Pobreza menstrual não é um problema novo - afinal, meninas e mulheres cis e pessoas trans menstruam desde o início dos tempos. Mas falar sobre esse problema é uma novidade e ainda causa muito desconforto, apesar da menstruação ser um fato biológico vivenciado periodicamente por cerca de 30% da população brasileira.1
Falar sobre pobreza menstrual e conhecer as causas mais recorrentes nos ajuda a pensar em como mudar a situação de violação à dignidade da pessoa humana, à igualdade e aos direitos à saúde e à educação, todos consagrados na nossa CF/88. Felizmente, no Brasil, o assunto vem ganhando espaço, por meio de grupos e instituições ativistas que têm travado importante luta nesse sentido.
No âmbito estadual, por exemplo, Ceará e São Paulo já sancionaram suas leis prevendo a distribuição nas escolas públicas estaduais, enquanto o Rio garantiu a distribuição de absorventes e materiais sanitários junto com as cestas básicas distribuídas pelo governo do Estado. Pelo menos outros 7 Estados e o DF discutem proposições legislativas nesse sentido ou, ainda, para zerar ou diminuir o Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) incidente nesses produtos2.
Na esfera Federal, atualmente há ao menos 10 propostas que, de alguma forma (da distribuição nas escolas à redução de impostos), tratam do assunto3. Além disso, no dia 06/10/21, foi sancionada, com vetos parciais, a lei 14.214/21, que institui o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual. Os vetos atingiram4 5 dos 8 artigos da lei e o Congresso Nacional está para convocar uma sessão para discutir e votar pela manutenção ou pela derrubada dos vetos5.
São louváveis as iniciativas estaduais, mas um direcionamento federal é essencial para garantir a dignidade de milhões de brasileiras, além de diminuir as desigualdades regionais. Sim, pois o problema é complexo e não causa impacto negativo apenas na dignidade das pessoas humanas que vivem o fenômeno na própria pele, mas também tem efeitos sociais e econômicos que atingem a dimensão coletiva. A título exemplificativo, podemos citar tanto problemas de saúde de diversos graus - de alergias e irritações ao óbito por choque tóxico - que oneram o sistema público no longo prazo, quanto problemas com faltas escolares e no trabalho que impactam o desenvolvimento econômico dessas pessoas e de suas famílias, bem como, por consequência, a sociedade, pelo potencial não realizado.
Além disso, é necessário olhar para o problema em suas diferentes camadas e recorrentes causas. A pobreza menstrual se dá devido à falta de acesso a recursos (papel higiênico, sabão, absorventes íntimos, coletores), a infraestrutura (acesso à água, tratamento de lixo e esgotamento), e ao conhecimento (acesso aos serviços de saúde, a informação imparcial, a medicamentos) – o que acompanha e reforça os recortes da desigualdade, como veremos adiante. A atuação em conjunto dos três entes federativos (União, Estados e municípios) é essencial para garantir o acesso a todos esses recursos e infraestruturas.
As competências necessárias para se endereçar um problema dessa magnitude se misturam - como é o caso da competência comum, atribuída pelo art. 23 da CF/88. Nos termos de tal dispositivo constitucional, todas as esferas devem cuidar da saúde (inciso II), proporcionar os meios de acesso à educação (inciso V) e combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização (inciso X). A coordenação e o estabelecimento de um regime de colaboração dessas competências são fundamentais para uma boa execução de programas e ações de maneira eficaz e eficiente.
Em se tratando de problemas sociais complexos, é por meio de arranjos institucionais, integrados, em diferentes campos e dimensões, que se pode enfrentá-los da melhor maneira possível. Esses arranjos institucionais são a concretização (ou exteriorização) de políticas públicas, as quais, por sua vez, consistem em “programa de ação governamental, do qual se extrai a atuação do Estado na elaboração de metas, definição de prioridades, levantamento do orçamento e meios de execução para a consecução dos compromissos constitucionais”6 (grifos nossos).
Os compromissos constitucionais devem ser o norte da União, Estados e municípios na elaboração e implementação das políticas públicas. No caso da pobreza menstrual, estamos descumprindo e violando importantes compromissos constitucionais, como falamos no início deste artigo: a dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos de existência e manutenção da nossa República (art. 1º, CF/88), o direito à saúde e à educação, ambos direitos de todos e dever do Estado, nos termos dos arts. 196 e 205, respectivamente, da CF/88.
O direito à igualdade perpassa todo esse assunto de maneira transversal. Cumpre lembrar que, como já dito anteriormente, em razão das causas deste fenômeno, a pobreza menstrual impacta negativa e proporcionalmente as interseções das desigualdades: mulheres (meninas, mulheres, pessoas trans e pessoas não binárias7), pretas e pardas, em zonas rurais, em situação de rua ou cumprindo pena privativa em liberdade (sob custódia do Estado, pasmem).
