ao discurso de amor? Esse, independente de partir de dois jovens do mesmo sexo, não está banido pela Constituição. Ela não proíbe, não censura, não excomunga nem desconjura.

A sucessão de disparates rumou para o Supremo Tribunal Federal. Acontece que lá, a pegada é outra. Na Suprema Corte, quando alguém vê um livro, o natural é lê-lo, não incinerá-lo. O comportamento pode até soar estranho nesse Brasil contemporâneo, é verdade, mas é assim que é. Trata-se de uma casa letrada que eleva as liberdades, não as combate. E a relação da Corte com publicações é antiga. E sólida. Basta rememorar.

Quando a Receita Federal do Brasil quis tributar os livros eletrônicos, ao argumento de que eles não eram livros e, portanto, não gozavam da imunidade tributária, o STF ficou com os livros, reconhecendo a imunidade5.

Bem antes, ao julgar o habeas corpus nº 82.424 (rel. p/acórdão min. Maurício Corrêa, DJ 19.3.2004), o STF anotou: "Escrever, editar, divulgar e comerciar livros 'fazendo apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias' contra a comunidade judaica (lei 7.716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII)"6. Pela decisão – caso Ellwanger -, quando uma publicação vociferar discurso de ódio contra grupos vulneráveis, o Direito Penal deve alcança o autor. Simples.

Em 2016, julgando a ação direta de inconstitucionalidade nº 4815 (DJe 1º.2.2016), sob a relatoria da ministra Cármen Lúcia, o Tribunal reiterou que "a Constituição do Brasil proíbe qualquer censura", pois "o exercício do direito à liberdade de expressão não pode ser cerceada pelo Estado ou por particular". Então, concluiu: "Autorização prévia para biografia constitui censura prévia particular. O recolhimento de obras é censura judicial, a substituir a administrativa". Vale repetir: censurar não pode.

Tem mais. Em agosto de 2008, a revista Playboy homenageou a obra imortal de Jorge Amado, retratando a atriz Carol Castro despida, em página inteira, tendo à mão direita um rosário identificado pelas contas e pelo crucifixo. "Carol, Cravo e Canela", era o título, numa alusão à "Gabriela, Cravo e Canela".

Houve quem ficasse ruborizado. Quando tentaram arrastar a discussão para o STF, para que ele censurasse previamente a revista, coube ao ministro Dias Toffoli liderar a divergência que resultou na manutenção da decisão da Oitava Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, impedindo a censura prévia7.

A verdade é que o Supremo é da paz. Ao julgar a arguição de descumprimento de preceito fundamental no. 187, de relatoria do ministro Celso de Mello (DJe 29/5/2014), ficou assegurado o direito de realização da "Marcha da Maconha".

Reconheceu-se, na oportunidade, a "legitimidade, sob perspectiva estritamente constitucional, de assembleias, reuniões, marchas, passeatas ou encontros coletivos realizados em espaços públicos (ou privados) com o objetivo de obter apoio para oferecimento de projetos de lei, de iniciativa popular, de criticar modelos normativos em vigor, de exercer o direito de petição e de promover atos de proselitismo em favor das posições sustentadas pelos manifestantes e participantes da reunião".

Isso porque "a liberdade de expressão como um dos mais preciosos privilégios dos cidadãos em uma república fundada em bases democráticas" enseja uma "discussão que deve ser realizada de forma racional, com respeito entre interlocutores e sem possibilidade legítima de repressão estatal, ainda que as ideias propostas possam ser consideradas, pela maioria, estranhas, insuportáveis, extravagantes, audaciosas ou inaceitáveis", pois é o que realiza "o sentido de alteridade do direito à livre expressão e o respeito às ideias que conflitem com o pensamento e os valores dominantes no meio social". "Alteridade" é a forma secular de dizer "ame o próximo como a si mesmo".

