Logo no início da faculdade de Direito os alunos deparam-se com a matéria de “Direito Romano”. É curioso pensar a importância do registro escrito das leis em Roma, uma vez que essas leis eram uma arma poderosíssima utilizada pelos patrícios contra a população plebeia. O fato de as pessoas desconhecerem seus diretos garantia o controle pelos governantes, afinal, não se pode exigir algo que não sabemos que é nosso. Além disso, quando não sabemos especificamente o que pode nos ser exigido, acreditamos cegamente naqueles que possuem sabedoria, correndo o risco de ter direitos negados e cumprir deveres que não são obrigatórios.
O desconhecimento das regras criadas justamente para garantir um convívio social básico e harmônico transforma a população em “massa de manobra” e a ausência do fácil acesso a este conhecimento dentro das escolas, junto com o modelo de ensino pouco dinâmico e engessado (tendo em vista que muitas vezes as preferências de aprendizado de cada indivíduo não são levadas em consideração), agrava cada vez mais o problema do desenvolvimento social brasileiro.
A necessidade de conhecer os nossos direitos e deveres é imensa e faz completa diferença no convívio social, pois podemos identificar situações indispensáveis para o nosso dia a dia, como as relações de abuso de poder por parte das autoridades e, até mesmo, cobranças indevidas em restaurantes, lojas e bancos por exemplo. É muito preocupante saber que saímos da escola sabendo a fórmula de Bhaskara (ou pelo menos tentamos), mas não tendo a mínima noção de como funciona o sistema judiciário.
Para se ter uma ideia do tamanho do problema, no Brasil são protocolados, por ano, cerca de 28 milhões de processos na justiça, havendo cerca de 78 milhões atualmente em tramitação1 e a falta de conhecimento com relação às leis do Brasil contribui diretamente para essa enorme quantidade de litígios todos os anos. Existem diversos exemplos dessa escassez de informações sobre nossos próprios direitos, dentre eles a pesquisa que revelou que 75% da população brasileira desconhece a lei promulgada no ano de 2020 que protege seus dados pessoais e estabelecendo deveres aos usuários2.
O desconhecimento das leis tem duas consequências principais: a população pode cometer um ato ilícito ou deixar de obter algo que lhe é garantido. Um dos principais bloqueios com relação ao Direito vem desde a juventude: a linguagem é muito difícil e pouco acessível. Assim, ocorre o distanciamento da população mais humilde dos seus direitos e, consequentemente, da justiça. Além disso, temos a 2ª Constituição Federal mais longa do mundo3, promulgada em um momento de transformação social, o que corrobora com a complicação do nosso sistema jurídico.
Outro grande problema é que essa falta de informação e distanciamento favorecem a disseminação das Fake News (notícias falsas). As Fake News são uma forma muito ágil de manipular o público, tendo em vista que as pessoas não possuem o costume de verificar em fontes confiáveis a veracidade das informações e muitas vezes sequer abrem o link da notícia, se deixando levar apenas pela manchete (isso quando a informação deturpada não é compartilhada apenas por vídeos ou mensagens de texto). As Fake News se espalham seis vezes mais rápido que as notícias verdadeiras4, e elas podem ser responsáveis pela polarização, o ódio e, até mesmo, a manipulação dos eleitores, afinal, é comprovado que as redes sociais influenciam o voto de pelo menos 45% da população5.
Estudos comprovam que cerca de 77% dos jovens brasileiros de 16 a 24 anos têm as redes sociais como principal fonte de informação, mesmo que esse meio possua uma taxa de credibilidade menor do que 5% (quando se trata de postagens de amigos a taxa cai para menos de 1%)6. As taxas se dão pelo fato de que a internet, diferentemente de outros meios de comunicação como jornais e televisão, não possui filtros rigorosos contra as chamadas Fake News, pois são alimentadas diretamente pelos seus usuários.