Vale lembrar que já foi pacificado pela doutrina jurídica que o direito à igualdade é contido na CF/88 em suas duas formas: a formal e a material. A igualdade formal é a igualdade perante a lei. Já a igualdade material, ou a equidade, como gostamos de chamá-la, é o conceito que se origina da isonomia, expressão aristotélica que quer dizer: tratar os iguais igualmente e os desiguais, desigualmente, na medida de sua desigualdade. Isso implica que o Estado pode tratar desigualmente os indivíduos, desde que o faça justificadamente8.
Dessa forma, para que haja a realização do direito à igualdade, é preciso promover medidas afirmativas, que corrijam a desigualdade em sua própria medida. Para ilustrar a equidade, podemos olhar para o direito à educação. O inciso I do art. 205 determina a igualdade de condições para acesso e permanência na escola. Se meninas deixam de ir à escola porque estão menstruadas e não têm condições mínimas de higiene (água encanada), acesso a absorventes íntimos (produtos caros), ou estão doentes em razão disso (tiveram uma infecção por terem usado jornal), fica claro que elas não possuem as mesmas condições de acesso e permanência nas escolas do que os meninos.
Nesse sentido, a lei Federal 14.214/21 previa no seu art. 3º, também objeto de veto, as beneficiárias do Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, quais sejam: estudantes de baixa renda matriculadas em escolas da rede pública de ensino; mulheres em situação de rua ou em situação de vulnerabilidade social extrema; mulheres apreendidas e presidiárias, recolhidas em unidades do sistema penal; e mulheres internadas em unidades para cumprimento de medida socioeducativa.
Na justificativa de veto foram apresentadas três razões9, mas para a discussão ora em tela, vamos nos ater à justificativa de que ao discriminar as beneficiárias do Programa, a lei estaria em descompasso com a lei complementar 141/2012, a qual dispõe que os recursos sejam destinados às ações e serviços públicos de saúde de acesso universal, igualitário e gratuito.
A CF/88 também fala, no art. 196, sobre “acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação [da saúde]”. Apesar da palavra igualitário ter um sentido mais restrito atualmente, é sempre importante lembrar que a interpretação de uma carta constituinte deve se dar de forma sistemática, não com base em cada artigo de maneira isolada. Para se concretizar o princípio da igualdade, muitas vezes é necessário discriminar, desde que, como posto anteriormente, de maneira justificada.
Reconhecer, por meio de evidências e dados estatísticos, um fator diferencial (ou em um termo mais técnico: discrímen) no acesso a direitos básicos como educação e saúde, é o primeiro passo para a efetivação do direito à igualdade. O segundo é construir e implementar políticas públicas afirmativas e acompanhar os indicadores para verificar se os efeitos estão no sentido do nosso compromisso constitucional. É por meio da efetivação da equidade de gênero, de raça e etnia, de classe, de espaço, que vamos encontrar o caminho para a justiça social.
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1 BAHIA, Letícia. Livre para Menstruar: pobreza menstrual e a educação de meninas. São Paulo: 2021. p. 11. Disponível aqui.
2 LIMA, Paola. O que é pobreza menstrual e por que ela afasta estudantes das escolas. Agência Senado, publicado em 29/7/2021. Disponível aqui.
3 MIGALHAS, Redação. Veto de Bolsonaro mantém mulheres em pobreza menstrual. Portal Migalhas, publicado em 09/10/2021. Disponível aqui.
4 REPÚBLICA, Presidência da. Veto Parcial - Projeto de Lei nº 4.968, de 2019 / Lei nº 14.214, 6 de outubro de 2021. Disponível aqui.
5 SENADO, Agência do. Cancelada sessão do Congresso que analisaria vetos presidenciais. Disponível aqui.
6 NUNES, Andréia R. Schneider. Políticas públicas. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direitos Difusos e Coletivos. Nelson Nery Jr., Georges Abboud, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível aqui.
7 BAHIA, Letícia. Ibidem. p. 10.
8 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 4ª ed. 9ª tiragem. Malheiros Editores: São Paulo, 2008. p. 168.
9 Razões dos vetos - "A proposição legislativa estabelece a relação das beneficiárias do Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual instituído por esta lei, bem como define que regulamento trará critérios para sua implementação e que mulheres apreendidas e presidiárias, recolhidas em unidades do sistema penal terão os custos retirados de recursos do Fundo Penitenciário Nacional.” Entretanto, apesar de meritória a intenção do legislador, a proposição legislativa contraria o interesse público, uma vez que não há compatibilidade com a autonomia das redes e estabelecimentos de ensino. Ademais, não indica a fonte de custeio ou medida compensatória, em violação ao disposto nos art. 16, art. 17, art. 24 e art. 26 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 - Lei de Responsabilidade Fiscal, nos art. 125 e art. 126 da Lei nº 14.116, de 31 de dezembro de 2020 - Lei de Diretrizes Orçamentárias 2021 e na Lei Complementar nº 173, de 27 de maio de 2020. Ainda, o dispositivo não abarca especificamente os usuários do SUS de forma ampla ou relaciona a sua distribuição às ações ou serviços de saúde, ao contrário restringe as beneficiárias. Assim, repise-se, contraria o disposto na Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012, que determina que os recursos sejam destinados às ações e serviços públicos de saúde de acesso universal, igualitário e gratuito." Disponível aqui.