Anos antes, ao julgar a arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 130, de relatoria do ministro Ayres Britto (DJe 6/11/2009), o Supremo pontuou que "o corpo normativo da Constituição brasileira sinonimiza liberdade de informação jornalística e liberdade de imprensa, rechaçante de qualquer censura prévia a um direito que é signo e penhor da mais encarecida dignidade da pessoa humana, assim como do mais evoluído estado de civilização". A conclusão do ministro Ayres Britto tornou-se uma primavera imortal. Ele escreveu: "quem quer que seja tem o direito de dizer o que quer que seja. Logo, não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas".

Ainda em 2009, julgando o recurso extraordinário nº. 511.961 (ministro Gilmar Mendes, DJe 13/11/2009), o STF entendeu que "as liberdades de expressão e de informação e, especificamente, a liberdade de imprensa, somente podem ser restringidas pela lei em hipóteses excepcionais, sempre em razão da proteção de outros valores e interesses constitucionais igualmente relevantes, como os direitos à honra, à imagem, à privacidade e à personalidade em geral".

Não foi diferente na ação direta de inconstitucionalidade nº 4451, de relatoria do ministro Alexandre de Moraes (Pleno, DJe 6/3/2019), quando se disse: "A Democracia não existirá e a livre participação política não florescerá onde a liberdade de expressão for ceifada, pois esta constitui condição essencial ao pluralismo de ideias, que por sua vez é um valor estruturante para o salutar funcionamento do sistema democrático"8.

Recentemente, no referendo à cautelar concedida na arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 548 (DJe 31/10/2018), a ministra Cármen Lúcia deixou claro que "atos do Poder Público tendentes a executar ou autorizar buscas e apreensões, assim como proibir o ingresso e interrupção de aulas, palestras, debates ou atos congêneres e promover a inquirição de docentes, discentes e de outros cidadãos que estejam em local definido como universidade pública ou privada"9.

Sua Excelência disse mais: "Em qualquer espaço no qual se imponham algemas à liberdade de manifestação há nulidade a ser desfeita. Quando esta imposição emana de ato do Estado (no caso do Estado-juiz ou de atividade administrativa policial) mais afrontoso é por ser ele o responsável por assegurar o pleno exercício das liberdades, responsável juridicamente por impedir sejam elas indevidamente tolhidas".

A conclusão da ministra Cármen Lúcia foi a seguinte: "Toda forma de autoritarismo é iníqua. Pior quando parte do Estado. Por isso os atos que não se compatibilizem com os princípios democráticos e não garantam, antes restrinjam o direito de livremente expressar pensamentos e divulgar ideias são insubsistentes juridicamente por conterem vício de inconstitucionalidade".

É como se a Constituição fosse um rio caudaloso cujas correntezas hermenêuticas impulsionadas pelo STF tivessem o nome liberdade. E essas correntes se encontram com outro rio, o da diversidade, voltado à proteção de grupos vulneráveis. É um encontro essencial a democracias constitucionais como a nossa.

Na arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 132, de relatoria do ministro Ayres Britto (DJe 14/10/2011, julgada conjuntamente com a ação direta de inconstitucionalidade nº 4277), o STF, por unanimidade, decidiu que "o sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica", ressaltando ainda a "proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art. 3º da Constituição Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de 'promover o bem de todos'".

Trata-se do "reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da 'dignidade da pessoa humana': direito a auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo". É, segundo o ministro Ayres Britto, o "salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual". É perda de tempo estrebuchar. O ideal é se limpar de todos os preconceitos e abraçar o semelhante, com consideração e respeito, como a si mesmo.

Posteriormente, no recurso extraordinário nº 846.102 (ministra Cármen Lúcia, monocrático, DJe 18/3/2015), reconheceu-se as respectivas consequências jurídicas da união estável homoafetiva, o que inclui, claro, a adoção.

Na sequência, ao apreciar a ação direta de inconstitucionalidade nº 4275 (DJe 7/3/2019), o STF reafirmou que o "direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero", além de assentar que "a identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la"10.

A marcha seguiu. Julgando a arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 291, de relatoria do ministro Roberto Barroso (DJe 11/5/2016), definiu-se que "não se pode permitir que a lei faça uso de expressões pejorativas e discriminatórias, ante o reconhecimento do direito à liberdade de orientação sexual como liberdade existencial do indivíduo. Manifestação inadmissível de intolerância que atinge grupos tradicionalmente marginalizados"11.

