Conversa Constitucional

De oradores a debatedores: mais vida à defesa oral no STF

De oradores a debatedores: mais vida à defesa oral no STF.

2/5/2019

Naquela tarde de quinta-feira, logo na primeira semana após o carnaval de 2016, a sessão do plenário do Supremo Tribunal Federal prometia. Os trabalhos do dia anterior haviam sido repletos de temas desafiadores, como o cabimento ou não de habeas corpus contra ato de ministro do STF1 e a reafirmação da possibilidade de execução provisória da pena a partir do acórdão de segundo grau2. A complexidade das questões constitucionais submetidas à Suprema Corte estava longe de se esvair.

É no plenário do STF onde a jurisdição constitucional se consolida. Ao fundo, o painel em mármore criado por Athos Bulcão. Nele, o Brasão de Armas Nacionais e a imagem de Cristo Crucificado, feita por Alfredo Ceschiatti, com o madeiro confeccionado em pau-brasil. A presidência cabia ao ministro Ricardo Lewandowski.

Dando continuidade à sessão do dia anterior, seguia na pauta, após oito sustentações orais, o recurso extraordinário 601.314, de relatoria do ministro Edson Fachin, com o tema nº 225 da repercussão geral, acerca do fornecimento de informações sobre movimentações financeiras ao Fisco sem autorização judicial, nos termos do art. 6º da LC 105/2001 e a aplicação retroativa da lei 10.174/2001 para apuração de créditos tributários referentes a exercícios anteriores ao de sua vigência.

Finalizadas as sustentações orais, o ministro Luís Roberto Barroso pediu a palavra e, a partir da sua intervenção, um diálogo se estabeleceu:

"O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO – Senhor Presidente, eu gostaria de fazer uma indagação à ilustre representante da Fazenda Nacional.

Eu bem entendo que o contribuinte do imposto de renda, na sua declaração de ajuste anual, precisa prestar informações acerca das suas movimentações bancárias: seu saldo, pagamentos feitos a terceiros e suas aplicações. Portanto parte do argumento que Vossa Excelência constrói é de que a Receita já deveria ter acesso a essas informações, se elas tivessem sido honestamente prestadas. Eu gostaria de saber se essa lógica valeria também para Estados e municípios.

A SENHORA LUCIANA MIRANDA MOREIRA (PROCURADORA DA FAZENDA NACIONAL) - Eminente Ministro, nós imaginamos que, em princípio, parece, numa primeira impressão, que os dados bancários têm mais importância quando se considera a renda. O que acontece? É importante verificar - e a receita não verifica, a receita verifica montantes globais - que há diversos contribuintes que, na verdade, movimentam dez vezes ou mais valores do que de fato declaram. Em princípio, em se tratando de movimentação bancária, nós entendemos que há uma correlação maior com a renda, portanto isso seria mais interessante para o fisco federal. Nem tenho notícia se os Estados ou Municípios se utilizam dessa prerrogativa.

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO - Mas o artigo 6º, de fato, autoriza.

A SENHORA LUCIANA MIRANDA MOREIRA (PROCURADORA DA FAZENDA NACIONAL) - Sim, sim. É verdade.

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO – Muito obrigado."

A iniciativa do ministro pareceu uma quebra de protocolo. Na verdade, era uma postura condizente com quase meio século de previsão regimental. Mas como quem não é visto não é lembrado, o dispositivo, que raramente é usado, terminou esquecido por uma Casa que vive de suas regras internas. Pena que seja assim.

No desafio de estudar uma Suprema Corte, são infinitas as ferramentas de análise, assim como os caminhos a serem percorridos. É possível se dedicar a historiografar a Corte a partir de suas decisões. Outra forma é se dedicar à biografia de cada julgador. Há quem prefira entender os regimentos internos ou as práticas de tradição. Não podemos esquecer, nesse estoque de possibilidades, a arquitetura dos prédios das Supremas Cortes. O desenho de cada edifício pode exercer uma profunda influência no bem-estar de quem o frequenta e revelar as relações de poder prevalecentes naquele ambiente. A ligação entre a arquitetura de prédios públicos e a história do país é umbilical e não deve ser negligenciada.

