Constituição na Escola

Políticas públicas de combate à pobreza menstrual: uma questão de equidade, saúde e educação

Políticas públicas de combate à pobreza menstrual: uma questão de equidade, saúde e educação

17/12/2021

Pobreza menstrual não é um problema novo - afinal, meninas e mulheres cis e pessoas trans menstruam desde o início dos tempos. Mas falar sobre esse problema é uma novidade e ainda causa muito desconforto, apesar da menstruação ser um fato biológico vivenciado periodicamente por cerca de 30% da população brasileira.1

Falar sobre pobreza menstrual e conhecer as causas mais recorrentes nos ajuda a pensar em como mudar a situação de violação à dignidade da pessoa humana, à igualdade e aos direitos à saúde e à educação, todos consagrados na nossa CF/88. Felizmente, no Brasil, o assunto vem ganhando espaço, por meio de grupos e instituições ativistas que têm travado importante luta nesse sentido.

No âmbito estadual, por exemplo, Ceará e São Paulo já sancionaram suas leis prevendo a distribuição nas escolas públicas estaduais, enquanto o Rio garantiu a distribuição de absorventes e materiais sanitários junto com as cestas básicas distribuídas pelo governo do Estado. Pelo menos outros 7 Estados e o DF discutem proposições legislativas nesse sentido ou, ainda, para zerar ou diminuir o Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) incidente nesses produtos2.

Na esfera Federal, atualmente há ao menos 10 propostas que, de alguma forma (da distribuição nas escolas à redução de impostos), tratam do assunto3. Além disso, no dia 06/10/21, foi sancionada, com vetos parciais, a lei 14.214/21, que institui o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual. Os vetos atingiram4 5 dos 8 artigos da lei e o Congresso Nacional está para convocar uma sessão para discutir e votar pela manutenção ou pela derrubada dos vetos5.

São louváveis as iniciativas estaduais, mas um direcionamento federal é essencial para garantir a dignidade de milhões de brasileiras, além de diminuir as desigualdades regionais. Sim, pois o problema é complexo e não causa impacto negativo apenas na dignidade das pessoas humanas que vivem o fenômeno na própria pele, mas também tem efeitos sociais e econômicos que atingem a dimensão coletiva. A título exemplificativo, podemos citar tanto problemas de saúde de diversos graus - de alergias e irritações ao óbito por choque tóxico - que oneram o sistema público no longo prazo, quanto problemas com faltas escolares e no trabalho que impactam o desenvolvimento econômico dessas pessoas e de suas famílias, bem como, por consequência, a sociedade, pelo potencial não realizado.

Além disso, é necessário olhar para o problema em suas diferentes camadas e recorrentes causas. A pobreza menstrual se dá devido à falta de acesso a recursos (papel higiênico, sabão, absorventes íntimos, coletores), a infraestrutura (acesso à água, tratamento de lixo e esgotamento), e ao conhecimento (acesso aos serviços de saúde, a informação imparcial, a medicamentos) – o que acompanha e reforça os recortes da desigualdade, como veremos adiante. A atuação em conjunto dos três entes federativos (União, Estados e municípios) é essencial para garantir o acesso a todos esses recursos e infraestruturas.

As competências necessárias para se endereçar um problema dessa magnitude se misturam - como é o caso da competência comum, atribuída pelo art. 23 da CF/88. Nos termos de tal dispositivo constitucional, todas as esferas devem cuidar da saúde (inciso II), proporcionar os meios de acesso à educação (inciso V) e combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização (inciso X). A coordenação e o estabelecimento de um regime de colaboração dessas competências são fundamentais para uma boa execução de programas e ações de maneira eficaz e eficiente.

Em se tratando de problemas sociais complexos, é por meio de arranjos institucionais, integrados, em diferentes campos e dimensões, que se pode enfrentá-los da melhor maneira possível. Esses arranjos institucionais são a concretização (ou exteriorização) de políticas públicas, as quais, por sua vez, consistem em “programa de ação governamental, do qual se extrai a atuação do Estado na elaboração de metas, definição de prioridades, levantamento do orçamento e meios de execução para a consecução dos compromissos constitucionais6 (grifos nossos).

Os compromissos constitucionais devem ser o norte da União, Estados e municípios na elaboração e implementação das políticas públicas. No caso da pobreza menstrual, estamos descumprindo e violando importantes compromissos constitucionais, como falamos no início deste artigo: a dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos de existência e manutenção da nossa República (art. 1º, CF/88), o direito à saúde e à educação, ambos direitos de todos e dever do Estado, nos termos dos arts. 196 e 205, respectivamente, da CF/88.

O direito à igualdade perpassa todo esse assunto de maneira transversal. Cumpre lembrar que, como já dito anteriormente, em razão das causas deste fenômeno, a pobreza menstrual impacta negativa e proporcionalmente as interseções das desigualdades: mulheres (meninas, mulheres, pessoas trans e pessoas não binárias7), pretas e pardas, em zonas rurais, em situação de rua ou cumprindo pena privativa em liberdade (sob custódia do Estado, pasmem).

Vale lembrar que já foi pacificado pela doutrina jurídica que o direito à igualdade é contido na CF/88 em suas duas formas: a formal e a material. A igualdade formal é a igualdade perante a lei. Já a igualdade material, ou a equidade, como gostamos de chamá-la, é o conceito que se origina da isonomia, expressão aristotélica que quer dizer: tratar os iguais igualmente e os desiguais, desigualmente, na medida de sua desigualdade. Isso implica que o Estado pode tratar desigualmente os indivíduos, desde que o faça justificadamente8.