Como coroamento da jurisprudência da diversidade, veio a ação direta de inconstitucionalidade por omissão nº 26, de relatoria do ministro Celso de Mello, julgada em conjunto com o mandado de injunção nº 4733, do ministro Edson Fachin, que, reconhecendo a criminalização da homofobia, definiu tese com o seguinte trecho:

"1. Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na lei 7.716, de 8/1/1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, 'in fine')12;

Voltando para o caso da Bienal do Rio, após a suspensão da liminar pelo presidente do TJ/RJ, e do retorno dos agentes estatais à feira, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, apreciou a Medida Cautelar na Suspensão de Liminar nº 1.248, da Procuradoria-Geral da República.

Para o presidente, não há "como extrair do dispositivo legal voltado às publicações do público infanto-juvenil (art. 79 do ECA), correlação entre publicações cujo conteúdo envolva relacionamentos homoafetivos com a necessidade de 'obrigação qualificada de advertência'", pois "no caso, a decisão cuja suspensão se pretende, ao estabelecer que o conteúdo homoafetivo em publicações infanto-juvenis exigiria a prévia indicação de seu teor, findou por assimilar as relações homoafetivas a conteúdo impróprio ou inadequado à infância e juventude, ferindo, a um só tempo, a estrita legalidade e o princípio da igualdade, uma vez que somente àquela específica forma de relação impôs a necessidade de advertência, em disposição que – sob pretensa proteção da criança e do adolescente – se pôs na armadilha sutil da distinção entre proteção e preconceito".

Noutras palavras, o problema não parecia ser qualquer impropriedade da cena, mas, apenas e tão somente, a sexualidade dos protagonistas. Discriminação, portanto.

Já o ministro Gilmar Mendes, julgando a Reclamação nº 36.742, ajuizada pela GL Events Ehxibitions Ltda., organizadora da Bienal, entendeu que "a ordem da Administração Municipal consubstanciou-se em verdadeiro ato de censura prévia, com o nítido objetivo de promover a patrulha do conteúdo de publicação artística".

Para o Ministro, veiculou-se "uma interpretação das normas do ECA calcada em uma patente discriminação de gênero". E arrematou:

"O entendimento de que a veiculação de imagens homoafetivas é 'não corriqueiro' ou 'avesso ao campo semântico de histórias de ficção’ reproduz um viés de anormalidade e discriminação que é atribuído às relações homossexuais. Tal interpretação revela-se totalmente incompatível com o texto constitucional e com a jurisprudência desta Suprema Corte, na medida em que diminui e menospreza a dignidade humana e o direito à autodeterminação individual"13.

A Suprema Corte deu um nó exegético difícil de desatar. A verdade é que o preconceito passa longe da Constituição. Basta ler o Capítulo VII, “Da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso"14.

O art. 226 diz que "a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado". Mas há um único tipo de família? Não. Então não pode o prefeito do Rio, Marcelo Crivella, censurar uma feira de livros pelo fato de ela, mesmo não violando a lei e a Constituição, contar com livros que os filhos dele, se jovens, seriam proibidos de ler.

A Constituição foca no essencial. O § 8º do citado art. 226, por exemplo, impõe ao Estado criar mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares. A violência, sim, é "imprópria".

No art. 227, por sua vez, diz-se ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, os seguintes direitos: vida, saúde, alimentação, educação, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade e convivência familiar e comunitária. Também o de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão15. O § 4º fecha dizendo que a lei punirá severamente “o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente”.

Não há espaço normativo para censuras. E o pior da censura é a estupidez do censor. As obsessões mentais desse personagem nefasto – o censor - são conhecidas.

Chico Anysio conta que, na Ditadura Militar, escreveu: "Auri-verde, pendão da minha terra que a brisa do Brasil beija e balança". O censor cortou "beija e balança". Chico teve que explicar que a frase era de Castro Alves, não dele. Puro obscurantismo.

Chico arremata com mais um episódio lamentável: "eu botei 'Você vai para a Europa, vê se me consegue uns afrescos de Rafael'. Aí cortaram afresco. O cara pôs uma puxadinha e pôs assim: 'diga rapazes de maus hábitos'. Uma coisa absurda!"16.

