Opinião: Efeitos colaterais do conceito de "apropriação cultural" no Brasil
Tem sido chamado de apropriação cultural – um conceito consistentemente trabalhado, na filosofia das artes, por James Young, em "Cultural Appropriation and the Arts", 2010 – práticas brasileiras que, ou são mero exercício da liberdade, ou oportunismos baratos, ou não passam de atitudes comuns de pessoas de boa-fé em suas experiências cotidianas. Comecemos pela liberdade. O livre mercado, em democracias capitalistas, especialmente na globalização, converte encantos em produtos, colocando-os à disposição de quem deseja adquiri-los. Para mim, quando um jovem paulistano, branco, urbano, com o seu sotaque local, aparece numa casa de shows em São Paulo segurando uma sanfona, lançando o "Forró Universitário", ele está colocando entretenimento à disposição da sua comunidade e mostrando que o fascínio pela música não tem fronteiras culturais. Não enxergo, nisso, a pilhagem da cultura nordestina. Na África, senhoras e jovens negras - respectivamente as Mamas e as Sissys - sempre caminharam carregando crianças em panos envoltos em seus corpos. Hoje, criancinhas são carregadas por mães e pais em todo o mundo nessas trouxas ou em derivações delas. Mulheres sul-africanas se incomodam com a demora para terem cabelos longos. Muitas usam perucas. O fio mais procurado é o brasileiro. Ao usarem perucas brasileiras que as deixam com um visual parecido com o das nossas mulheres, não estão, elas, se apropriando culturalmente de nós. Estão, apenas, comprando algo desejado e que o mercado lhes permite adquirir. O nome de tudo isso não é apropriação cultural. É liberdade. Outros comportamentos são meros oportunismos. O sujeito oportunista, branco, que muda a aparência para parecer negro e, com isso, soar mais legitimado a discutir questões raciais, é tão impostor quanto a jovenzinha que dorme em conforto e, ao fazer proselitismo com a pobreza, brada: "nós, os excluídos". Rachel Dolezal, uma branca estadunidense, ativista de direitos humanos, certo dia apareceu como se negra fosse. Seus pais disseram que ela mentia ao se apresentar como uma afro-americana. Toda a sua ascendência vinha da Alemanha e da República Tcheca. Mas quem tolerava aquele uso inapropriado da identidade negra? A NAACP, a mais tradicional e influente organização de defesa dos direitos dos afro-americanos nos Estados Unidos, da qual Rachel era..., uma líder. No Brasil, pessoas que vivem uma vida real não engolem aquilo o que julgam oportunista. Mas não chamam de apropriação cultural. Chamam de oportunismo mesmo. E sabem reagir. Certo dia, a jovem Elisa Quadros, a "Sininho", saía de mais uma delegacia onde prestava esclarecimentos. A ativista carioca, que mora na rica Copacabana, inventou de esperar um ônibus diante da imprensa vestida numa camiseta com os dizeres: "A favela não se cala". De repente, o transporte coletivo parou. Dentro dele, trabalhadores exaustos voltavam para suas comunidades depois de um estafante dia de trabalho. Ao avistarem a menina de Copacabana falando pela favela, gritaram: "Aqui você não entra. Chega de hipocrisia!". O ônibus partiu. Há ainda as pessoas de boa-fé. Na África do Sul, Nelson Mandela, um homem vaidoso, passou quase trinta anos vestindo uniformes de presidiário. Uma vez livre, deixou extravasar as suas origens. Negro, da tribo dos Xhosas, nascido na minúscula Qunu, passou a vestir as camisas estampadas de mangas longas abotoadas até o pescoço. O justice Albie Sachs, um camarada de luta, judeu, branco, nascido na cosmopolita Cidade do Cabo, usa camisas parecidas. Eu, quando estou em solenidades sul-africanas, não raramente ponho uma dessas. Não estamos, nós, apropriando-nos da cultura de ninguém. Pelo contrário. Estamos praticando a filosofia africana do Ubuntu, segundo a qual você divide com os outros elementos dos costumes para, assim, se conectar à comunidade. Um dos julgamentos mais emblemáticos da Corte Constitucional sul-africana assegurou o direito da jovem hindu, Sunali Pillay, usar, na escola, um piercing nasal. Na decisão, traçou-se um erudito histórico da ligação cultural entre o piercing nasal feminino e as tradições do povo hindu. O símbolo está intrinsecamente ligado àquela cultura. Acontece que mulheres brasileiras usam piercings no nariz. Estão, elas, perpetrando males à cultura alheia? Merecem menor consideração e respeito? E quanto aos corpos tatuados? Estiveram eles, no passado, ligados a uma vida underground, muitas vezes marginal. Hoje, homens tímidos de vida certinha, ou mulheres de extraordinária reputação, exibem orgulhosamente suas belas tattoos. Cultura é troca. Defender revanches e intermináveis acertos de contas serve mais à divisão da sociedade do que à nossa união. A ninguém assiste o direito de estereotipar meninas que, no Dia do Índio, colocam um cocar ou pintam o rosto