Semana passada, o STF, por 6 x 5, concluiu que os artigos 312 (prisão preventiva) e 319 (medidas cautelares diversas da prisão) do Código de Processo Penal (CPP) se aplicam aos parlamentares, podendo, a respectiva Casa Legislativa, reverter a decisão da Corte que imponha quaisquer dessas medidas, desde que elas impliquem o embaraço direto ou indireto ao exercício do mandato parlamentar (ADI 5526).
A decisão resulta, em parte, do fato de que a Constituição Federal trouxe uma sistemática de julgamento dos congressistas que envolve tanto o Congresso Nacional como o Supremo Tribunal Federal.
Antes de tudo, a Constituição conferiu ao STF a missão de julgar deputados Federais e senadores (art. 53, § 1º). A inviolabilidade penal (e também civil) dos congressistas diz respeito às suas opiniões, palavras e votos (art. 53 da CF). Nada mais.
O art. 53, § 2º, diz que, caso os membros do Congresso sejam presos em flagrante de crime inafiançável1, os autos serão remetidos dentro de 24 horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão. A Suprema Corte já definiu que o comando não se restringe aos crimes inafiançáveis (AC 4070). A partir desse dispositivo, o Tribunal definiu que caso se imponha aos congressistas medidas cautelares diversas da prisão que interfiram no regular exercício do mandato deve, a respectiva Casa Legislativa, "resolver" sobre as medidas.
Se o parlamentar adotar procedimento incompatível com o decoro parlamentar, é a Câmara ou o Senado que o julga. Caso sofra condenação criminal em sentença transitada em julgado, a perda do mandato também será decidida pela Câmara ou Senado (art. 55, § 2º, c/c o art. 55, I, II e VI)2.
Mas há hipóteses em que as Casas Legislativas não têm margem para aferir se devem ou não punir seus membros. Pelo art. 55, perderá – o verbo é imperativo - o mandato o deputado ou senador: III - que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada; IV - que perder ou tiver suspensos os direitos políticos3; V - quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos da Constituição.
A perda será "declarada" pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso, assegurada ampla defesa (art. 55, § 3º).
A verdade é que, premido por escândalos eleitorais, pela degradação moral da classe política e por uma tempestade de corrupção praticada à luz do dia por parlamentares, o STF tem se visto forçado a construir, do dia para a noite, a mais rica – e sobressaltada - jurisprudência criminal sobre congressistas de todo o mundo.
Primeiramente, definiu que eles, quando condenados numa sentença penal transitada em julgado, perdem seus mandatos por ordem do STF, sem a necessidade de interação com o Congresso Nacional (AP 470, "mensalão"). Essa posição foi revertida, tendo a Corte entendido que cabe à respectiva Casa Legislativa a deliberação acerca da preservação, ou não, do mandato de parlamentar condenado criminalmente (AP 565).
Uma liminar posteriormente concedida pelo ministro Luís Roberto Barroso acrescentou uma exceção à hipótese acima. Suspendeu-se os efeitos da deliberação do Plenário da Câmara que manteve o mandato de deputado federal de um condenado a 13 anos, 4 meses e 10 dias de prisão (MS 32.326). Segundo o Ministro, como regra, cabe ao Congresso a decisão sobre a perda do mandato de parlamentar que sofrer condenação criminal transitada em julgado. No entanto, a regra não teria aplicação no caso de condenação em regime inicial fechado, por tempo superior ao prazo remanescente do mandato parlamentar, em razão de impossibilidade jurídica e física de seu exercício.
Veio, então, a prisão em flagrante por crime que não era inafiançável, em 25/11/2015, de um Senador (AC 4039). Em 5/5/2016, impôs-se a suspensão do exercício do mandato de deputado federal e de presidente da Câmara dos Deputados (AC 4070). Em 5/12/2026, mais uma decisão, dessa vez afastando um senador da presidência do Senado por ser ele réu numa ação penal (ADPF 402). Por fim, em 17/5/2017, o afastamento do senador Aécio Neves do seu mandato.
Todas essas decisões, sem exceção, foram tomadas por meio de cautelares concedidas solitariamente por um dos juízes da Suprema Corte. Mesmo posteriormente referendadas, à exceção daquela que afastou o então presidente do Senado do cargo, são medidas drásticas tomadas solitariamente por integrantes de um órgão que é colegiado. O fato de terem se dado no bojo de ações cautelares impede que os acusados se defendam quanto ao pedido específico de suspensão de mandato. Outra perplexidade é não haver prazo. Estão suspensos ou banidos? Toda suspensão tem prazo.
