Na errante jornada da humanidade, mulheres foram perseguidas, humilhadas e marginalizadas. Eram tratadas social e juridicamente como se não fossem dotadas de dignidade. Esse capítulo ultrajante da caminhada humana não ficou inteiramente para trás. Todavia, a nossa democracia não subscreve tal compreensão da existência. Por isso, a autonomia da vontade individual tem uma dimensão constitucional feminina que reclama reconhecimento. Junto dela, os ventos da liberdade (caput do art. 5º da CF).
Mulheres submetidas a relacionamentos abusivos perdem a sua autonomia. Sem esta, não há liberdade nem dignidade. A mulher passa a se conduzir segundo a vontade de uma outra pessoa, que se coloca na posição de soberana, autorizando ou proibindo o exercício de direitos personalíssimos, algo cuja essência reside no elemento mais intrínseco da liberdade. É um comportamento que desmorona as individualidades, o respeito à vontade do outro, o espaço necessário da diversidade e do pluralismo.
O Preâmbulo da Constituição instituiu um Estado Democrático, destinado a assegurar, também, o desenvolvimento, a igualdade e a Justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
Desenvolvimento que não é apenas o econômico ou o nacional, mas o pleno desenvolvimento humano. Igualdade que precisa ser material, não apenas formal. Isonomia, portanto. Justiça como elemento que tem habitado o coração dos povos desde a aurora dos tempos. Segundo Hans Kelsen, "a aspiração à Justiça está tão profundamente enraizada nos corações dos homens porque, no fundo, emana da sua indestrutível aspiração à felicidade".
Tudo porque o Preâmbulo nos reconhece como uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Daí não haver mais espaço para se destruir mulheres nos esconderijos dos lares nem nas armadilhas das ruas. Fraternidade imortalizada pelos franceses com a sua Revolução que resultou na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Mas uma sociedade que não é meramente fraterna é pluralista e sem preconceitos. Pluralista, porque reconhece a proteção e o respeito das individualidades como a nossa maior riqueza. Sem preconceitos, porque tem a mente aberta para entender o diferente, o que escapa aos padrões, aquilo que não é majoritário.
Por isso, se uma mulher, livre e conscientemente, olha para si e, diante dos desafios de uma vida que não costuma ser fácil, entende que precisa dar curso ao seu particular projeto de vida, não pode o Estado, nem tiranos particulares, operar qualquer resistência a esse projeto, seja por obstruções explícitas, seja pelas veladas.
Três dos objetivos fundamentais da República são: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º). A Constituição é insistente nesse propósito.
O respeito à autonomia da vontade individual da mulher é sinal de progresso civilizatório. No Século das Luzes, o Iluminista John Stuart Mill anotou: "Todas as mulheres são, desde a mais tenra infância, criadas na crença de que o seu ideal de carácter é diametralmente oposto ao dos homens: não vontade própria e capacidade de se governarem autonomamente, mas submissão e rendição ao controlo dos outros"1. E prosseguiu: "A teoria antiga era a de que se devia deixar o mínimo possível à escolha do agente individual; que tudo o que ele tinha de fazer lhe deveria ser, tanto quanto possível, ditado por uma mente superior. Entregue a si próprio, iria certamente fazer asneira. Ora, a convicção moderna, fruto de mil anos de experiência, assenta na ideia de que as coisas em que o indivíduo é a pessoa diretamente interessada só correm bem quando são deixadas ao seu próprio critério; e que qualquer regulação por uma autoridade, salvo quando se trate de proteger os direitos de outros, será seguramente nociva"2. Mill arrematou: "a liberdade de escolha individual é a única coisa que conduz à adopção dos melhores processos e que coloca cada operação nas mãos daqueles que estão mais habilitados a executá-la"3.
O teórico encarna o que contemporaneamente a dogmática constitucional brasileira contemplou como liberdade, autonomia da vontade individual (caput do art. 5º) e dignidade da pessoa humana como fundamento da República (art. 1º, III).
A dignidade reclama o reconhecimento de que o ser humano é um fim em si mesmo, dotado de valor intrínseco, que não deve ser enxergado como um meio para algo ou como rito de passagem para a consecução dos desejos estatais. É a essência do pensamento kantiano imortalizado na Constituição de 1988 quando coloca a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República (art. 1º, III).
