Conversa Constitucional

A Corte Constitucional da Coréia do Sul vista por dentro

A Corte Constitucional da Coréia do Sul vista por dentro.

27/6/2018

A história mostra que, no curso dos acontecimentos mais relevantes das nações e de seus povos, emendas constitucionais não raramente abriram caminho para a reconstrução dos laços comunitários esgarçados pelos persistentes duelos entre irmãos que foram ensinados a odiar, ao contrário de amar uns aos outros.

Nos Estados Unidos, as emendas constitucionais números 13 e 14 serviram de ponte para que brancos e negros, nortistas e sulistas, encontrassem do outro lado do rubicão sangrento o fim da guerra civil. Aboliu-se a escravidão e assegurou-se igualdade de direitos. Emendas constitucionais podem pavimentar a avenida para uma reconciliação nacional. Na Coréia do Sul, essa foi a trilha rasgada na montanha das desavenças internas e externas que marcam a história de um país repleto de cicatrizes.

Em 29 de outubro de 1987, em resposta ao anseio por democracia e pela garantia dos direitos básicos, os partidos da situação e da oposição concordaram em estabelecer, pela primeira vez na história da Coréia do Sul, uma Corte Constitucional. Recolheram as armas do ódio e apresentaram a bandeira branca da conciliação. Situação e oposição aprovaram uma emenda à Constituição de 1948. Em 5 de agosto de 1988, como previsto no art. 113-3 da Constituição, entrou em vigor a Lei da Corte Constitucional. Em 15 de setembro do mesmo ano nove juízes foram nomeados. Então tudo começou.

A sede da Corte foi inaugurada em 1º de junho de 1993. O edifício fica em Bukchon-ro, na região de Jongno-gu. Tem cinco andares e um piso subterrâneo. Os pisos são circulares passando a impressão de que estão em rotação com o lobby, que fica na base, verticalmente aberto para a grande cúpula no topo do prédio.

A construção ocupa 16.808 m2. Em outubro de 1993, ela ganhou o Prêmio Coreano de Arquitetura. Nas imediações está a Aldeia Hanok, com suas casas coreanas sem que ninguém veja qualquer grande edifício. Ali, jovens circulam vestidos em suas lindas roupas tradicionais Hanbok, alternando o antigo com o moderno.

O local do prédio é histórico. Abrigava a casa de Hwanjae Park, Gyu-Soo (1807-1877), intelectual influente que chegou a ser o segundo vice-primeiro-ministro no final da Dinastia Joseon, tendo dirigido os rumos reformistas dessa dinastia à luz do Iluminismo. Era um progressista, alguém que achou que as coisas no país deviam mudar. E mudaram.

O edifício de pedra foi construído em estilo neoclássico, incorporando a tradição com a nova tecnologia. Ele é enxergado em três partes: base, meio e topo. Fontes variadas exibem abundância de água na área frontal. Parece um oásis, mas sem deserto. Um oásis no meio de jardins.

A divisão horizontal do prédio se une harmonicamente com as linhas verticais. A cúpula no topo é majestosa. Ela simboliza a Constituição, como ápice do ordenamento jurídico. As três linhas horizontais na parte superior ilustram o princípio constitucional da igualdade. As três colunas na entrada central representam a separação dos poderes. As colunas verticais e janelas corporificam o status da Corte como instituição que protege a Constituição e os direitos básicos dos cidadãos. É uma ambiência rigorosamente harmônica. Não há nada fora de lugar.

O emblema da Corte traz uma porta cercada por pilares. Os pilares simbolizam o papel do Tribunal Constitucional como defensor da Constituição, que é a base da nação. A imagem da porta aberta e a luz difusa que dela sai representam os esforços da Corte para realizar a democracia por meio da proteção dos direitos básicos dos cidadãos.

Além desse emblema, há o uso da Rosa de Saron como símbolo. Ela é a flor nacional do país. O fundo branco do círculo central da Rosa representa a igualdade, e o bordô das pétalas a autoridade da decisão do Tribunal, que é baseada na confiança do povo. O art. 112 (2) da Constituição diz que os juízes da Corte Constitucional não podem se engajar na política. O Tribunal é reputado pela população a instituição governamental mais confiável da nação. Ele tem sabido zelar por essa boa reputação.

