No colo das dores do povo é onde se deita qualquer democracia. Não na ambição dos enriquecidos, na presunção dos eruditos ou no messianismo de militantes fanáticos. Numa nação desigual como a brasileira, atolada no lamaçal de privilégios e entornada pelo vendaval da corrupção, a voz dos brasileiros comuns desprezados se eleva afirmando com altivez: "o Brasil pertence a nós também". Eles estão certos.
Democracia é povo. Povo é raiz. Ela não se constitui apenas por professores refinados, jornalistas com visibilidade, artistas que dormem em conforto ou jovens privilegiados que se enxergam como revolucionários em sua megalomania infantil. Povo mesmo, com cicatriz. Gente sofrida cujo cotidiano duro mostra a verdade arrebatadora que apenas a privação e a invisibilidade exibem. É dessa vitamina que a democracia se energiza. Democracia é sangue, suor e lágrimas. Churchill sabia o que dizia.
E esse povo comum tem demandas. Demandas que não podem ser negligenciadas, sob pena de, como água represada, destruir barragens e alagar o amanhã para sempre.
Num país cuja Constituição assegura insistentemente a "segurança" não é justo que alguém perca o seu ente querido num assalto e não encontre, nas lideranças do seu país, compaixão e solidariedade. O desprezo à dor de quem sofre ou a ideologização da lágrima que escorre num rosto aflito viola o inciso I do art. 3o, que aponta como um dos objetivos fundamentais da República "construir uma sociedade livre, justa e solidária".
Isso porque os direitos humanos não têm lado, não devem ter lado, não podem ter lado. Eles são universais, abrangem a todos indistintamente. Se alguém, antes de ter empatia por um irmão dilacerado, pergunta com qual partido essa pessoa simpatiza, esse alguém não ama o próximo, apenas idolatra um partido. Desse tipo de subalternidade mental nada de verdadeiramente redentor jamais será construído no seio da nação.
Não podemos esquecer: o povo é o poder. O preâmbulo da Constituição se abre com a expressão "Nós, representantes do povo brasileiro". O parágrafo único do art. 1o assenta que "todo o poder emana do povo". O art. 14 imortaliza a "soberania popular". O art. 78, ao narrar o compromisso a ser prestado pelo presidente e o vice-presidente da República, cita o de "promover o bem geral do povo brasileiro". Sim, o povo é o poder.
Mas esse poder precisa de controle, sob pena de se tornar abusivo ou autoritário. O povo é soberano no voto, não no julgamento. Por isso, numa democracia constitucional quem julga é o juiz. Aristóteles, em Política, repudiava o governo da maioria capaz de esmagar as minorias. Seria uma tirania. O povo é o poder, mas sempre controladamente.
Esse controle judicial dos abusos cometidos pelo povo em detrimento da democracia encontra na sede da Corte Constitucional da África do Sul uma representação arquitetônica simbólica. Diante do prédio, em Johanesburgo, há o monumento "A chama da democracia", onde uma pira queima initerruptamente, mostrando que enquanto o Tribunal tiver independência para cumprir sua vocação constitucional de preservação dos direitos fundamentais, a democracia seguirá irradiando seus raios de luz sobre todas as pessoas, igualitariamente.
Acontece que o Judiciário controla o poder do povo, quando abusivo, mas não pode se imaginar capaz de ser a encarnação isolada do próprio povo. Hão de ser reconhecidas as limitações institucionais dos juízes para empurrar adiante a roda do poder. Em séculos de história, sempre que, do abismo dos acontecimentos, cadáveres escarnecidos povoaram guerras e revoluções, foram os políticos que lideraram o povo no retorno à civilização, jamais um juiz. É preciso, portanto, humildade judicial.
A política é o começo, o fim e o meio. E ela está viva como nunca. Cintila nas ruas, nas praças, nas cidades e nos vilarejos. As pessoas falam, debatem, questionam, até brigam por suas convicções. Há candidatos para todos os gostos. Sobra democracia.