Nessa linha, trilhando um caminho teórico, João Costa Neto recorda as lições de Karl Larenz e Manfred Wolf, para quem o ser humano deve ter, em regra, o direito de perseguir seus próprios fins e objetivos e de não ter sua ação 'heterodeterminada'. A dignidade humana traz um conteúdo antipaternalista. Isso porque, "ela implica que os seres humanos sejam, no mínimo em regra, a última instância de decisão quanto a seus propósitos, intenções e ações, o que está associado à ideia kantiana de fim em si mesmo. A par disso, a dignidade humana funda uma proibição de instrumentalização ou reificação, o que significa que se veda, por via de regra, a heterodeterminação do sujeito", anota.
João Costa Neto prossegue recordando que, "ao lado da autonomia e do antipaternalismo, é possível enxergar a dignidade humana, na sua dimensão de direito de defesa, como um 'trunfo contra a maioria'". Garante-se ao indivíduo uma esfera de não importunação. "A coletividade não poderá ainda que para promover o bem comum, ingerir como bem entender nessa esfera mínima previamente determinada. Quando muito, poderá efetuar intervenções submetidas a toda a dogmática restritiva dos direitos fundamentais, cujas leis limitadoras são submetidas a um regramento todo próprio"4, diz Costa Neto.
Esse respeito à autonomia da vontade individual revela o caráter laico do Estado, no sentido de não ingressar no indevassável domínio das intimidades, dos desejos personalíssimos. Decisões que mulheres hão de tomar livremente sem que o façam premidas por ameaças estatais nem privadas. O Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, CF), especialmente em sociedades abertas e inclusivas, não foi erguido para ingressar nesse tipo de esfera da intimidade humana feminina.
Steve Pinker, falando sobre "uma mentalidade humanista que baseia a moralidade no sofrimento e no florescimento dos indivíduos conscientes, mais do que no poder, na tradição ou na prática religiosa", destaca que a mentalidade atual do ocidente "foi confirmada segundo o princípio da autonomia: de que as pessoas têm direitos absolutos sobre seus corpos, que não podem ser tratados como um recurso a ser negociado com as outras partes interessadas". Ele anota: "o princípio da autonomia, lembremos, também foi uma chave na abolição da escravidão, do despotismo, da escravidão por dívida e dos castigos cruéis durante o Iluminismo"5.
No Brasil contemporâneo, o caput do art. 5º da Constituição assegura a todos, além da igualdade perante a lei, a inviolabilidade do direito à liberdade. O inciso I dispõe que "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição". Essa igualdade se desdobra em outros comandos.
O art. 226, § 5º, dispõe que "os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher". Segundo o art. 183, § 1º, "o título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil". O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil, nos termos e condições previstos em lei (art. 189, parágrafo único).
A igualdade entre homens e mulheres pretendida pela Constituição não é meramente formal. É material. Cuida, pois, da concretização do direito à isonomia que equilibra desigualdades intrínsecas de modo a promover uma igualdade verdadeira que muitas vezes reclama ações distintas entre homens e mulheres.
Tanto que se reconhece a necessidade de uma interpretação construtiva quanto à mulher. Segundo o art. 7o, XX, são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social, "proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei".
Novas demonstrações constitucionais de respeito à necessidade de igualdade material e, portanto, de isonomia, vem do art. 40, § 1º, segundo o qual os servidores abrangidos pelo regime de previdência de que trata este artigo serão aposentados, calculados os seus proventos a partir dos valores fixados na forma dos §§ 3º e 17: III - voluntariamente, desde que cumprido tempo mínimo de 10 anos de efetivo exercício no serviço público e cinco anos no cargo efetivo em que se dará a aposentadoria, observadas as seguintes condições: a) 60 anos de idade e 35 de contribuição, se homem, e 55 anos de idade e 30 de contribuição, se mulher; b) 65 anos de idade, se homem, e 60 anos de idade, se mulher, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição.
Não é diverso o art. 201, § 7º, segundo o qual é assegurada aposentadoria no regime geral de previdência social, nos termos da lei, obedecidas as seguintes condições: I – 35 anos de contribuição, se homem, e 30 anos de contribuição, se mulher; II - 65 anos de idade, se homem, e 60 anos de idade, se mulher, reduzido em 5 anos o limite para os trabalhadores rurais de ambos os sexos e para os que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, nestes incluídos o produtor rural, o garimpeiro e o pescador artesanal.