A Rosa de Saron é uma flor originária do vale de Saron, em Israel, na zona litorânea próxima ao Mar Mediterrâneo, entre o Monte Carmelo e Tel Aviv, região mais exuberante do que as montanhas da Samaria ou da Judéia. Em hebraico é chamada de "Chavatzelet HaSharon". Ela aparece no livro de Cânticos da Bíblia, um conjunto de poemas trocados entre um casal que se ama. Em Cânticos 2:1-2, a mulher se diz parecida com a Rosa de Saron, o lírio dos vales. O homem responde concordando e enaltecendo a sua beleza.

É interessante que a Rosa de Saron tenha sido escolhida como símbolo da Corte Constitucional da Coréia do Sul. Na África do Sul, a logomarca da Corte é uma árvore frondosa com onze pessoas, brancas e negras, de pé, embaixo. A árvore protege as pessoas e as pessoas protegem a árvore. Esses países escolheram como símbolos de suas Cortes Constitucionais dois belos presentes da natureza. É preciso sensibilidade e sabedoria para escolher algo tão simples e, ao mesmo tempo, profundamente simbólico.

Em Israel, cada uma das cinco turmas da Suprema Corte exibe na parede, por trás dos assentos dos ministros e ministras, a Menorá, o candelabro de sete braços que é um dos principais e mais difundidos símbolos do Judaísmo. No Brasil, há no plenário do Supremo Tribunal Federal o Cristo Crucificado, feito por Alfredo Ceschiatti, com o madeiro confeccionado em pau-brasil. Os símbolos das Cortes Constitucionais dizem muito sobre os países, seus povos e as relações de poder dominantes.

No caso da Coréia do Sul, não poderia faltar jardins. Magníficos jardins.

Na frente, um jardim de três níveis construído pelo homem com um lago e uma fonte. Há obras de arte feitas de relevos de granito no centro do lago, onde a água cai. A queda d'água usa a diferença de nível do terreno para fazer a água fluir do solo mais alto para o mais baixo. É um espetáculo difícil de descrever.

No topo do edifício, num agradável terraço a partir do qual é possível ver muito de Seul, há outro jardim. São mais de 50 tipos de flora. Desse terraço também se vê o "Baeksong" (Pinheiro Lacebark), uma árvore de mais de 600 anos reconhecida como o Monumento Natural nº 8 da Coréia. É um tesouro nacional.

O tronco branco do "Baeksong" convida as pessoas a refletirem sobre a sabedoria, numa associação entre a cor do tronco e os cabelos brancos vindos com a maturidade. O "Baeksong" fica no jardim vizinho da antiga casa do segundo presidente do país. Também há pinheiros indígenas, flores e árvores que florescem e murcham em diferentes épocas do ano. Desse chão nasce um colorido mágico que beija os olhos de quem fita um ecossistema verdadeiramente belo cravado no seio de uma metrópole modernista de mais de 23 milhões de pessoas. Tudo isso no prédio de uma Corte Constitucional.

No fundo do prédio há mais jardins. Além de bancos postos sob uma típica cobertura coreana, o verde se espalha por todos os locais que a vista é capaz de alcançar. Desbravando o local, a pessoa se depara com uma grande estátua de bronze que introduz um homem em busca da ordem constitucional, da verdade e da justiça. É o guardião da Constituição. Na mão direita da estátua há um código jurídico encravado sobre uma balança simbolizando a verdade e a igualdade. Com a mão esquerda ele arrebenta uma corrente que restringe a liberdade. A estátua reconstrói a própria missão da jurisdição constitucional contemporânea.

Nem bem se cruza a entrada do edifício, antes mesmo do lobby, tem-se gravado numa pilastra horizontal que serve de base para o primeiro piso o art. 10 da Constituição, que diz: "A todos os cidadãos e cidadãs deve ser assegurado valor e dignidade humana e o direito de buscar a felicidade. Deve ser dever do Estado confirmar e garantir os direitos humanos fundamentais e invioláveis dos indivíduos". A interpretação da Constituição há de se dar tomando como ponto de partida esse dispositivo. É como tem agido a Corte Constitucional.

