Foi aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados o parecer à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 181-A/2015 (apensada à PEC 58-A/2011), que altera a redação do art. 7o, XVIII, da Constituição, estendendo a licença-maternidade em caso de parto prematuro à quantidade de dias que o recém-nascido passar internado, "não podendo a licença exceder a 240 dias".
Na justificativa do parecer aprovado, consta o seguinte: "Impõe-se, em razão dessas considerações, tornar ainda mais claro o espírito da Constituição e da nossa tradição cultural e jurídica – como antes demonstrado – no sentido de, na linha da extensão da licença-maternidade daquele que existia prematuramente, proteger a pessoa humana 'desde a concepção'".
Noutras palavras, a PEC fixa constitucionalmente o início da vida: a concepção. A partir desse momento, a Constituição passará a reconhecer todos os direitos de uma "pessoa humana". É uma iniciativa que desmantela a harmonia do texto constitucional na matéria, que, sabiamente, optou por não fixar o início da vida exatamente para que, de tempos em tempos, possa, o Supremo Tribunal Federal, diante dos casos concretos levados ao seu julgamento por uma sociedade complexa, discutir a questão de maneira racional e aberta à crítica pública.
A Constituição Federal de 1988 fala sobre a vida, sem dizer, contudo, quando ela se inicia. Diz, por exemplo, ser inviolável a vida privada (art. 5º, X). Quando remete à lei complementar o estabelecimento de outros casos de inelegibilidade, ordena que se considere a vida pregressa do candidato (art. 14, § 9º). Remete ao júri o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (art. 5º, XXXVIII).
Segundo o caput do art. 5º, é garantido aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida. Para gozar desses direitos há de ser brasileiro/brasileira e estrangeiro/estrangeira residente no país. O feto não é brasileiro, nem estrangeiro, nem residente no país. Pelo menos não ainda.
O art. 227, que impõe deveres à família, à sociedade e ao Estado, determina que se assegure à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. O feto não é criança, nem adolescente, nem jovem.
É verdade que a Constituição não nega o ciclo das novas gerações. Tanto que, no art. 225, dispõe que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Mesmo assim, não diz quando começa a vida. Protege, reconhece..., mas não diz quando ela se inicia.
No inciso V, parágrafo § 1º, do mesmo art. 225, diz incumbir ao Poder Público controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente. Fala em "controlar" emprego e técnicas que comportem risco para a vida. Mas, quando ela começa? A Constituição não responde.
E, quando dispõe sobre a gravidez, o faz com atenção à grávida. Segundo o art. 201, II, a previdência social atenderá, nos termos da lei, a proteção à maternidade, especialmente à gestante.
O art. 7º, XVIII, por sua vez, dispõe serem direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de 120 dias. É a gestante que aparece como objeto de proteção.
O art. 7º, I, estipula, como direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa. O ADCT, em seu art. 10, II, 'b', dispõe que até que seja promulgada a referida lei complementar, fica vedada a dispensa arbitrária ou sem justa causa da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto.
A Constituição empodera a mulher. Ela não pode ser arbitrariamente dispensada. Confirma-se a gravidez, assim como o parto, mas nem por isso é possível se afirmar, à luz da Constituição, quando começa a vida.
Por isso, vale recordar o raciocínio da ministra Rosa Weber no voto que proferiu na ADPF 54 (fetos anencéfalos). Para a ministra, praticar o infanticídio não gera penas tão graves quanto as do homicídio, que, por sua vez, é punível de forma mais exasperada do que a prática de um aborto. A lesão corporal grave tem pena máxima maior do que a do aborto. O aborto provocado sem o consentimento da gestante tem pena de 3 a 10 anos, inferior à de homicídio. Para a ministra Rosa Weber, espera-se menos da relação da gestante e da sociedade com o feto do que na relação entre dois indivíduos já formados organicamente no que tange à proteção da vida e do direito à plenitude da integridade física como bens jurídicos. O estupro é causa de excludente ilicitude do aborto (art. 128, II, do Código Penal), mesmo que o feto seja viável. Ou seja, em caso de inviabilidade da vida humana, presente vida tão somente biológica, não há como concluir que proteja o ordenamento, o feto em detrimento da mãe. "A leitura sistêmica conduz à compreensão de que a proteção está do lado da mãe", anotou a ministra Rosa Weber. É isso mesmo.
Mesmo Constituições de países dominados pela Sharia, como a Somália, seriam mais generosas do que a do Brasil, caso alterada pelos termos atuais da PEC 181-A/2015. A Constituição da Somália permite a interrupção da gravidez quando a mãe tem de fazer a grave escolha entre a própria vida e a do feto. A PEC brasileira, contudo, se limita a assegurar todos os direitos inerentes à pessoa humana ao feto, desde a sua concepção. Se, antes, já era uma aberração dizer a uma mulher que a condição do perdão em caso de interrupção da gravidez era ter sido estuprada, imagine agora, quando sequer esse perdão lhe concederão. A nova redação da PEC cria um tipo de gravidez compulsória. A gestante vira propriedade do Estado.
A proposta, nos termos do relatório aprovado pela Comissão Especial da Câmara, abriria espaço para uma batalha jurídica sem precedentes, que poderia resultar, no limite, nos seguintes problemas: (i) questionamentos sobre a constitucionalidade da comercialização da pílula do dia seguinte, uma vez que o direito à vida passa a ser integralmente reconhecido desde a concepção; (ii) dúvidas quanto à constitucionalidade da Lei de Biossegurança, que permitiu a pesquisa com células-tronco embrionárias (ADI 3510); (iii) negação do direito da gestante em optar pela própria vida em detrimento da do feto na hipótese de gravidez de risco; (iv) mulheres poderiam ter de gerar o fruto de estupros, pois a vida há de ser absolutamente preservada "desde a concepção"; (v) reversão do precedente do STF que permitiu a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos (ADPF 54); (vi) reversão do precedente da 1a Turma do STF permitindo a interrupção da gravidez em até 12 semanas de gestação (HC 124.306); (vii) impossibilidade de interrupção da gravidez em caso de microcefalia decorrente do Zika (ADI 5581); e (viii) impossibilidade de o STF apreciar a ADPF 442, que requer a descriminalização do aborto sob certas condições. É como se, após um cochilo, acordássemos num passado distante.
Se, o que se queria, era presentear as mulheres com a ampliação do direito à licença-maternidade, o preço que se cobrou foi alto demais. Melhor seria simplesmente recusar a oferta. Não sem razão a PEC tem sido chamada de "Cavalo de Tróia". É, de fato, um "presente" de grego.