A grande verdade é que o "impróprio" não estava no gibi. Nem de longe. Mas, como disse o ministro Ayres Britto, na arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 132: "Nada incomoda mais as pessoas do que a preferência sexual alheia, quando tal preferência já não corresponde ao padrão social da heterossexualidade. É a velha postura de reação conservadora aos que, nos insondáveis domínios do afeto, soltam por inteiro as amarras desse navio chamado coração".

O fim é o começo: (i) controle do poder estatal, (ii) reafirmação das liberdades e (iii) proteção de grupos vulneráveis. É para isso que as Supremas Cortes existem. E, nesse particular, o Supremo Tribunal Federal estava lá outra vez. Ainda bem.

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1 Em BBC News.

2 O gibi é um especial em nove edições publicado pela Marvel, em 2010. No Brasil, a Panini trouxe um especial em 2012, com a sequência publicada pela Salvat, em 2016. Os jovens Billy Kaplan (o Wiccano, um feiticeiro) e Thomas Shepherd (o Célere, um velocista), podem ser os filhos tomados de Wanda Maximoff (da HQ Feiticeira Escarlate). Beijaram-se Wiccano e Hulkling.

3 "Art. 78. As revistas e publicações contendo material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes deverão ser comercializadas em embalagem lacrada, com a advertência de seu conteúdo. Parágrafo único. As editoras cuidarão para que as capas que contenham mensagens pornográficas ou obscenas sejam protegidas com embalagem opaca". "Art. 79. As revistas e publicações destinadas ao público infanto-juvenil não poderão conter ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas, tabaco, armas e munições, e deverão respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família".

4 A decisão do presidente do TJ/RJ diz ainda: "(...) em se tratando de obra de super-heróis, atrativa ao público infanto-juvenil, que aborda o tema da homossexualidade, é mister que os pais sejam devidamente alertados, com a finalidade de acessarem previamente informações a respeito do teor das publicações disponíveis no livre comércio, antes de decidirem se aquele texto se adequa ou não à sua visão de como educar seus filhos".

5 No recurso extraordinário n. 330.817, a Suprema Corte fixou da seguinte forma a tese do Tema 593 da repercussão geral: "A imunidade tributária constante do artigo 150, VI, 'd', da Constituição Federal, aplica-se ao livro eletrônico (e-book), inclusive aos suportes exclusivamente utilizados para fixá-lo". Já no recurso extraordinário no. 595.676, a tese do Tema 259 foi assim firmada: "A imunidade tributária da alínea 'd' do inciso VI do artigo 150 da Constituição Federal alcança componentes eletrônicos destinados exclusivamente a integrar unidades didáticas com fascículos". Ampliou-se a teleologia da norma para proteger as publicações, expandindo-se o acesso a elas.

6 No caso Ellwanger, o STF definiu, quanto ao racismo, a "compatibilização dos conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional do termo”, o que reclamaria uma “interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e alcance da norma".

7 ARE 790.813 (DJe 9.3.2015), Tese 716.

8 ADI 4451 MC-REF, Min. Ayres Britto, DJe 1.7.2011: "2. Não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas. não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, pouco importando o Poder estatal de que ela provenha".

9 Anotou ainda: "decisões proferidas por juízes eleitorais, pelas quais determinam a busca e apreensão do que seriam "panfletos" e materiais de campanha eleitoral em universidades e nas dependências das sedes de associações de docentes, proíbem aulas com temática eleitoral e reuniões e assembleias de natureza política, impondo-se a interrupção de manifestações públicas de apreço ou reprovação a candidatos nas eleições gerais de 2018, em ambiente virtual ou físico de universidades federais e estaduais". As medidas teriam como alegado embasamento jurídico a legislação eleitoral, que veda "a veiculação de propaganda de qualquer natureza, inclusive pichação, inscrição a tinta e exposição de placas, estandartes, faixas, cavaletes, bonecos e assemelhados" (art. 37 da Lei n. 9.504/1997).