No vídeo institucional disponibilizado no site da Corte, consta: "Os nove justices, incluindo o presidente da Corte Constitucional, sempre elegem a felicidade das pessoas como a prioridade número 1 e procedem a julgamentos independentes, baseados em suas consciências acerca da Constituição".

Indo além, em depoimento acerca de como enxerga a sua missão, o Justice Kim Yi-Su anotou: "Eu irei me dedicar inteiramente a fortificar a fundação e os pilares da Constituição, abrindo ainda mais as portas de uma verdadeira democracia, consequentemente criando um mundo repleto de sonhos e de felicidade para as pessoas".

Não sem razão, em julho de 1997, o art. 809 da Seção 1 do Código Civil foi declarado inconstitucional. Ele proibia o casamento entre casais com o mesmo nome ancestral. O principal fundamento foi o art. 10 da Constituição, especialmente a parte que fala do direito de buscar a felicidade.

Pelo o que se vê, todo aquele que sentiu sobre os seus ombros o fardo pesado da dor e do sofrimento consegue celebrar, sem culpa nem vergonha, o desejo genuíno que a humanidade nutre pela sua própria felicidade. A Coréia do Sul, uma nação milenar, tem mostrado isso por meio da sua jurisdição constitucional.

No lobby do edifício, vê-se no chão um desenho circular branco sobrepondo-se a um retângulo preto. As formas rendem tributo à expressão: "O céu é um círculo e a Terra é um quadrado". Ele enaltece a harmonia do yin-yang, princípio central da filosofia chinesa onde yin significa escuridão e yang a claridade. As nove formas desse desenho representam os nove integrantes da Corte Constitucional.

Além de o prédio contar com um auditório para 150 pessoas, também há o plenário, que acomoda 100 visitantes. O design interior reproduziu a atmosfera das casas tradicionais coreanas, com janelas e portas de vigas com colunas. Ao fundo, a obra de arte "Dez degraus de luz", de Ha, Dong-Chul (1992, 280x560cm). A luz, raiz da vida, transita em dez telas. Os raios partem do topo em direção à base construindo uma representação simbólica da paz final na Terra. O número de telas marca as dez hastes celestiais da Coréia do Sul, consideradas pela filosofia chinesa as dez forças intangíveis do céu. Coincidência ou não, a emenda que criou a Corte foi a de número 10.

No plenário, os nove assentos escuros, de madeira, levam almofadas bordô, com o emblema da Rosa de Saron em cada um deles. Na parede, está ela, a Rosa de Saron, dourada, com um sol brilhando a partir do seu centro. Ela é vista por todos.

Diferente das togas dos ministros do Supremo Tribunal Federal, pretas, ou dos juízes da Corte Constitucional da África do Sul, verdes, as togas dos juízes e juízas da Corte Constitucional sul-coreana têm a cor bordô, que simboliza a suprema autoridade da Constituição. A toga exibe a forma "Y" nas golas de veludo, numa representação de uma chave, usada para resolver os problemas jurídicos suscitados no Tribunal.

Segundo o art. 111, Seção 1, da Constituição, a Corte Constitucional tem suas competências espalhadas em cinco atividades: 1) controle de constitucionalidade de leis requerido pelas cortes ordinárias; 2) impeachment de autoridades; 3) dissolução de partidos políticos; 4) disputas relativas a competências entre órgãos estatais e governos locais; e 5) reclamações constitucionais (remédio contra o exercício ou o não-exercício do poder público ou questionamento da constitucionalidade de uma lei ou, ainda, em grau de recurso contra decisões de tribunais ordinários).

Desde 2017, a Corte é presidida por Jinsung Lee. Ao seu lado estão os oito justices: Kim Changjong, Ahn Changho, Kang Ilwon, Seo Kiseog, Cho Yongho, Lee Seon-Ae, Yoo Namseok. Há apenas uma mulher, Lee Seon-Ae.