em homenagem ao vínculo ancestral que as ligam ao seu próprio país. Mentes como as de Paulo Freire, ao falar da pedagogia do oprimido; Frantz Fanon, discorrendo sobre a colonização francesa na Algéria; e Steve Biko, fundador do Movimento de Consciência Negra, dedicaram suas vidas à causa da igualdade. Suas obras mostram o desejo de enterrar o esnobismo autoritário de senhoras brancas colonizadoras que, ao verem jovens negras colonizadas abanando um leque, diziam: "Quem você pensa que é para usar meu leque?". Vandalizarão a memória desses ícones senhoras negras que, em democracias plurais no século XXI, ao verem uma jovem branca de turbante, digam: "Quem você pensa que é para usar o meu turbante?". Quão bom seria se, nesse Brasil multicultural, mais e mais crianças, de todas as cores e crenças, usassem, em momentos significativos de suas vidas, as roupas das nossas Mães de Santo, essas heroínas da nossa história. Deveriam, os heróis indígenas, com sua cultura e tradição, compor mais a rotina da família brasileira. Jogadores brancos, europeus, poderiam tentar devolver ao futebol a "ginga" renascida pelos pés do rei negro Edson Arantes do Nascimento, o Pelé. Nada disso é apropriação cultural. É compartilhamento. É a mais pura humanidade. O Brasil é um caldeirão cultural. O que não quer dizer que a desigualdade social, e racial, não seja absurda. Não conseguimos implementar políticas capazes de criar e consolidar uma grande elite negra nacional. O preconceito está espalhado por cada canto da nossa sociedade, às vezes sutil e engravatado, às vezes brutal e nu. Majoritária em números, a comunidade negra é minoritária em prestígio e em poder. Tudo isso é uma chaga persistente que vulnera a nossa dignidade. Todavia, não é julgando pessoas comuns que pulam carnaval usando perucas, crianças inocentes que põem um cocar na cabeça ou jovens brancas de boa-fé que cobrem a cabeça com um turbante, que cicatrizaremos feridas coletivas. O conceito de apropriação cultural tem consistência quando trabalhado historicamente, notadamente na análise das consequências das pilhagens promovidas por nações ricas e poderosas contra povos subjugados. Entretanto, ao ser aplicado à vida do brasileiro comum, é puro autoritarismo. A sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos da qual fala o preâmbulo da Constituição é a que reconhece suas faltas com os seus membros, que demonstra arrependimento pelos fracassos e injustiças históricas cometidas, que implementa políticas públicas transformadoras e que, ao final, vive junta, unida em sua diversidade. Esse é o Brasil ideal. Não o outro, com cidadãs e cidadãos amedrontados pela deturpação ideológica de um conceito que, originariamente, veio para engrandecer, não para destruir.
Plenário Virtual – Repercussão geral
Conta com quatro votos pelo reconhecimento da repercussão geral – quórum suficiente para a admissão - o Tema 939, no RE 986.296, discutindo a validade do decreto 8.426/2015, que restabeleceu as alíquotas de contribuição para o PIS e COFINS, bem como a constitucionalidade da lei 10.865/2004. Os ministros que votaram foram os seguintes: Dias Toffoli, Roberto Barroso, Celso de Mello e Rosa Weber. A votação segue até o dia 2/3. Também conta com quatro votos, mas recusando a repercussão geral do Tema 938, no RE 1.013.583, a discussão sobre o prazo decadencial para revisão de benefício derivado. Os ministros votantes foram: Roberto Barroso, Dias Toffoli, Celso de Mello e Rosa Weber. A votação segue até 2/3. Por fim, cinco votos até o momento reafirmam jurisprudência na discussão do Tema 937, no RE 999.425, que discute a inconstitucionalidade do art. 2°, II, da lei 8.137/90, ao argumento de que o tipo penal enseja hipótese de prisão por dívida, em violação direta às disposições do art. 5º, LXVII, da CF. A reafirmação é no sentido da constitucionalidade da referida norma. Os ministros que votaram foram: Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli, Roberto Barroso, Celso de Mello e Rosa Weber. A votação segue até dia 2/3.
OAB pede ingresso como amicus em debate sobre coisa julgada
O Conselho Federal da OAB juntou pedido de ingresso como amicus curiae nos leading cases que tratam das nuances processuais relativas à coisa julgada tributária. Primeiro, o RE 949.297 (min. Edson Fachin), cujo Tema 881 da repercussão geral é: "Limites da coisa julgada em matéria tributária, notadamente diante de julgamento, em controle concentrado pelo STF, que declara a constitucionalidade de tributo anteriormente considerado inconstitucional, na via do controle incidental, por decisão transitada em julgado". O segundo, o RE 955.227 (min. Roberto Barroso), cujo Tema 885 da repercussão geral é: "Efeitos das decisões do STF em controle difuso de constitucionalidade sobre a coisa julgada formada nas relações tributárias de trato continuado".