Quando não somos instruídos a verificar se os dados que utilizamos para formar opinião são verídicos, acabamos caindo justamente naquela dependência do caráter de outra pessoa que possui todas as armas necessárias para nos manipular. O poder de manipular a verdade é o suficiente para movimentar toda uma população, desde o Império Romano (já citado anteriormente) até os dias atuais. O fato de mais da metade da população de 15 anos no país não saber diferenciar opinião de informação7 só escancara a necessidade da implantação de métodos de busca pela veracidade e, assim, ocorre o famoso “FlaxFlu” político, polarizando a política e a população.
Mas vamos falar desse problema pela raiz: a falta de acesso ao Direito. As primeiras universidades de Direito do Brasil foram fundadas em 1827, uma em Olinda (Faculdade de Direito do Recife da Universidade Federal de Pernambuco) e outra em São Paulo (Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo), e mesmo que tenham enfrentado um processo longo para se tornarem o que são hoje, sempre tiveram como membros representações das elites: homens brancos e ricos. Para tentar reverter esse cenário, existem política políticas, como o sistema de cotas na USP, que fez com que 25,2% dos calouros ingressantes em 2020 fossem estudantes autodeclarados como pretos, pardos ou indígenas. Entretanto, a desconstrução da elitização da IES (Instituição de Ensino Superior) é progressiva, 10 anos antes dos dados apresentados a porcentagem de ingressantes da mesma categoria de cota era cerca de 5%8.
A implantação do ensino jurídico teve como objetivo expressar a autonomia política, social e cultural da elite brasileira, visto que faziam menos de 5 anos desde a Proclamação da Independência (1821-1825). A construção da identidade nacional necessitava de um corpo burocrático qualificado, e a abertura do curso de Direito em universidades de solo nacional era imprescindível9.
O primeiro homem negro a se tornar advogado no Brasil foi Luiz Gama, que foi impedido de se tornar aluno na Universidade de São Paulo justamente por sua cor. Entretanto, como assistia às aulas e possuía tanto conhecimento quanto os alunos de fato matriculados, atuou na defesa de outros negros, resultando na libertação de 500 escravos, sendo reconhecido como advogado pela OAB 133 anos após sua morte10.
A primeira mulher a se formar na mesma universidade no curso de Direito foi Maria Augusta Saraiva, que concluiu seu ensino superior apenas em 1902, setenta anos depois da fundação da instiruição. A mesma escreveu seu próprio requerimento à mão, apresentando seu altíssimo desempenho estudantil, e justificando sua capacidade de adentrar em uma IES de tal patamar. Seu desenvolvimento foi tamanho que recebeu uma viagem de presente em sua formatura11.
Mesmo nos dias de hoje, porém, ingressar na faculdade de Direito é algo inacessível para a maioria da população, pois é algo que não cabe no bolso do trabalhador brasileiro. Atualmente o salário mínimo corresponde à quantia de R$ 1.100,00 (mil e cem reais)12, valor direcionado, em maioria, a pessoas com ensino médio completo.
Apesar disso, constata-se por meio de sensos que mais da metade dos adultos do país não possuem ensino médio completo13, enfrentando ainda mais dificuldade pra atingir o salário mínimo. Cerca de 105 milhões de pessoas vivem com R$ 500,00 (quinhentos reais) por mês14, não podendo, assim, arcar com os custos nem sequer da mensalidade.
Levando em consideração que o valor de uma faculdade de Direito no Brasil pode variar entre R$ 500,00 (quinhentos reais) e R$ 4.000,00 (quatro mil reais)15, fica fácil ver que não são todos (muito menos que a metade da população, a bem da verdade) que podem ter acesso a esse conhecimento essencial. Assim, mesmo que o Direito seja extremamente importante para o dia a dia da população, poucos são os que têm acesso a esse conhecimento, uma vez que não aprendemos na escola um artigo sequer da Constituição Federal.
Além do custo e da elitização, temos outros problemas comuns ao ensino superior - dentre eles o tempo investido, a metodologia restrita, a limitação geográfica e a pouca preparação para a prática no mercado de trabalho.