Quando Nelson Mandela, de punho cerrado diante da multidão, gritava: "Amandla!", o povo respondia eletrizado: "Ngawethu!". Nas línguas bantas, Amandla quer dizer "Poder". "Ngawethu"significa "para o povo".
Lincoln, chamado à responsabilidade de reconciliar uma grande nação mergulhada no pântano da Guerra de Secessão, imortalizou em Gettysburg aquele que se tornaria o mais belo conceito de democracia jamais visto: "O governo do povo, pelo povo, para o povo".
E o povo gosta de mudar. Ele tem a mania de canalizar para as urnas mágoas acumuladas ao longo dos mandatos. O Brasil que elegeu Juscelino Kubitschek, com o seu charme e progressismo, foi o mesmo que, cinco anos depois, elegeu o provinciano populista Jânio Quadros, num comportamento democraticamente anti-establishment.
Em 2008, defendi, no Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP, a dissertação de mestrado "Ativismo ou Altivez? O outro lado do Supremo Tribunal Federal". Há uma década o grande tema que se apresentava já era o aristocrático "governo dos juízes", feito de cima para baixo, por sábios experientes e de reputação ilibada desprovidos de um único voto sequer.
Boa parte da literatura já apontava ao tempo que uma das causas dessa condução aristocrática das coisas da República era exatamente a falta de uma exuberante legitimidade democrática dos representantes do povo, especialmente pela ausência de entusiasmo da juventude pela política partidária, seus candidatos, disputas, eleições e exercício do poder.
O cenário é bem diferente hoje. Há política em toda parte. Mesmo com seus insultos, simplificações grosseiras e senso comum, o fato é que a política foi colocada novamente na sala de estar dos brasileiros. Está em cada smartphone, cada tela de computador, cada tablet. Transita de vídeo em vídeo, áudio em áudio, post em post, pululando insistentemente em grupos de WhatsApp, contas do Facebook e fotos no Instagram. A política ingressou nos bares, sentou-se às mesas dos cafés, pediu licença para entrar na casa dos nossos tios e avós há tempos descrentes com as eleições e seus candidatos. É uma política das massas, de pessoas comuns, uma política simples feita por cada um de nós. Ela pode ser por vezes revanchista, errática, até caótica, mas como dizer que não se trata da quintessência da própria democracia?
Aqui entra o deputado Federal Jair Bolsonaro, que lidera a disputa para o honroso cargo de presidente da República e sofreu, semana passada, um odiento atentado à faca. É de se perguntar se a liderança popular de Bolsonaro nessas eleições mostra que a nossa democracia está em risco. Está? Claro que não. Política é feita disso, de gente na rua, de aplausos e vaias, de confusão e bate-boca. É feita de Bolsonaros também.
Se você acha que o Brasil está descendo ladeira abaixo na colina da democracia porque as pessoas estão sustentando suas opiniões com destemor, acredite, você está errado. Os excessos – mesmo crimes como o atentado – encontram numa nação civilizada os caminhos previstos pelas leis e são conduzidos por instituições. Na barbárie, o criminoso que tentou dar fim à vida de Bolsonaro teria sido linchado em praça pública. Numa democracia constitucional como a nossa, ele foi levado pelas autoridades para prestar contas pelo crime que cometeu. É isso.
Somos uma nação, não uma turba de assassinos caçando inimigos nas ruas. Aplicamos a "solução pacíficas das controvérsias" prevista no preâmbulo constitucional. O inciso I do art. 23 diz competir à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios "zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público". Somos governados por instituições, não pelo ódio, e quando este desafia aquelas, costuma levar a pior.
Também é pura presunção estigmatizar o eleitorado de Bolsonaro chamando-o de fascista. Esse eleitorado seria formado por cidadãs e cidadãos desesperados pela insegurança, brasileiros humilhados em suas convicções, jovens sem esperança, idosos magoados, militares queixosos, uma classe média angustiada e conservadores românticos que sonham com um passado que há tempos já passou.
Mas não teria sido a democracia feita também para esses grupos? Democracia não é um espelho para o qual o sujeito vaidoso olha e estranha tudo o que não é a sua imagem e semelhança. Segundo a Constituição, o pluralismo político é um dos fundamentos da República (art. 1º, V). Pluralismo de verdade.