Percebe-se que as consequências do desrespeito da autonomia da vontade individual feminina terminam por destruir a aspiração legítima a um projeto de vida, especialmente sobre mulheres desamparadas. Isso é hostil ao objetivo fundamental da República de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º). Essa vedação ao preconceito se repete no inciso XLI do art. 5º, que diz: "a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais".
Não se usa a expressão "projeto de vida" à toa. No fim da década de 1990, a Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu duas sentenças reconhecendo um direito de todo ser humano a criar e a desenvolver um projeto de vida. Partindo da autonomia pessoal, entendeu a Corte que, quando um Estado priva gravemente o indivíduo da liberdade de traçar as metas pessoais que pretende alcançar, impedindo-o de desenvolver plenamente a sua personalidade e destruindo suas oportunidades de perseguir os seus objetivos de vida, isso acarreta 'danos ao projeto de vida', ensejadores do dever de reparação.
Os mais célebres são os casos Loayza Tamayo versus Peru e o caso Villagran Morales versus Guatemala. Neles, "a Corte Interamericana entendeu que aos Estados é proibido praticar condutas tendentes a obstaculizar as liberdades de cada indivíduo de estabelecer um projeto de vida e buscar sua plena realização existencial"6, anotaram Daniel Wunder Hachem e Alan Bonat.
Avançar contra o legítimo desejo da mulher de escrever a sua história de vida segundo as suas vontades, sem impor danos a terceiros, é uma forma de degradar a autonomia da vontade individual, degradar a pulsão legítima pela liberdade e, especialmente, degradar o reconhecimento da dignidade da pessoa humana. Segundo o inciso III do art. 5º da Constituição, "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante".
Essa discussão já encontrou aconchego no Supremo Tribunal, que anotou: "45. Imposição, além do mais, que implicaria tratar o gênero feminino por modo desumano ou degradante, em contrapasso ao direito fundamental que se lê no inciso II do art. 5º da Constituição, literis: 'ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante'. Sem meias palavras, tal nidação compulsória corresponderia a impor às mulheres a tirania patriarcal de ter que gerar filhos para os seus maridos ou companheiros, na contramão do notável avanço cultural que se contém na máxima de que 'o grau de civilização de um povo se mede pelo grau de liberdade da mulher' (Charles Fourier)"7.
Portanto, há vasta proteção constitucional à autonomia da vontade individual feminina, realçada pela jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos no sentido de reconhecer como um direito humano o direito a um projeto de vida.
É preciso que as relações femininas no Brasil sejam mergulhadas nas águas emancipadoras da Constituição para que possamos seguir construindo uma nação verdadeiramente plural e democrática. Enquanto isso não ocorrer, as únicas águas que veremos diante de nós serão as das lágrimas vertidas por mulheres que, mesmo podendo tocar o céu da felicidade por viverem uma vida plena, seguem devassadas pela dor e pelo sofrimento quase sempre causados por uma sociedade machista na qual homens violentos fazem dos prazeres sádicos – se alegrar com a dor do outro – a sua própria razão de viver. É uma forma sombria de entender os propósitos da vida. Uma forma que não encontra qualquer amparo na Constituição brasileira.
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1 John Stuart Mill, A sujeição das mulheres. Lisboa: Almedina. Trad. Benedita Bettencourt, 2006, p. 59/60.
2 John Stuart Mill, A sujeição das mulheres. Lisboa: Almedina. Trad. Benedita Bettencourt. 2006, p. 64.
3 Ibidem, p. 87/88.
4 João Costa Neto. Dignidade humana. Visão do Tribunal Constitucional Federal Alemão, do STF e do Tribunal Europeu. São Paulo: Saraiva, 2014, pp. 35-36.
5 Steven Pinker. Os anjos bons da nossa natureza: Por que a violência diminuiu. Trad. Bernardo Joffily e Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 542.
6 O Direito ao Desenvolvimento de um Projeto de Vida na Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e a Educação como Elemento Indispensável.
7 Página 55 do acórdão da ADI 3510 (Min. Carlos Ayres Britto, Pleno, DJe 28/5/2010).