O deslocamento ainda impõe uma barreira física ao ensino. Isso porque, a maior parte das instituições de ensino de qualidade encontram-se nos grandes centros, os quais possuem um custo de vida longe de ser acessível, resultando em um percurso longo, cansativo e caro tanto para os estudantes quanto para os professores. A acessibilidade precária em conjunto com outros fatores pode ser um elemento decisivo para o aprendizado (pois, por conta do cansaço, o rendimento tende a cair), e para a permanência do aluno no IES.
Mesmo assim, o Brasil é hoje o país com o maior número de faculdades de Direito no mundo, com mais de 1.500 instituições de ensino. O aumento foi muito grande ao longo dos últimos 20 anos: em 1995 eram apenas 235 cursos de Direito, o que significa que ao longo de 23 anos o crescimento foi de mais de 500%. No entanto, a qualidade do ensino jurídico não acompanhou esse crescimento. Nos últimos cinco exames da OAB, 81.8% dos candidatos foram reprovados e o baixo índice de aprovação ocorre pois o exame avalia o conhecimento acumulado durante toda a graduação. Ao todo, são 410 mil bacharéis em Direito que não estão habilitados para advogar – e não podem colocar em prática os cinco anos de estudo e investimento na Faculdade de Direito. Desta forma, observa-se que a expansão do mercado do Direito não caminhou em conjunto com a qualidade de ensino16.
Outro fator que prejudica muito o aprendizado de cada um é o fato de o sistema de ensino aplicar a mesma metodologia para todos os alunos esperando os resultados iguais, sem opções de adaptação do aluno. O método utilizado limita muito tanto os profissionais de ensino quanto os alunos, colocando-os numa espécie de molde que não é capaz de fazer com que todos atinjam seu máximo.
Além disso, existe uma estagnação no conteúdo em si. Com a mudança constante da tecnologia e sua cada vez maior aderência às atividades fica quase impossível preparar jovens para uma nova era com moldes antigos, principalmente quando se trata de escolas públicas, que sofrem com a falta de investimento. O resultado é a geração de diplomas para pessoas que, na realidade, não estão preparadas para o mercado de trabalho.
Desta forma, a população brasileira fica sem escolha: ou entramos na Faculdade de Direito ou nunca iremos aprender de forma correta e imparcial sobre nossas leis, nossos direitos e nossas garantias enquanto cidadãos.
Entretanto, a tecnologia pode ser nossa aliada nesse problema. Com a evolução tecnológica e dos meios pelos quais nossa população, em especial os jovens, obtém informação, o ensino do Direito também deve evoluir, para se adaptar e se tornar acessível.
Se o ensino de qualidade não está no ambiente e na linguagem que o jovem utiliza, como iremos chegar até eles? Além disso, cursos com profissionais renomados custam muito caro, como iremos capacitar a nova geração de advogados?
Dentro dessa proposta, uma alternativa interessante é utilizar, ainda mais, plataformas de educação online para democratizar o ensino de qualidade e tornar o conteúdo mais acessível financeiramente, ao invés de sempre depender dos grandes centros e das grandes instituições para poder obter um conteúdo de qualidade, independente da localidade do estudante.
Em um estudo feito por pesquisadores da Universidade de Stanford17, nos Estados Unidos da América, foi realizado um teste piloto separando alunos de uma mesma universidade da Rússia em 3 grupos de alunos que teriam: (i) apenas aulas online; (ii) aulas híbridas (presencial e online); e (iii) aulas apenas presenciais.
O resultado foi que os alunos que tiveram aulas online e os alunos que tiveram aulas híbridas, depois do curso, tiveram resultados de aprendizagem praticamente iguais aos dos alunos que tiveram aulas apenas presenciais, a custos substancialmente mais baixos.