O voto em Bolsonaro parece ser, pelo menos em parte, uma manifestação anti-establishment que de tempos em tempos o brasileiro faz.
No passado, rebeldia era contrariar a Igreja. Isso porque ela, tendo montado suas pautas morais, espalhava seu séquito fiscalizando se o povo estava alinhado. Quem não estava era pecador, libertino, homem de pouca fé, ovelha desgarrada, herege, fariseu, excomungado, pagão, desvirtuado, falso profeta e tudo o mais. Viver era culpa e sacrifício.
Apesar de todo o serviço prestado pela Igreja à sociedade – serviço que até hoje ameniza as dores de pessoas em nossa comunidade -, ainda assim o véu um dia se rasgou. Ninguém aguenta esse tipo de patrulhamento. Precisamos respirar, errar, cometer atos falhos. É assim que somos.
Hoje, não é mais a Igreja que entra nas casas das pessoas simples impondo pautas morais e fiscalizando comportamentos. São as manipulações ideológicas da luta por direitos. Não os direitos em si, mas a manipulação ideológica feita sobre eles.
Aqueles que são indiferentes a essa apropriação partidária e têm uma visão ecumênica das garantias constitucionais passam a suportar estigmas graves como os de serem xenófobos, homofóbicos, racistas, fascistas, nazistas, misóginos, opressores, agressores, conservadores, reacionários e tudo o mais. Refiro-me a todos que, em algum momento de suas vidas, foram injustamente taxados de tal forma por não se deixarem colonizar intelectualmente por uma revolução partidária infinita que simplesmente não tem razão de ser. Viver passou a ser novamente culpa e sacrifício.
Trivializar adjetivos é uma tragédia, pois agora canalhas podem passar impunes, já que as palavras não têm mais poder. Se alguém hoje chamar uma criança de herege, ela gargalhará. O mesmo acontecerá no futuro ao se acusar alguém de ser machista. E isso é horrível, porque há entre nós extremo machismo, mas banalizar isso, entendendo que, para ser machista, basta ser homem, é um erro colossal.
Além disso, esse autoritarismo moral foi tão longe a ponto de, por exemplo, exigir que idosos das zonas rurais tivessem a mesma compreensão de mundo de jovens urbanos das universidades. Condenou-se inocentes. Como é possível construir uma comunidade coesa assim? Marginalizar pessoas porque vestem suas filhas como princesas, comem carne, sacrificam carreiras pela criação das filhas e filhos, matam insetos, acreditam em Deus, são cristãs, aplaudem policiais ou cantam o Hino Nacional é machucá-las em convicções sinceras que integram a sua própria identidade. É como se elas não fossem bem-vindas. Acontece que o Brasil pertence a todos os que nele vivem.
Defender direitos constitucionais não pode significar impor o capricho de uns sobre os outros, pois isso gera ressentimento. Ninguém se lembrou que as pessoas hostilizadas têm emoções e votam. Acuadas, elas se unem. União de massas machucadas e urna aberta têm sido o motor das democracias.
Bolsonaro não está embalado apenas por um punhado de ordinários radicais. Em democracias, punhados não elegem presidentes. Parte considerável do eleitorado encontrou alguém que, em seu narcisismo e virulência retórica, catalisou todo o abandono de parcela considerável do país. O fenômeno mostra que há na nossa comunidade um grupo significativo que se sentiu silenciado, esmagado e ferido em suas ideias. Isso porque o governo anterior supôs que a política e o ciclo de conquista de direitos são uma guerra ideológica. Acontece que a política e os direitos vieram para libertar e estabelecer um ambiente de inclusão. Já nas guerras, vence o mais forte, esse é o problema.