A única Constituição que permitiu a suspensão de mandatos parlamentares em toda a história do Brasil foi a de 1967. Com a Emenda 11, de 1978, o art. 32, § 5º, passou a dispor: "Nos crimes contra a Segurança Nacional, cujo processo independe licença da respectiva Câmara, poderá o Procurador-Geral da República recebida a denuncia e atenta à gravidade do delito, requerer a suspensão do exercício do mandato parlamentar, até a decisão final, de representação pelo STF"4.
O Regimento Interno do STF dispunha, no art. 236, que requerida a dita suspensão, o Tribunal, dada vista à defesa pelo prazo de 15 dias, julgaria o pedido, que seria processado em apartado, como incidente, e não obstaria o prosseguimento da ação penal. Como se vê, havia um rito próprio para a tramitação desse tipo de pedido.
A decisão recentemente tomada pelo STF avaliza o emprego do art. 319 do CPP, que, na prática, permite a suspensão judicial do exercício de mandatos parlamentares, numa inovação que não existe em democracias respeitáveis, como a dos Estados Unidos ou mesmo a inglesa. Nem se diga que nesses dois países não há corrupção. Casos escabrosos têm sido relevados com incomum frequência, todavia, ainda persiste a ideia de que é o próprio Parlamento que deve fazer o controle do comportamento de seus integrantes. Essa ideia, é bem verdade, tem sido cada vez mais questionada.
No Brasil, a violência dos fatos e o assombro causado por malas de dinheiro desfilando por aí fizeram a Suprema Corte aproveitar o compartilhamento de responsabilidades trazido pela Constituição para, reconstruindo jurisprudencialmente uma competência extinta pela Constituição de 1988, resgatar para si a suspensão do exercício de mandatos parlamentares. Já que assim o foi, deve, o Tribunal, refinar os procedimentos destinados a esses tipos de medidas para que o faça em honra à ampla defesa e ao devido processo legal. Talvez seja o caso de alterar seu Regimento Interno.
O Código de Ética do Senado, na linha do que ocorre em parlamentos importantes, dispõe, no art. 10, sobre a "perda temporária do exercício do mandato". Segundo o art. 12, essa sanção será decidida pelo Plenário, em escrutínio secreto e por maioria simples, mediante provocação da Mesa, do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar ou de Partido Político representado no Congresso Nacional.
O Regimento Interno da Câmara dos Deputados, por sua vez, traz, no art. 10, III, como penalidade aplicável por conduta atentatória ou incompatível com o decoro parlamentar, a "suspensão temporária do exercício do mandato". A aplicação da penalidade, de no máximo 30 dias, é da competência do Plenário da Câmara, que deliberará por maioria absoluta de seus membros, por provocação da Mesa ou de partido político representado no Congresso, após processo disciplinar instaurado pelo Conselho de Ética e Decoro Parlamentar (art. 14). Como se vê, a suspensão tem prazo.
Agora, como se entendeu que a utilização do art. 319 do CPP equivale à imposição de prisão e que, por tal, tem, o Senado ou a Câmara, a última palavra a respeito delas, deve, o STF, adaptar o seu Regimento Interno a essa nova competência, resgatando o procedimento próprio que sequer os anos de chumbo negaram.
De igual modo, deveria, tanto a Câmara, como o Senado, alterar seus Códigos de Ética para que, sempre que se verem chamados a resolverem sobre medidas cautelares diversas da prisão impostas a seus membros, acionem, automaticamente, seus Conselhos de Ética e Decoro Parlamentar, para que deliberem sobre a adequação do comportamento do parlamentar à luz do decoro que a Constituição exige, não somente à luz do Código Penal. São exames distintos e complementares.
O STF, à luz do que havia na Constituição de 1967 – com a redação da EC 11/1978 – passa a poder, excepcionalmente, suspender o exercício do mandato de parlamentares que tentem sabotar investigações em curso na Suprema Corte. É uma nova competência que, no âmbito do Tribunal, precisa ser compatibilizada procedimentalmente com a sua própria gravidade.
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1 São crimes inafiançáveis: art. 5º, XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; art. 5º, XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.
2 O § 3º do mesmo artigo dispõe que, recebida a "denúncia" contra o Senador ou Deputado, por crime ocorrido após a diplomação, o STF dará ciência à Casa respectiva, que, atendida certas condições, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação. O § 5º diz que a sustação suspende a prescrição, enquanto durar o mandato. Susta-se temporariamente o andamento da ação, do processo, jamais da investigação em curso, pois ninguém tem, numa República, o direito de não ser investigado.
3 Segundo o art. 15 da Constituição, duas das hipóteses de perda ou suspensão de direitos políticos são: III - condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos; V - improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º.
4 Art. 32, § 5º: Nos crimes contra a Segurança Nacional, poderá o Procurador-Geral da República, recebida a denúncia e considerada a gravidade do delito, requerer a suspensão do exercício do mandato parlamentar, até a decisão final de sua representação pelo STF (Redação dada pela EC 22, de 1982).