Além disso, de acordo com a pesquisa, ao adotar o modelo online e híbrido, em escala, os custos seriam significantemente reduzidos, como os de infraestrutura e de funcionários, por exemplo. Desta forma, atrairia e aumentaria o número de alunos e, também, a qualidade do ensino, tendo em vista que seriam professores de grandes centros que poderiam dar aula para alunos de regiões mais distantes e remotas – ganhando escala graças à tecnologia.
Apesar de tantos benefícios e resultados animadores, a tecnologia não irá substituir o modelo presencial das IES. É na faculdade e no ensino presencial que os alunos se relacionam com outras pessoas, fazem networking (pois tem contato com os mais diversos tipos de pessoas), criam soluções e são influenciados positivamente pelo ambiente acadêmico, que favorece o aprendizado (se comparado a uma tela de computador). Além disso, para fins de mercado de trabalho, entrar em uma faculdade (no sistema tradicional) é um grande critério para se destacar e conseguir uma vaga, pois ainda é um dos grandes diferenciais no modelo que temos hoje em dia.
O objetivo de alinhar a tecnologia e a educação, portanto, é compartilhar o conhecimento de qualidade e democratizar o ensino, tendo em vista o baixo custo e a acessibilidade que a tecnologia traz.
As instituições tradicionais de ensino superior, apesar de esforços para transformarem seus tópicos em um conteúdo digital e profissionalizante, ainda possuem custos fixos e de infraestrutura muito altos para, de fato, reduzirem de forma significativa seus custos com aulas online. O que nos levar a incentivar que outras instituições de ensino (até mesmo ensino suplementar ou profissionalizante) sejam criadas, a fim de dar mais opções para a população aprender e se capacitar.
Entendo que não é possível definir se o ensino a distância é inferior ou superior ao ensino presencial, uma vez que os alunos das duas modalidades apresentam resultados muito próximos. Os cursos à distância são uma alternativa mais barata e dinâmica de ensino, além de dar a opção de o aluno aprender quando e onde quiser, bem como no seu ritmo, podendo rever as aulas. No ano de 2020, a quantidade de alunos de universidades particulares que optou pelo ensino à distância se tornou maior do que o número daqueles que preferiram o presencial. Atualmente o Brasil conta com mais de 125 milhões de cursos à distância18.
O Direito precisa sim se modernizar e tirar a gravata do tradicionalismo. A linguagem precisa ser mais simples e os cursos precisam ser mais baratos e menos burocráticos. Assim, cidadãos de todo o país podem aprender diversos aspectos das nossas leis (mesmo que longe da advocacia), podendo participar ativamente da vida política do nosso país, e entendendo como diferenciar uma opinião de um fato, uma informação de uma desinformação.
Já passou da hora de adaptarmos o ensino para refletir a linguagem usada pela população em geral e os meios pelos quais essa informação é vinculada. O conhecimento não precisa custar caro, ser complicado ou distante – o conhecimento deve ser compartilhado.
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1 Justiça reduziu número de casos pendentes em 2018, diz relatório do CNJ.
2 Disponível em: clique aqui . Acesso: 27 mai. 2021
3 Disponível em: clique aqui. Acesso: 27 mai. 2021
4 Disponível em: clique aqui. Acesso: 26 mai. 2021
5 Disponível em: clique aqui. Acesso: 26 mai. 2021
6 Disponível em: clique aqui. Acesso: 26 mai. 2021
7 Disponível em: clique aqui. Acesso: 26 mai. 2021
8 Disponível em: clique aqui. Acesso: 26 mai. 2021
9 Disponível em: clique aqui. Acesso: 26 mai. 2021
10 Disponível em: clique aqui.Acesso: 25 mai. 2021
11 Disponível em: clique aqui. Acesso: 25 mai. 2021
12 Disponível em: clique aqui. Acesso: 25 mai. 2021
13 Disponível em: clique aqui. Acesso: 25 mai. 2021
14 Disponível em: clique aqui. Acesso: 26 mai. 2021
15 Disponível em: clique aqui. Acesso: 25 mai. 2021
16 Brasil tem mais de 1.500 cursos de Direito, mas só 232 têm desempenho satisfatório.