Como sabemos, o desenho arquitetônico do interior do plenário do STF – assim como ocorre em todos os tribunais brasileiros – diverge de muitos outros desenhos que traçam a configuração de colegiados judiciais mundo afora.

Na Suprema Corte dos Estados Unidos, na Corte Constitucional Federal alemã, na Suprema Corte de Israel, na Corte Constitucional da Coreia do Sul, na Corte Constitucional da África do Sul, na Suprema Corte do Quênia..., os julgadores se sentam de frente para aqueles que vindicam justiça à luz das normas presentes – formal ou materialmente – na Constituição.

No Brasil, não. Os julgadores se voltam para eles mesmos, ficando fisicamente impelidos a debaterem apenas uns com os outros, forçados a darem as costas ou a ficarem de lado para os advogados e pessoas presentes. O formato de "U" fecha fisicamente o colegiado nele próprio. Apenas o presidente, sentado na base do "U", se posta diretamente ao público. Os demais integrantes, não.

Apesar de essa disposição em nada se comunicar com a qualidade da prestação jurisdicional, ela pode exercer – ou representar – certos simbolismos enraizados no cotidiano da Corte, daí valer a pergunta: por quê é assim?

Há muitas respostas possíveis. Uma das hipóteses é a de que esse desenho é fruto da compreensão histórica de que o julgamento é resultado de uma interação que ocorre no seio do colegiado de julgadores apenas, não envolvendo, nos debates, os patronos que representam aqueles que se dirigem ao Judiciário.

Não sem razão não temos, com frequência, julgadores da Suprema Corte fazendo indagações aos patronos, com a finalidade de melhor esclarecer as complexas questões que ilustram leading cases formados na cúpula do sistema de Justiça.

A novidade adotada pelo ministro Roberto Barroso no julgamento do RE 601.314 – e em outros episódios, também por outros ministros, mas, sempre, excepcionalmente - é uma novidade velha, haja vista que a base regimental que lhe dá guarida, como já referido, está em vigor há quase meio século.

O regimento interno do STF (DJ 27/10/19803) dispõe no caput do art. 96: "Em cada julgamento a transcrição do áudio registrará o relatório, a discussão, os votos fundamentados, bem como 'as perguntas feitas aos advogados e suas respostas', e será juntada aos autos com o acórdão, depois de revista e rubricada".

O § 1º do mesmo art. 96, por sua vez, diz: "Após a sessão de julgamento, a Secretaria das Sessões procederá à transcrição da discussão, dos votos orais, bem como das 'perguntas feitas aos advogados e suas respostas'".

O derradeiro comando é o parágrafo único do art. 124: "Os advogados ocuparão a tribuna para formularem requerimento, produzirem sustentação oral, ou 'responderem às perguntas que lhes forem feitas pelos ministros'".

O regimento de 1970 (DJ 4/9/1970) repetia os mesmos comandos nos seus art. 92 e parágrafo único do art. 129. Desde então, a possibilidade de os julgadores formularem aos advogados perguntas acerca do caso em julgamento encontra expressa previsão regimental4, apesar de sequer necessária ser essa previsão, uma vez que tal interação está embutida no devido processo legal5 e na ampla defesa6.

Esclarecimentos acerca dos fatos, mesmo em se tratando de ações do controle abstrato de constitucionalidade; perguntas sobre a consistência dos fundamentos aportados em seus pedidos; reposicionamento da aderência de precedentes citados para ilustrar o leading case; eventuais pontos sobre consequências ou condições de cumprimento da decisão; dúvidas quanto a números apresentados no caso..., são muitas as possibilidades a serem exploradas numa relação mais dialógica e verdadeiramente cooperativa entre julgadores e patronos.

Tanto que, logo após o ministro Barroso ter feito o citado questionamento, o presidente Ricardo Lewandowski deu início a outra interação. Eis trechos:

"O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (PRESIDENTE) - Doutora, eu tenho também uma questão. Permita-me. Acho que esta é uma prática salutar e muito utilizada em outras cortes supremas, especialmente na Suprema Corte dos Estados Unidos, que teve recentemente o desfalque lamentável de um grande juiz, Scalia.

Eu queria perguntar a Vossa Excelência se, uma vez obtidos os dados para instruir um processo administrativo fiscal, se porventura esse processo administrativo fiscal redundar num processo criminal, ou seja, em uma sonegação fiscal passível de uma persecução criminal, esses dados poderão ser compartilhados com a autoridade responsável pela persecutio criminis?

