Constituição na Escola

A Constituição Federal de 1988 e a redemocratização pelo fim do racismo

Que o dia 20 de novembro não seja apenas uma reflexão do negro sobre a sua existência, mas que seja, também, a oportunidade para uma nação se conscientizar sobre as injustiças e sobre os crimes raciais cometidos ao longo da sua história, insurgindo-se contra o racismo estrutural arraigado no íntimo da sociedade brasileira.

19/11/2021

Há 35 anos, mais precisamente em 1º de fevereiro de 1987, membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal reuniam-se, unicameralmente, em Assembléia Nacional Constituinte (ANC), para redigir aquele que seria o texto-base a determinar os direitos e obrigações de todos os cidadãos e entes políticos desta nação, a Constituição Federal do Brasil de 1988, carinhosamente alcunhada de “Constituição Cidadã”. 

Composta por 559 parlamentares – havidos por diversas crenças religiosas, políticas, econômicas e, claro, sociais – a ANC constitui-se em preceitos de redemocratização, estabelecendo, desde então, inviolabilidade de direitos e liberdades básicas, além de uma vastidão de princípios progressistas, como o direito de voto para os analfabetos, a igualdade de gêneros e a criminalização do racismo. 

Estruturada em 9 títulos e 250 artigos, a Constituição Federal reserva seus dois primeiros temas para tratar dos princípios, direitos e garantias fundamentais, dos quais destacamos, especialmente, no que tange à luta pela igualdade racial, o repúdio ao racismo e sua previsão como crime inafiançável e imprescritível (art. 4º, VIII e art. 5º, XLII). 

Já em 1989, foi promulgada a lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que dispõe contra o preconceito racial, tornando a discriminação racial, de cor, de religião ou nacionalidade um crime passível de punição penal. 

Com a redemocratização e o advento de muitos movimentos de pressão popular, em 10 de novembro de 2011 (23 anos após a promulgação da Constituição Cidadã), a então presidenta Dilma Rouseff fez reverberar o ideal da consciência negra com a instituição do “Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra”. 

O dia de comemoração da Consciência Negra foi estabelecido pela lei 12.519. Foi escolhida a data de 20 de novembro, pois, segundo registros históricos, neste dia no ano de 1695 morreu Zumbi, um dos maiores líderes quilombolas da história do Brasil. 

A despeito da importância histórica de Zumbi dos Palmares, neste escrito faremos breves reflexões sobre a expressão consciência negra. E quando falamos de consciência, vale remeter ao significado do dicionário Michaelis: “percepção ou faculdade pela qual o homem conhece e adquire lucidez quanto a si mesmo, com uma visão interior e exterior, construindo uma representação mental clara de sua existência ou do mundo exterior”.1 

Com base na supracitada definição técnica, o que o Dia da Consciência Negra pode trazer como percepção e lucidez à sociedade sobre si mesma? 

Fala-se, em alguns debates, em comemoração ao dia da consciência humana. Apesar das boas intenções, é certo que tal subjetividade pressupõe superficialidade ao tema e, porque não dizer, gera um desserviço à luta contra o racismo e a favor da igualdade racial. 

A consciência negra é a luta pela conscientização e correção da distorção social atribuída pela cor da pele. É um movimento essencialmente negro, como a própria causa, sendo o dia da sua comemoração o termo, a referência, a homenagem à cultura do povo de origem africana, que foi trazido à força e duramente escravizado por séculos no Brasil 

Dentre as pessoas que podem e devem ser associadas ao Dia da Consciência Negra, citamos Steve Biko, um jovem negro sul africano que, aos 30 anos, durante o Apartheid na África do Sul, foi torturado até a morte. 

Mesmo tendo sua vida ceifada em tão pouco tempo, durante sua militância deixou como legado a pedra angular da consciência negra. Biko entendia que ser negro não era meramente uma questão de pigmentação da pele e sim o reflexo de uma atitude mental, interior. 

A consciência negra tem o papel de enxergar e lutar contra o racismo havido em toda estrutura social e, por outro lado, fomentar a valorização e o reconhecimento da cultura ancestral do povo de origem africana, possibilitando que o negro se valorize e regozije-se da sua origem dissociado da ideia leviana da pessoa não-branca. 

Dissociar a pessoa negra e a sua consciência do burlesco conceito de pessoa não-branca é trazer orgulho à sua cultura, às suas referências ancestrais, à sua comunidade, aos valores do seu povo, crenças e costumes. 

Devemos cessar a perseguição, o boicote e qualquer afronta vinculada a cor da pele. Lutar contra os preconceitos cotidianos, como o olhar desconfiado de soslaio nos faróis, shoppings e supermercados, maus tratos em restaurantes e em lojas. Nas palavras de Desmond Tutu, manter-se neutro a situações de injustiça é escolher estar ao lado do opressor, ainda que de forma inconsciente. 

Por este olhar, é preciso entender o motivo pelo qual, de forma consciente (ou não), a sociedade ajuda a reproduzir a violência racial e tolera de forma pacífica e imparcial o racismo estrutural enraizado em todas as instituições públicas e privadas do Brasil. 

É preciso entender que os negros do Brasil são frutos de gerações de sofrimento, de resistência e de perseguição. Os movimentos negros são instrumentos político-sociais em busca da verdadeira redemocratização, sem afeição por privilégios, contra os quais inclusive luta. 

Inquestionável que uma Constituição alcunhada de Cidadã não seja suficiente para, por si só, dissipar uma estrutura social arreigada de racismo. Logo, o Dia da Consciência Negra deve servir de pilar para uma reflexão e conscientização da sociedade brasileira como um todo, uma ótima oportunidade para encarar e confrontar os diversos privilégios e desvantagens vinculados a cor da pele, etnia ou raça. 

Que o dia 20 de novembro não seja apenas uma reflexão do negro sobre a sua existência, mas que seja, também, a oportunidade para uma nação se conscientizar sobre as injustiças e sobre os crimes raciais cometidos ao longo da sua história, insurgindo-se contra o racismo estrutural arraigado no íntimo da sociedade brasileira. 

Encerra-se essa reflexão com uma mensagem do falecido advogado Sul Africano, Dr. Rolihlahla Mandela, vulgo Nelson Mandela: 

Tenho nutrido o ideal de uma sociedade democrática e livre, na qual todas as pessoas possam conviver em harmonia e com igualdade de oportunidades. É um ideal pelo qual espero viver e que espero ver realizado. Mas, meu Senhor, se preciso for, é um ideal pelo qual estou preparado para morrer.2

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1 Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/busca?id=4gyp Acesso em 18., jan., 2021.

2 Disponível em: https://veja.abril.com.br/mundo/morre-nelson-mandela-lider-mundial-da-luta-pela-igualdade/ Acesso em 16, nov., 2021.

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Colunista

Felipe Costa Rodrigues Neves é advogado formado pela PUC-SP, Mestre em Direito pela Stanford University, nos Estados Unidos. Felipe e fundador da ONG "Projeto Constituição na Escola", a maior ONG de educação cívica do Brasil, que promove aulas presenciais sobre Direito Constitucional para milhares de alunos da rede pública todo ano. Felipe já foi eleito como uma das pessoas mais influentes pela Forbes 30 Under 30 (2018), escolhido como um dos 11 jovens lideres brasileiros pela Fundação Obama (2017) e nomeado Young Leader of America, pelo Governo dos Estados Unidos (2016). Felipe ainda é o advogado mais jovem a ter recebido o Prêmio Innovare, do Ministério da Justiça (2017)".