Constituição na Escola

CPI e a garantia constitucional contra autoincriminação: A previsão do direito ao silêncio no ordenamento jurídico brasileiro

CPI e a garantia constitucional contra autoincriminação: A previsão do direito ao silêncio no ordenamento jurídico brasileiro.

29/10/2021

Ao longo da CPI da Covid muito se discutiu acerca do direito dos depoentes de permanecerem em silêncio durante seus depoimentos1. Mas afinal de contas, o que é o direito ao silêncio e como ele está regulamentado em nosso ordenamento jurídico?

O direito ao silêncio decorre do direito da pessoa acusada não se autoincriminar, ou seja, o direito de não produzir provas contra si também chamado pelo brocardo nemo tenetur se detegere.

Na redação original do Código de Processo Penal, que entrou em vigor em 1941, havia três dispositivos legais que asseguravam o direito do réu ao silêncio, mas não de maneira absoluta. O artigo 186 previa expressamente que: "antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao réu que, embora não esteja obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa". O artigo 191 dizia que: "consignar-se-ão as perguntas que o réu deixar de responder e as razões que invocar para não fazê-lo". Já o artigo 198 dispunha que o silêncio do acusado "poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz".

Como se vê, a redação original do Código de Processo Penal possibilitava que o juiz interpretasse negativamente o silêncio do réu e que o utilizasse contra ele na hora de julgá-lo.

A Constitucional Federal de 1988 trouxe uma nova perspectiva ao tema da não autoincriminação, ao assegurar, em seu artigo 5º, inciso LXIII, o direito de o acusado permanecer calado2. Importante frisar que embora a Carta Magna tenha assegurado o direito ao silêncio apenas ao preso, entende-se que ele deve ser estendido a toda e qualquer pessoa – investigado, indiciado, acusado ou acusado, por exemplo – pois negar tal direito a alguém só porque está em liberdade não faz sentido e colide com os ditames de nosso ordenamento jurídico.

Com a nova previsão constitucional, os artigos 186, 191 e 198 do Código de Processo Penal ficaram contraditórios, pois conflitavam com a nova garantia do direito ao silêncio. Sendo assim, com intuito de compatibilizar a legislação processual às previsões constitucionais, promulgou-se a lei 10.792, de 1º de dezembro de 2003, que alterou a disciplina do interrogatório no processo penal.

Nos termos explicados acima, o artigo 186 do Código de Processo Penal afirmava, em sua parte final, que o silêncio do réu no interrogatório poderia ser interpretado em prejuízo de sua defesa, demonstrando clara incompatibilidade com os preceitos constitucionais de 1988. O novo texto trazido pela Lei n. 10.792/2003 passou a refletir o significado essencial da garantia contra a autoincriminação na sua vertente do direito ao silêncio, excluindo a antiga advertência ao prever, em seu lugar, que: "o silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa". Nessa mesma linha, foi excluída a antiga previsão do artigo 191, que determinava a consignação, pelo juiz, das perguntas não respondidas pelo réu em seu interrogatório. O artigo 198 continua em vigor com sua redação original. Apesar disso, a doutrina entende que a parte final do texto, segundo a qual o silêncio do réu pode influenciar a decisão do magistrado, não tem mais validade3.

E todas essas novas previsões acerca do direito ao silêncio podem ser aplicadas no âmbito da CPI, conforme já decidido pelo Supremo Tribunal Federal.4

Conclui-se, portanto, que a promulgação da Constituição Federal de 1988 e as posteriores reformas legislativas decorrentes do novo texto constitucional foram essenciais para firmar que no ordenamento jurídico brasileiro o direito ao silêncio é assegurado, de maneira plena, tanto à pessoa presa, investigada ou acusada, inclusive na CPI, a qual não pode ser obrigada a se autoincriminar, sendo vedada, ainda, a valoração negativa do exercício do silêncio.

*Maria Paes Barreto de Araujo é doutoranda em Direito Processual Penal pela USP. Mestre em Direito Processual Penal pela USP. Bacharel em Direito pela PUC/SP. Professora de Direito Penal na UNINOVE. Assessora da 6ª Turma Disciplinar do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB (TED/OAB). Integra o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Advogada criminalista.

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1 Disponível aqui, acesso em 27 out. 2021; e aqui, acesso em 27 out. 2021.

2 Art. 5º, LXIII: "O preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado".

3 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código de Processo Penal interpretado. São Paulo: Atlas, 1994, p. 251.

4 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (1. Turma). HC 89.269-8. Rel. Min. Ricardo Lewandowski Brasília, DF, 21 de novembro de 2006. Disponível aqui. Acesso em: 16 jul. 2018.

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Colunista

Felipe Costa Rodrigues Neves é advogado formado pela PUC-SP, Mestre em Direito pela Stanford University, nos Estados Unidos. Felipe e fundador da ONG "Projeto Constituição na Escola", a maior ONG de educação cívica do Brasil, que promove aulas presenciais sobre Direito Constitucional para milhares de alunos da rede pública todo ano. Felipe já foi eleito como uma das pessoas mais influentes pela Forbes 30 Under 30 (2018), escolhido como um dos 11 jovens lideres brasileiros pela Fundação Obama (2017) e nomeado Young Leader of America, pelo Governo dos Estados Unidos (2016). Felipe ainda é o advogado mais jovem a ter recebido o Prêmio Innovare, do Ministério da Justiça (2017)".