A SENHORA LUCIANA MIRANDA MOREIRA (PROCURADORA DA FAZENDA NACIONAL) - Na verdade, para os crimes contra a ordem tributária, faz-se necessário o esgotamento da via administrativa.

Então, somente após o esgotamento da via administrativa, com o lançamento, faz-se a comunicação ao Ministério Público Federal."

Não é somente a Suprema Corte dos Estados Unidos que constrói seus precedentes a partir de exaustivos debates envolvendo não apenas os julgadores, mas, também, os patronos. Na África do Sul, o advogado tem dez minutos para expor seus argumentos e fundamentos para a Corte Constitucional sabendo que, a partir daí, será cordialmente interrompido pelos julgadores sempre que dúvidas ou quaisquer colocações oportunas vierem à mente. A consciência de cada juiz constitucional é a de que todos estão ali para extrair dos advogados o máximo de interação possível, não apenas para ouvir os patronos proferirem, orgulhosos, os seus discursos.

Em 1997, a Corte Constitucional da África do Sul julgava o célebre caso Soobramoney v Minister of Health (Kwazulu-Natal) (CCT32/97), um marco acerca das formas de concretização política e também judicial do direito à saúde. Questionamentos e respostas entre o advogado do Estado e o juiz da Corte, Albie Sachs, deram a impressão de que a discussão se tornava mais acirrada. Quem recorda o episódio é o próprio Albie.

"Lembro-me vividamente de uma altercação entre mim e o advogado sobre esta questão. Fiz-lhe a seguinte pergunta: ele queria dizer que alguém que morasse nas montanhas poderia ir a juízo e dizer que queria água de torneira, mesmo que o dinheiro gasto para atender sua reivindicação particular pudesse ser usado para fornecer água a dez mil pessoas moradoras nas planícies abaixo?", relembra.

O advogado do Estado respondeu de forma inapropriada. Ele disse que o argumento do juiz Albie Sachs não passava de um "argumento emocional" Albie não se intimidou e mostrou que, na arena dos debates jurídicos, é a força do melhor argumento que há de triunfar.

"Não, propus, fazia parte da promoção do melhor uso de recursos escassos para efetivação de direitos sociais e econômicos. E perguntei eu, se somente os indivíduos que tiverem os cotovelos mais pontudos (e os melhores advogados) devem conseguir casa, água e eletricidade, e além disso, a Constituição deve ser interpretada de forma a conferir a cada juiz de cada tribunal o direito e o dever de decidir quem deve ter acesso prioritário a bens sociais escassos?", rememora Albie Sachs.

O advogado replicou que sim, "se os indivíduos em questão estiverem abaixo do nível de existência compatível com a dignidade, seus direitos estavam sendo violados"7. Com sua resposta, a interação entre juiz e patrono voltou aos trilhos.

Debates como esse passam a fazer a história da jurisdição constitucional da forma mais nobre possível, por meio daquilo que eleva a humanidade: a discussão cordial – mesmo que assertiva – sobre questões essenciais à comunidade, a partir de parâmetros objetivos como os comandos constitucionais e os precedentes da Corte.

Um mundo que evolui em suas ações de impacto coletivo graças ao debate entre pessoas bem intencionadas e preparadas para articular ideias de forma livre e respeitosa é um mundo mais civilizado do que aquele que apela para a gritaria ruidosa, ou pior, para a opressão, pela força bruta, do mais fraco pelo mais forte.

A literatura é repleta de exemplos. Obras como O Mercador de Veneza, de Shakespeare, inspiram a capacidade humana de triunfar usando argumentos. Quando duas ou mais pessoas duelam por ideias e ao final uma dessas ideias prevalece, foi a ideia que triunfou, não a pessoa. Somos mensageiros de nossas ideias e os fundamentos que utilizamos para justificar a nossa posição correspondem a uma contribuição que damos ao propósito maior de chegar a uma reposta próxima do que seja a verdade. Por isso, num debate justo e transparente, não há pessoas perdedoras. Há apenas uma livre circulação de proposições que, após serem intelectualmente testadas, à luz de comandos objetivos, sobreviverão ou perecerão.