Sindicato pede ingresso como amicus em discussão sobre auditores fiscais do Amazonas
O SIFAM, Sindicato dos Fazendários do Estado do Amazonas requereu ingresso como amicus curiae na ADI 5597 (min. Celso de Mello), ajuizada pela FEBRAFITE - Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais, questionando lei amazonense que permite a cobrança de tributos por agentes da administração fazendária que não são auditores fiscais.
AGU junta manifestação em ação sobre pagamento de royalties do petróleo a municípios
A AGU juntou manifestação contra a procedência da ADI 5621 (min. Cármen Lúcia), ajuizada pelo Partido da República, contra normas referentes aos royalties do petróleo devidos aos municípios que suportam as atividades de embarque e desembarque de petróleo ou são afetados por essa prática. O partido solicita que seja excluída do ordenamento jurídico a interpretação que exige, para o recebimento dos royalties pelos municípios, a ligação direta das instalações de embarque e desembarque de petróleo e gás natural ao campo produtor, sobretudo quando se trata de petróleo originário da plataforma continental.
AGU junta manifestação em ação contra contribuição previdenciária sobre o salário-maternidade
A AGU juntou manifestação na ADI 5626 (min. Celso de Mello), ajuizada pela PGR, para que se declare inconstitucionais § 2º e a parte final da alínea 'a' do § 9º do art. 28 da lei 8.212/1991, no que fazem incidir contribuição previdenciária sobre o salário-maternidade. A AGU defende a validade das contribuições.
Negada liminar que pedia suspensão de lei goiana sobre benefício fiscal em privatização no setor elétrico
O ministro Gilmar Mendes negou liminar por meio da qual o PSOL pedia a suspensão da lei 19.473/2016, de Goiás, que institui a política para distribuição de energia elétrica no estado e concede benefício fiscal no contexto da privatização da Companhia Celg de Distribuição S.A. (Celg D). A decisão foi tomada na ADI 5640.
Global Constitutionalism
A Suprema Corte do Quênia declarou a inconstitucionalidade da seção 194 do Código Penal, que permitia a pena de prisão de até dois anos para quem fosse condenado por difamação. Segundo o juiz John Mativo, relator, a punição era excessiva e criminalizar a liberdade de expressão seria algo inaceitável numa sociedade democrática. Também entendeu que tal previsão violaria a seção 33 da Katiba – a Constituição do Quênia. Para o relator, qualquer pessoa difamada tem um remédio disponível no campo do Direito Civil que é a possibilidade de compensação pecuniária. A decisão se deu num caso anteriormente arquivado ajuizado por Jacqueline Okuta e Jackson Njeru, acusados de difamação por postagens no Facebook.
Evento
O presidente da Corte Suprema de Justiça da Argentina, ministro Ricardo Lorenzetti, apresentou, sexta-feira, no STF, a conferência "Audiências Públicas, Participação Social e Implementação de Direitos Fundamentais – A experiência da Corte Suprema Argentina". De acordo com o presidente da Corte argentina, o juiz deve selecionar um número limitado de temas prioritários por ano para a realização de audiências públicas. Para ele, no passado, os conflitos judiciais eram relativos a direitos individuais, principalmente nas áreas civil e penal. "Agora temos questões de interesse institucional, como corrupção, meio ambiente, direito do consumidor, e todos podem alterar o cenário político, econômico e social", frisou.
Obiter dictum
O folclore político brasileiro imortalizou a compreensão de que, em plebiscitos ou referendos, o fundamental, mais do que o voto, é a pergunta feita aos eleitores. Ali mora o segredo. O raciocínio, trazido para o mundo jurídico, mostra que, em julgamentos de temas com repercussão geral após a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, mais importante do que a discussão, é a tese fixada ao final do julgamento. Líder da iniciativa de firmar essas "teses", o ministro Luís Roberto Barroso passou a ser referido, pelos colegas, como "tesista". No julgamento do RE 835.558, tratando da competência para julgar crimes de exportação de animais, o relator, min. Luiz Fux, prevendo problemas futuros na fixação da tese, se adiantou: "Não sou especialista em teses como os tesistas do Tribunal". Sabia o que previa. Depois de um longo período de debate no qual os ministros tentavam definir a tese que melhor definia o que havia sido decidido, o ministro Fux mandou: "Ainda bem que eu tive a humildade de dizer que não era especialista em tese". Foi o que bastou para o ministro Barroso emendar: "Para a quantidade de gente formada em Direito aqui na sala, até que foi rápido". Todo mundo gargalhou.