10 No recurso extraordinário nº 670.422, de relatoria do ministro Dias Toffoli (DJe 21/11/2014), o STF fixou a tese do Tema 761 assim: "i) O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa; ii) Essa alteração deve ser averbada à margem do assento de nascimento, vedada a inclusão do termo 'transgênero'; iii) Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial; iv) Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado determinar de ofício ou a requerimento do interessado a expedição de mandados específicos para a alteração dos demais registros nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a origem dos atos".

11 Na ação direta de inconstitucionalidade nº 5543, são questionadas normas do Ministério da Saúde e da Anvisa que restringem a doação de sangue por homossexuais masculinos. Após os votos dos ministros Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Rosa Weber, que seguiram o relator, ministro Edson Fachin, para julgar inconstitucionais os dispositivos, e do voto do ministro Alexandre de Moraes, que julgou parcialmente procedente a ação, o julgamento foi suspenso.

12 Demais itens da tese: "(...) 2. A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero; (...) 3. O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito".

13 O ministro Gilmar Mendes deferiu a liminar determinando a suspensão os efeitos da decisão proferida pela autoridade coatora, impedindo-se a administração municipal de exercer qualquer tipo de fiscalização de conteúdo, ostensivamente ou à paisana, determinando ainda que: (i) abstenha-se de apreender qualquer livro exposto na Feira Bienal do Livro, e em especial a publicação "Vingadores: A Cruzada das Crianças" e (ii) abstenha-se de cassar o alvará de funcionamento da Bienal do Livro.

14 Vale a leitura da ADI nº 2404 (ministro Dias Toffoli, DJe 1.8.2017), que tratou da questão relativa à liberdade de expressão dos meios de comunicação e da proteção da criança e do adolescente. Eis trechos da ementa: “1. A própria Constituição da República delineou as regras de sopesamento entre os valores da liberdade de expressão dos meios de comunicação e da proteção da criança e do adolescente. 2. A classificação dos produtos audiovisuais busca esclarecer, informar, indicar aos pais a existência de conteúdo inadequado para as crianças e os adolescentes. O exercício da liberdade de programação pelas emissoras impede que a exibição de determinado espetáculo dependa de ação estatal prévia. A submissão ao Ministério da Justiça ocorre, exclusivamente, para que a União exerça sua competência administrativa prevista no inciso XVI do art. 21 da Constituição, qual seja, classificar, para efeito indicativo, as diversões públicas e os programas de rádio e televisão, o que não se confunde com autorização. Entretanto, essa atividade não pode ser confundida com um ato de licença, nem confere poder à União para determinar que a exibição da programação somente se dê nos horários determinados pelo Ministério da Justiça, de forma a caracterizar uma imposição, e não uma recomendação. É importante que se faça, portanto, um apelo aos órgãos competentes para que reforcem a necessidade de exibição destacada da informação sobre a faixa etária especificada, no início e durante a exibição da programação, e em intervalos de tempo não muito distantes (a cada quinze minutos, por exemplo), inclusive, quanto às chamadas da programação, de forma que as crianças e os adolescentes não sejam estimulados a assistir programas inadequados para sua faixa etária. 4. Sempre será possível a responsabilização judicial das emissoras de radiodifusão por abusos ou eventuais danos à integridade das crianças e dos adolescentes, levando-se em conta, inclusive, a recomendação do Ministério da Justiça quanto aos horários em que a referida programação se mostre inadequada. Afinal, a Constituição Federal também atribuiu à lei federal a competência para “estabelecer meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221” (art. 220, § 3º, II, CF/88)."  Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010..

15 Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010.

16 Roda Viva.

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Colunista

Saul Tourinho Leal é doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP, tendo ganhado, em 2015, a bolsa de pós-doutorado Vice-Chancellor Fellowship, da Universidade de Pretória, na África do Sul. Foi assessor estrangeiro da Corte Constitucional sul-africana, em 2016, e também da vice-presidência da Suprema Corte de Israel, em 2019. Sua tese de doutorado, "Direito à felicidade", tem sido utilizada pelo STF em casos que reafirmam direitos fundamentais. É advogado em Brasília.