Esse cenário apresenta o estado da arte da mais pura humanidade, da civilização, do virtuoso legado que o Iluminismo foi capaz de cultivar e consolidar entre nós. Quem quer que tenha tido contato com O Mercador de Veneza jamais esquecerá o debate entre Shylock e Pórcia acerca do cumprimento – mesmo que pela ponta de uma faca – de um contrato livremente celebrado.

Como esse debate teria sido possível se Shylock tivesse se colocado perante o Duque de Veneza e lido um discurso previamente escrito para depois se sentar na primeira fileira de assentos do Tribunal passando a ouvir a sucessão de leituras de votos? Teria havido a defesa de direitos perante julgadores num Palácio da Lei?

Evidente que grandes oradores ocuparão seus lugares na história e sua mensagem será igualmente imortalizada no modelo adotado no Brasil. O mesmo se diga dos julgadores e julgadoras que prestam a jurisdição fiados na Constituição de forma independente e reafirmadora de direitos.

Todavia, se temos sido capazes de construir, a partir da nossa forma de defesa oral, ícones oradores, não podemos dizer o mesmo quanto a exímios debatedores. Isso, pelo simples fato de não termos debates. Gerações e gerações de juristas têm sido testadas quanto a seus talentos enquanto oradores, não como debatedores. Não poderíamos exercitar ambas habilidades tão cultivadas nas civilizações mais avançadas que a semeadura das luzes foi capaz de ver florescer?

A Constituição Federal tem sinalizações. A alínea "a" do inciso XXXIV do art. 5º dispõe que "são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder". Não é "discurso" sobre direitos. Não é "oração" sobre direitos. É "defesa" de direitos. Defesa!

O inciso LV do art. 5º, por sua vez, diz: "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes". Questionamentos, esclarecimentos, posições, retificações, reafirmações..., são meios e recursos inerentes ao contraditório ou à ampla defesa de direitos? Parece que sim.

Se promovermos um diálogo de fontes normativas e, à luz dos dispositivos acima transcritos da Constituição, buscarmos vitalizar o caput e o § 1º do art. 96, além do parágrafo único do art. 124, todos do Regimento Interno do STF, reconhecendo a teleologia do comando constitucional que assume o advogado como indispensável à administração da justiça (art. 133), teremos a base positiva a partir da qual a mudança de comportamento institucional pode se operar no Supremo Tribunal Federal.

Na década de 1920, Charles Evans Hughes, que havia sido juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos – e para lá voltaria como Chief Justice - afirmou que a sustentação oral, no modelo estadunidense, ajuda os julgadores a "separar o joio do trigo" e que, na maioria dos casos, "a impressão que um juiz tem ao final de uma defesa oral conduz a sua posição final"8. É a opinião de quem viveu a verdade.

Se uma boa apresentação é capaz de salvar um caso, o mesmo se diga quanto a afundar julgamentos aparentemente vitoriosos. Esse alerta é feito pela juíza Ruth Bader Ginsburg, também da Suprema Corte dos Estados Unidos. Ela diz: "eu tenho visto vários potenciais vencedores se tornarem perdedores, no todo ou em parte, devido aos esclarecimentos provocados na discussão oral"9.

No Brasil, tomamos uma decisão inteiramente compatível com o povo que somos. Admitimos que qualquer advogado ou advogada tenha o direito de, em nome da parte que representa, fazer uso da tribuna. Isso não é comum mundo afora.

Acontece que toda originalidade tem o seu preço. Um efeito colateral é a defesa oral ser feita por profissionais que não se prepararam adequadamente para tal missão, que negligenciaram o nervosismo de se estar ali ou que não contam com pleno conhecimento dos protocolos e cerimônias da Corte. O grave é que o fracasso do advogado na defesa oral significa o prejuízo das partes, ou seja, ele prejudica terceiros que a ele confiaram um mandato para em seu nome vindicar Justiça.

Contudo, é graças a nossa originalidade que temos testemunhado momentos profundamente unificadores da diversidade que somos. Há sustentações feitas no Supremo Tribunal Federal que ninguém jamais verá em nenhum outro lugar do mundo.