Dessa forma, para que haja a realização do direito à igualdade, é preciso promover medidas afirmativas, que corrijam a desigualdade em sua própria medida. Para ilustrar a equidade, podemos olhar para o direito à educação. O inciso I do art. 205 determina a igualdade de condições para acesso e permanência na escola. Se meninas deixam de ir à escola porque estão menstruadas e não têm condições mínimas de higiene (água encanada), acesso a absorventes íntimos (produtos caros), ou estão doentes em razão disso (tiveram uma infecção por terem usado jornal), fica claro que elas não possuem as mesmas condições de acesso e permanência nas escolas do que os meninos.

Nesse sentido, a lei Federal 14.214/21 previa no seu art. 3º, também objeto de veto, as beneficiárias do Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, quais sejam: estudantes de baixa renda matriculadas em escolas da rede pública de ensino; mulheres em situação de rua ou em situação de vulnerabilidade social extrema; mulheres apreendidas e presidiárias, recolhidas em unidades do sistema penal; e mulheres internadas em unidades para cumprimento de medida socioeducativa.

Na justificativa de veto foram apresentadas três razões9, mas para a discussão ora em tela, vamos nos ater à justificativa de que ao discriminar as beneficiárias do Programa, a lei estaria em descompasso com a lei complementar 141/2012, a qual dispõe que os recursos sejam destinados às ações e serviços públicos de saúde de acesso universal, igualitário e gratuito.

A CF/88 também fala, no art. 196, sobre “acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação [da saúde]”. Apesar da palavra igualitário ter um sentido mais restrito atualmente, é sempre importante lembrar que a interpretação de uma carta constituinte deve se dar de forma sistemática, não com base em cada artigo de maneira isolada. Para se concretizar o princípio da igualdade, muitas vezes é necessário discriminar, desde que, como posto anteriormente, de maneira justificada.

Reconhecer, por meio de evidências e dados estatísticos, um fator diferencial (ou em um termo mais técnico: discrímen) no acesso a direitos básicos como educação e saúde, é o primeiro passo para a efetivação do direito à igualdade. O segundo é construir e implementar políticas públicas afirmativas e acompanhar os indicadores para verificar se os efeitos estão no sentido do nosso compromisso constitucional. É por meio da efetivação da equidade de gênero, de raça e etnia, de classe, de espaço, que vamos encontrar o caminho para a justiça social.

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1 BAHIA, Letícia. Livre para Menstruar: pobreza menstrual e a educação de meninas. São Paulo: 2021. p. 11. Disponível aqui.

2 LIMA, Paola. O que é pobreza menstrual e por que ela afasta estudantes das escolas. Agência Senado, publicado em 29/7/2021. Disponível aqui.

3 MIGALHAS, Redação. Veto de Bolsonaro mantém mulheres em pobreza menstrual. Portal Migalhas, publicado em 09/10/2021. Disponível aqui.

4 REPÚBLICA, Presidência da. Veto Parcial - Projeto de Lei nº 4.968, de 2019 / Lei nº 14.214, 6 de outubro de 2021. Disponível aqui.

5 SENADO, Agência do. Cancelada sessão do Congresso que analisaria vetos presidenciais. Disponível aqui.

6 NUNES, Andréia R. Schneider. Políticas públicas. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direitos Difusos e Coletivos. Nelson Nery Jr., Georges Abboud, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível aqui.

7 BAHIA, Letícia. Ibidem. p. 10.

8 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público.  4ª ed. 9ª tiragem. Malheiros Editores: São Paulo, 2008. p. 168.

9 Razões dos vetos - "A proposição legislativa estabelece a relação das beneficiárias do Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual instituído por esta lei, bem como define que regulamento trará critérios para sua implementação e que mulheres apreendidas e presidiárias, recolhidas em unidades do sistema penal terão os custos retirados de recursos do Fundo Penitenciário Nacional.” Entretanto, apesar de meritória a intenção do legislador, a proposição legislativa contraria o interesse público, uma vez que não há compatibilidade com a autonomia das redes e estabelecimentos de ensino. Ademais, não indica a fonte de custeio ou medida compensatória, em violação ao disposto nos art. 16, art. 17, art. 24 e art. 26 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 - Lei de Responsabilidade Fiscal, nos art. 125 e art. 126 da Lei nº 14.116, de 31 de dezembro de 2020 - Lei de Diretrizes Orçamentárias 2021 e na Lei Complementar nº 173, de 27 de maio de 2020. Ainda, o dispositivo não abarca especificamente os usuários do SUS de forma ampla ou relaciona a sua distribuição às ações ou serviços de saúde, ao contrário restringe as beneficiárias. Assim, repise-se, contraria o disposto na Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012, que determina que os recursos sejam destinados às ações e serviços públicos de saúde de acesso universal, igualitário e gratuito." Disponível aqui. 

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Colunista

Felipe Costa Rodrigues Neves é advogado formado pela PUC-SP, Mestre em Direito pela Stanford University, nos Estados Unidos. Felipe e fundador da ONG "Projeto Constituição na Escola", a maior ONG de educação cívica do Brasil, que promove aulas presenciais sobre Direito Constitucional para milhares de alunos da rede pública todo ano. Felipe já foi eleito como uma das pessoas mais influentes pela Forbes 30 Under 30 (2018), escolhido como um dos 11 jovens lideres brasileiros pela Fundação Obama (2017) e nomeado Young Leader of America, pelo Governo dos Estados Unidos (2016). Felipe ainda é o advogado mais jovem a ter recebido o Prêmio Innovare, do Ministério da Justiça (2017)".