Mas o extremismo político tem seus efeitos colaterais não apenas sobre as minorias covardemente insultadas – comportamento que os extremistas costumam adotar -, mas sobre o próprio líder sectário. É que a massa que aplaude eletrizada é a mesma que despreza indiferente. Quando o populista Jânio Quadros renunciou o mandato para voltar ao poder nos braços do povo viu o tempo passar sem que a população fizesse nada para tê-lo de volta. Durou pouco mais de 200 dias no poder. Depois, virou poeira varrida para debaixo do tapete da história. Superestimou o seu apoio popular.
O povo é como o fogo. Aquece, ilumina, traz segurança. Mas, se negligenciado, queima; se incitado, incendeia; se insuflado, destrói. Quando largado, migra para outro lugar. Não é bom brincar com os sentimentos da massa. Hoje ela bota. Amanhã ela tira. Cuidado.
A democracia que a Constituição de 1988 trouxe veio para ficar. Um governo não democrático, um Direito Penal como armadilha, a perseguição contra minorias e a tortura de pessoas por autoridades militares constituem um legado repulsivo que jamais assumirá o controle de nossas vidas novamente. Tanto que, segundo o inciso XLIV do art. 5o da Constituição, "constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático".
Por mais que sujeitos fantasiados marchem saudosamente pelas ruas do Brasil pedindo a volta da ditadura militar eles não têm mais a força que um dia tiveram a ponto de reverterem os virtuosos frutos do nosso constitucionalismo, que são: o crescimento da empatia entre as pessoas e das pessoas com outras espécies; a celebração da vida humana; o reconhecimento da dignidade de todos; a consolidação de uma cultura do conhecimento ou "das letras"; a fundação de um humanismo esclarecido; a substituição da superstição religiosa pelos benefícios da ciência; a firme convicção que, numa democracia, minorias não podem ser destruídas; a manutenção de ideais universais trazidos pela Constituição.
Nossos corações são irrigados pelas veias do "nunca mais". Independente de quem seja eleito presidente da República, nunca mais farão com a nossa democracia e com os nossos concidadãos o que fizeram a partir de 1964. Somos seres humanos, não nascemos para sermos medidos por "arrobas" ou colocados em paus de arara. Nossos órgãos genitais servem para nos dar prazer, fazer necessidades e abrir caminho para o triunfo da vida, não para receber eletrochoques de agentes estatais que agem em nome do poder constituído. Torturadores do Estado não merecem o nosso respeito. Eles são párias da comunidade, vermes cívicos. Por isso, devemos repetir: "nunca mais".
Mas essas são convicções calorosas que precisam ser refrescadas nas águas cristalinas da democracia, que é essencialmente plural. Por isso, é que uma coisa é detestar Bolsonaro ou se chocar com algumas de suas declarações, outra é qualificar a sua candidatura como antidemocrática e estigmatizar o seu eleitorado como fascista. É um equívoco intelectual fazê-lo.
A candidatura de Bolsonaro integra um mosaico essencialmente democrático, por mais confrontadora que seja boa parte de suas declarações numa cultura de fortalecimento irrenunciável dos direitos fundamentais. O seu eleitorado é formado por uma gama muito variada de brasileiros e nela pode estar o nosso pai, mãe, tio, amigo, colega de trabalho ou o vizinho. Não são fascistas, são brasileiros comuns que, democraticamente, entendem que esse candidato preenche melhor seus anseios e aspirações cidadãs.
Um dos princípios constitucionais sensíveis, cujo desrespeito enseja intervenção da União nos Estados ou no Distrito Federal, é a forma republicana, o sistema representativo e o "regime democrático" (art. 34. VII, "a"). Democrático não apenas para mim, mas para o outro também, qualquer que seja ele, incluindo Bolsonaro e seus apoiadores.
Somente democracias permitem que líderes populistas, homens demagogos ou candidatos extremistas registrem candidaturas, disputem eleições, façam seus discursos e amealhem votos. Sendo a nossa uma democracia constitucional, esses personagens respondem judicialmente quando incitam o ódio. Respondem mesmo. O povo tem direitos fundamentais e esse é um caminho sem volta. Também apenas em democracias o povo tem meios para, pelas urnas, derrotar livremente candidatos. Essa é a magia democrática, uma magia cuja chama segue viva e ardente como nunca entre nós.