Em 2009, o STF deliberou acerca do caso Raposa Serra do Sol (PET 3388). No Brasil, nenhuma língua indígena é considerada oficial, apenas a língua do europeu, o Português. Mesmo assim, a advogada Joênia, moradora de Roraima, com brincos, colares e a face pintada com as cores do seu povo, deu início à sua fala na língua indígena. Depois, traduzindo, ela disse: "Nós estamos esperando que esse dia do julgamento bote um ponto final em toda a violência que os povos indígenas da Raposa Serra do Sol têm vivido pela disputa sobre suas terras. Que os nossos valores espirituais nossos valores culturais sejam considerados na aplicação dos nossos artigos da Constituição de 1988".

Uma índia, de beca, exercendo a nobre função de advogada, com a face pintada, usando brincos e colares indígenas, vindicando direitos pertencentes a sua gente, elevando a sua voz contra o que entendia injusto, e iniciando a sua fala com uma oração na língua falada pelos Wapichana. A Corte não lhe demandou tempo de advocacia, carteira suplementar, o cumprimento de requisitos adicionais para atuar ali, nada. Em que outra Suprema Corte do mundo isso seria possível?

Tem mais. Em fevereiro de 1694, Dandara, uma guerreira negra no Brasil colonial, esposa de Zumbi dos Palmares, se atirou de uma pedreira ao abismo, após ter sido presa. Ela jamais aceitaria retornar à condição de escrava. Perdeu a vida. Manteve a dignidade.

Em fevereiro de 2017, em Fortaleza, a travesti Dandara dos Santos, cujo nome ela escolheu em homenagem à guerreira negra, foi barbaramente assassinada por um grupo de homens. A tortura foi gravada e divulgada nas redes e mídias sociais.

Pouco mais de 90 dias após o assassinato de Dandara dos Santos, Gisele Alessandra Schmidt e Silva usou a tribuna do STF para levar suas razões como representante do amicus curiae Cidadania de Gays, Lésbicas e Transgêneros na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4275. Foi a primeira advogada transexual a usar essa tribuna. Tinha dois anos de formada. "Eu sou uma sobrevivente", disse, abrindo a sustentação.

Esse outro Brasil, no qual a transexual Gisele usa a tribuna da Suprema Corte do seu país para levar uma mensagem fiada na Constituição e sai daquele plenário coberta de honra e orgulho, é um país que pode tudo. É o Brasil que devemos querer para nós. Um país unido em sua diversidade a partir do plenário do STF.

Recentemente, foi o jovem Mateus Costa Ribeiro que usou nove minutos do tempo disponível para, da tribuna do plenário do Supremo Tribunal Federal, deixar a sua mensagem perante os julgadores. Tinha 18 anos de idade e era advogado há três meses. Portou-se como mais um brasileiro que honrou a tribuna e a cada um de nós. Em qual outro país do mundo um jovem de 18 anos, com três meses de prática, teria desempenhado tão grave missão perante o colegiado da Suprema Corte do país?

Essas são demonstrações de que mesmo no modelo atual, no qual os julgadores falam e debatem apenas com eles mesmos, podemos inserir originalidade: aqui, qualquer um é bem-vindo a, atendendo a cerimônia da Corte, elevar o semelhante graças aos direitos que temos em nossas leis e na Constituição.

Mesmo porque, devemos reconhecer, qualquer modelo contará com as suas fragilidades. No ano de 1948, Frederick B. Weiner escreveu o seguinte na Harvard Law Review: "foi-me dito por um juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos que quatro de cada cinco argumentos aos quais ele pode se referir por ter escutado não são sequer bons"10. Em 1973, o presidente da Suprema Corte, Warren E. Burger, disse que "de um terço a metade dos advogados que aparecem nos casos mais sensíveis não estão realmente qualificados para prestar uma representação absolutamente adequada"11. E o juiz William O. Douglas desabafou em suas memórias que 40% dos advogados que discutiram na Suprema Corte eram simplesmente "incompetentes"12.

Ou seja, pessoas não apropriadamente qualificadas para se apresentarem perante a Suprema Corte existirão em qualquer que seja o modelo e o país. Portanto, não se trata exatamente de elevar o nível dos patronos, mas de potencializar o conceito presente de ampla defesa, de devido processo legal e, especialmente, de responsabilidade dos advogados que dirigem as suas vocações em favor do semelhante, à luz da Constituição, na Suprema Corte do país.