O presidente da Corte Constitucional é indicado pelo presidente da República entre os justices, com o consentimento da Assembleia Nacional. Ele serve como presidente do Conselho dos Ministros e preside o plenário. Três juízes são apontados a partir de pessoas selecionadas pela Assembleia Nacional e outros três a partir de pessoas indicadas pelo Chief Justice da Suprema Corte.

Os juízes têm um mandato de seis anos renovável por mais seis. Independente do mandato, caso completem 70 anos, têm de se aposentar. Se o mandato expirar ou a posição for declarada vaga, o sucessor ou sucessora deve ser apontado em 30 dias.

A lei declarada inconstitucional perde seus efeitos a partir do dia seguinte à decisão. São os efeitos ex nunc, adotando-se o modelo kelseniano em contraponto ao de Marshall, ou seja, não vigora o princípio da nulidade da lei declarada inconstitucional, mas o da anulabilidade. A exceção fica com as leis com imposições criminais. Essas, sim, perdem seus efeitos retroativamente. Um novo julgamento deve ocorrer.

Há três turmas compostas cada uma por três ministros. Quando uma reclamação constitucional é ajuizada, a turma faz uma análise prévia para conhecer ou não dela. Caso não se alcance a unanimidade para recusar, a reclamação é encaminhada ao plenário. Se a turma passar mais de 30 dias sem se manifestar, o caso é transferido automaticamente.

No plenário, pelo menos sete juízes devem estar presentes para que um caso seja ouvido. A decisão de mérito é tomada pela maioria. Para declarar a inconstitucionalidade de uma lei, é preciso quórum mais elevado: seis ministros. Há tanto sustentação oral como memoriais. O julgamento precisa ocorrer em até 180 dias do ajuizamento, mas esse prazo é flexível.

As deliberações acerca do impeachment, da dissolução de partido político e de disputas de competência requerem sustentação oral. Já a análise de constitucionalidade de leis reclama apenas argumentos escritos. Todavia, o plenário é livre para ouvir partes, pessoas interessadas e testemunhas. Há a presença do amicus curiae.

As pessoas podem assistir a sustentação oral. Já a deliberação dos julgadores, não. É na sala de deliberação onde os ministros tomam as suas decisões, sentados em assentos colocados ao redor da mesa retangular na antessala do plenário, com quatro cadeiras de cada lado e a do presidente na cabeceira. Ali eles discutem com as portas fechadas. Na parede ficam as fotos os ex-presidentes da Corte Constitucional.

Na constelação de Tribunais Constitucionais do final do século XX, o da Coréia do Sul é uma estrela reluzente que tem prestado um grande serviço à comunidade daquele país. A Emenda Constituição nº 10 anteviu o amanhã ao fundar a Corte.

Para seguir seu rumo com o êxito que obteve até aqui, basta que persista equilibrando, na interpretação da Constituição, o que no Brasil tem se notabilizado pela dialética entre regras e princípios; em Israel, pela interação entre direito e justiça; na África do Sul, pelo contraponto entre tradição e transformação; e, na Coréia do Sul, pela confluência hermenêutica das forças yin-yang, alternando luz e escuridão, num movimento que não imita apenas o Direito, mas a lógica da própria vida.

O edifício da Corte Constitucional mostra muito do povo sul-coreano, seus valores, filosofias, história e aspirações. Agindo com independência, o Tribunal tem sabido preservar direitos fundamentais, opor o poder tanto do Legislativo como do Executivo e, principalmente, manter abertos os canais pelos quais as águas da democracia devem passar livremente. Que siga seu caminho com equilíbrio e graça.

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Colunista

Saul Tourinho Leal é doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP, tendo ganhado, em 2015, a bolsa de pós-doutorado Vice-Chancellor Fellowship, da Universidade de Pretória, na África do Sul. Foi assessor estrangeiro da Corte Constitucional sul-africana, em 2016, e também da vice-presidência da Suprema Corte de Israel, em 2019. Sua tese de doutorado, "Direito à felicidade", tem sido utilizada pelo STF em casos que reafirmam direitos fundamentais. É advogado em Brasília.