É bem verdade que é mais cômodo dizer: "Pouco importa a sustentação oral. O caso já vem decidido antes". Para os céticos, contudo, vale a resposta de Antonin Scalia e Bryan Garner, quando explicam que esse "ceticismo se provou falso em todo e qualquer estudo comportamento judicial que conhecemos"13.

Essa interação pode reclamar dos juízes e juízas do Supremo maior abertura para a reconsideração de seus votos. Está aí mais uma valia da mudança. O maior dinamismo da defesa oral imporá igual dinamismo no cotejo do que está sendo esclarecido da tribuna e o que se trouxe num voto. Faz parte.

O Chief Justice John Roberts, dos Estados Unidos, certa feita anotou algo que merece a nossa atenção. Disse ele: "Minha principal conclusão depois de um ano estando do outro lado do balcão é que o debate oral é terrivelmente importante"14. Acerca desse modelo mais cooperativo, tem-se Ruth Bader Ginsburg a dizer: "o melhor argumento, na sua melhor parte, é a troca de ideias sobre o caso, um diálogo ou discussão entre o tribunal e o advogado"15.

Entre nós, esse diálogo é o próprio dever de cooperação previsto no Código de Processo Civil, no art. 6º, que diz: "Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva".

É claro que a mudança pode esbarrar no medo do novo. A história da humanidade tem sido assim, feita entre raízes e cometas, ambos necessários, mas com propósitos distintos. Caberá sempre ao presidente do STF ser a passagem segura que opera com sabedoria a correlação de forças entre a tradição e a modernidade.

Recorrendo novamente ao desenho arquitetônico das Supremas Cortes, em Israel, há dois muros opostos na entrada do edifício-sede do Tribunal. O primeiro foi erguido com as rochas de Jerusalém. O outro, é branco, liso e macio. Ficam frente à frente e representam o diálogo permanente entre tradição e modernidade. Um se alimenta do outro e, canalizando reciprocamente essa extraordinária energia, há a escadaria de três lances, cada um com dez degraus. A escadaria liga a base ao topo do prédio. Ela é responsável pela interconexão entre o tradicional e o moderno, sem destruir nem reduzir o significado de nenhum deles.

Deve haver na Suprema Corte líderes capazes de operarem essa correlação de forças, funcionando como uma escadaria que, partindo de baixo, toca o ápice das potencialidades transformadoras do Tribunal, mantendo harmônicas as distinções inerentes à nossa pluralidade e equilibrando o tradicional com o moderno.

O prédio do Supremo Tribunal Federal também tem as suas mensagens encriptadas no desenho arquitetônico, mas dotadas de chaves-mestras entregues a cada cidadão ou cidadã constitucional do país.

Sediado na capital Federal, Brasília, desde 21 de abril de 1960, seu edifício-sede fica na Praça dos Três Poderes, numa obra do arquiteto Oscar Niemeyer, com projeto original de Lúcio Costa. Diante do prédio fica a estátua que personifica a Justiça, do escultor Alfredo Ceschiatti, em granito de Petrópolis e pedra monolítica.

Há, nas colunas da fachada externa, linhas retas e curvas. As retas podem ser vistas como a tradição, o que é clássico. Já as curvas, representam o moderno, a possibilidade que toda instituição multissecular tem de mudar. As duas linhas, retas e curvas, dão conformação e imprimem personalidade ao edifício. São, ao mesmo tempo, a sua base de sustentação. Sem elas, a Corte pode vir a ruir.

Uma dinâmica mais dialógica no plenário do STF será capaz de regatar o valor e a finalidade de dispositivos regimentais que estão em vigor há quase meio século, sem intensa utilização até aqui. Seria a conciliação entre as linhas retas e as linhas curvas. Tradição e modernidade, juntas, atuando em favor da qualidade dos debates que traçam o destino nacional por meio do exercício da jurisdição constitucional.

Não nos esqueçamos que, se oradores fazem história com os seus discursos, debatedores também o fazem. Precisam apenas de oportunidades.

Estreando a sua bem-sucedida carreira de advogada, Ruth Bader Ginsburg, defendendo a igualdade entre os sexos perante as leis dos Estados Unidos, ocupava a tribuna numa Corte inteiramente masculina, quando um dos julgadores interrompeu o seu argumento e disse: "A palavra 'mulher' não aparece uma única vez sequer na Constituição dos Estados Unidos". Disse isso para silenciá-la. Em vão. Ruth respondeu, de improviso: "Nem a palavra "liberdade", Excelência". Ganhou o caso.

Temos mais processos tramitando no Supremo Tribunal Federal do que boa parte das Cortes do mundo. Temos mais juristas do que a maioria das nações, também. Há uma juventude repleta de talento forjada em moot courts que têm se espalhado em todo o país. Jovens daqui passam a ganhar destaque em competições internacionais de debates jurídicos e simulações de julgamentos16 que tomam como base o formato de Cortes internacionais onde o debate com patronos é a regra, não a exceção. Esses jovens estão prontos para assumirem mais à frente a grave responsabilidade de consolidarem a mudança para as futuras gerações.

Se combinarmos essa realidade com o fato de o Supremo Tribunal Federal ser um dos mais inclusivos do mundo, permitindo que qualquer um de nós, munido de uma carteira da OAB, vindique Justiça perante os julgadores daquela Casa, não é exagero afirmar que, quanto à metodologia de julgamento de Supremas Cortes, podemos ser a inspiração do constitucionalismo global contemporâneo.

Ninguém é capaz de imaginar onde uma geração talentosa de juristas do Brasil será capaz de chegar se ela for estimulada a, além de discursar, debater, inspirada pela realização de Justiça constitucional que ela vê acontecer no plenário do Supremo Tribunal Federal. Isso vale para patronos e julgadores. Por isso, e por muito mais, vale mudar. Tudo com base no Regimento Interno do STF e em proveito da qualidade da deliberação judicial colegiada. É apenas uma questão de postura institucional. Para isso, basta que o Supremo dê o primeiro passo. E não pare mais.

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1 HC 105.959 (rel. p/ac min. Edson Fachin, DJe 15/6/2016): "(...) 1. Não cabe pedido de habeas corpus originário para o Tribunal Pleno contra ato de ministro ou outro órgão fracionário da Corte.(...)".

2 HC 126.292 (min. Teori Zavascki, Pleno, DJe 17/5/2016): "(...) 1. A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal. 2. Habeas corpus denegado".

3 O primeiro Regimento Interno do STF foi organizado em virtude dos arts. 340 e 364 do decreto 848, de 11 de Outubro de 1890 e do art. 8º do decreto 1, de 26 de Fevereiro de 1891.

4 No Regimento Interno de 1940 (DJ 28/2/1940), o art. 58 dizia: "Os advogados que assistirem às sessões, terão assento em lugar separado do público. Quanto, porém, tiverem de requerer ou fazer sustentação oral, ocupação a tribuna, ou outro lugar, no recinto, designado pelo presidente". Não dispunha sobre "perguntas". O art. 68 dizia: "O relatório, discussão e votos, em cada julgamento, serão taquigrafados e redigidos convenientemente, juntando-se aos autos respectivos as notas taquigráficas, que serão rubricadas pelos respectivos ministros, reportando-se a elas o relator, no acórdão. (Decreto 19.656, de 3 de fevereiro de 1931, art. 6º)". O Regimento de 1909 (24/5/1909, de relatoria de Epitácio Pessôa), dispunha, no art. 34: "Os advogados que assistirem ás sessões terão assento em lugar separado do publico e da mesa dos juízes; quando, porém, tiverem de exercer qualquer acto do seu ministerio perante o Tribunal, occuparão lugar no próprio recinto reservado aos ministros". Sem previsão expressa para perguntas. Eis o art. 55: "A sentença será escripta pelo relator, ou por outrem em papel por ele rubricado. Si o relator fôr vencido, o presidente designará para redigir a sentença um dos juízes, cujo voto tenha sido vencedor. O accordam conterá as conclusões das partes, as requisições finaes do procurador geral, os fundamentos de facto e de direito e as decisões; será assignado pelo presidente e pelo relator, com a declaração da qualidade de cada um, e depois pelos demais juízes, sendo licito a qualquer deles declarar os motivos de seu voto em seguida á assinatura".

5 Art. 5º, LIV, da CF: "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal".

6 Art. 5º, LV, da CF: "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes".

7 Sachs, Albie. Vida e Direito: uma estranha alquimia. Tradução de Saul Tourinho Leal. São Paulo: Saraiva/IDP, p. 168.

8 Charles Evans Hughes, The Supreme Court of the United States, 61, 63 (1928). A transcrição original: "Writing in the 1920s, Chief Justice Charles Evans Hughes commented that oral argument helps the justices 'separate the wheat from the chaff' and that, in most cases, 'the impression that a judge has at the close of a full oral argument accords with the conviction which controls his final vote'". Em "Supreme Court and Appelate Advocacy. Mastering oral Argument", de David C. Frederick, publicado em 2003 pela West, "A Thomson Reuters business".

9 Ruth Bader Ginsburg, "Remarks on Appelate Advocacy", 50 S.C. L. Rev. 567, 570 (1999). A transcrição original: "Justice Ruth Bader Ginsburg notes, 'I have seen few victories snatched at oral argument from a total defeat the judges had anticipated on the basis of the briefs'. But I have seen several potential winners become losers in whole or in part because of clarification elicited at oral argument". Em "Supreme Court and Appelate Advocacy. Mastering oral Argument", de David C. Frederick, publicado em 2003 pela West, "A Thomson Reuters business".

10 Frederick Bernays Wiener, "Oral Advocacy,", 62 Harv. L. Rev. 56, 56 (1948). No original: "In 1948, Frederick B. Weiner wrote in the Harvard Law Review that '[w]ithin the [past] year I have been told by a justice of the Supreme Court of the United States that four out of every five arguments to which he must listen are 'nor good'". Em "Supreme Court and Appelate Advocacy. Mastering oral Argument", de David C. Frederick, publicado em 2003 pela West, "A Thomson Reuters business".

11 Warren E. Burger, "The Special Skills of Advocacy," 42 Fordham L. Rev. 227, 234 (1973). No original: "In 1973, Chief Justice Warren E. Burger expressed the opinion that ‘from one third to one-half of the lawyers who appear in the serious cases are not really qualified to render fully adequate representation'". Em "Supreme Court and Appelate Advocacy. Mastering oral Argument", de David C. Frederick, publicado em 2003 pela West, "A Thomson Reuters business".

12 William O. Douglas, The Court Years, 1939-1975, at 183 (1980). No original: “And Justice William O. Douglas complained in his memoirs that 40 percent of the lawyers who argued in the Supreme Court were ‘incompetente’”. Em “Supreme Court and Appelate Advocacy. Mastering oral Argument”, de David C. Frederick, publicado em 2003 pela West, “A Thomson Reuters business”.

13 Antonin Scalia & Bryan A. Garner, Making Your Case: The Art of Persuading Judges 139 (2008). No original: “Justice Antonin Scalia and Bryan Garner explain, however, '[t]his skepticism has proved false in every study of judicial behavior we know'". Em "Supreme Court and Appelate Advocacy. Mastering oral Argument", de David C. Frederick, publicado em 2003 pela West, "A Thomson Reuters business".

14 No original: "Chief Justice Roberts 'My main conclusion after a year of being on the other side of the bench is that oral argument is terribly, terribly important'". Ela também consta em "Supreme Court and Appelate Advocacy. Mastering oral Argument", de David C. Frederick, publicado em 2003 pela West, "A Thomson Reuters business". p. 3.

15 Ginsburg, "Remarks on Appelate Advocacy", 50 S.C. L. Rev. At 569. No original: "As Justice Ginsburg has written, '[o]ral argument, at its best, is an exchange of ideas about the case, a dialogue or discussion between court and counsel'". Em "Supreme Court and Appelate Advocacy. Mastering oral Argument", de David C. Frederick, publicado em 2003 pela West, "A Thomson Reuters business".

16 Escrevi a respeito.

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Colunista

Saul Tourinho Leal é doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP, tendo ganhado, em 2015, a bolsa de pós-doutorado Vice-Chancellor Fellowship, da Universidade de Pretória, na África do Sul. Foi assessor estrangeiro da Corte Constitucional sul-africana, em 2016, e também da vice-presidência da Suprema Corte de Israel, em 2019. Sua tese de doutorado, "Direito à felicidade", tem sido utilizada pelo STF em casos que reafirmam direitos fundamentais. É advogado em Brasília.