Estamos diante de um surto de natureza viral, no qual o número de infectados pela Covid-19 continua crescendo exponencialmente. No Brasil, dados alarmantes indicam que, para além das vidas perdidas, enfrentamos a maior crise sanitária e hospitalar de nossa história1.
Pode até não ser claro em uma primeira análise, mas essa realidade acabou desencadeando, também, um surto de natureza civilizatória e social. Ocorre que, justamente nesses momentos de crises e surtos, acabamos perdendo de vista as razões de ser das coisas e deixando que a emergência dos problemas atrapalhe a identificação dos diversos desafios impostos – o que dificulta a tomada de decisão consciente, tanto no curto quanto no longo prazo. Não à toa, as grandes revoluções, principalmente as ocidentais, se deram após graves crises.
Diante desse cenário, propomos, aqui, uma repactuação dos princípios e valores da nossa Constituição Federal, pois o texto constitucional mostra-se como importante aliado no combate à pandemia, dando as diretrizes para uma reflexão necessária, a qual não deve se restringir apenas ao exercício dos poderes, mas também resgatar os objetivos que norteiam a convivência em sociedade.
Para tanto, iniciemos com uma analogia baseada em exemplo corriqueiro no imaginário brasileiro: os confrontos FLA x FLU, que representam grandes rivalidades futebolísticas nacionais. De um lado está o nosso time, composto pelas instituições democráticas do Poder Executivo e Legislativo (Presidência e ministérios, Governos de Estados, Congresso Nacional, Assembleias Legislativas, Câmaras Municipais, prefeituras, secretarias de saúde, órgãos reguladores, entre outros). Do outro lado, está o time adversário, o coronavírus.
Os membros da comissão técnica da nossa equipe são os cientistas e especialistas, os quais, analisando o time adversário e as suas ameaças, passam as instruções táticas sobre como enfrentar o inimigo. O árbitro da partida é o Poder Judiciário que encontra na Constituição Federal as regras do jogo.
Enquanto isso, nós, (o povo, também donos do time), estamos assistindo e torcendo de nossas casas por uma mudança nos rumos da partida. Infelizmente, no atual placar da disputa, estamos diante de um 7 a 1 ainda mais dolorido do que o anterior sofrido na Copa do Mundo de 2014: mais de trezentos e setenta mil brasileiros e brasileiras perderam a vida porque ainda não conseguimos segurar o time adversário.
Os impactos causados pelo time adversário, e pelo nosso comportamento no jogo, também são de ordem econômica e social, resultando no aumento das desigualdades, do desemprego e da informalidade, além do aumento dos preços dos bens, entre outros fatores de crise econômica que deverão seguir conosco por bastante tempo após conseguirmos conter o vírus.
Um dos primeiros desafios do nosso time é frear o crescimento da curva de contágio, e, para isso, o foco da nossa jogada deve ser a diminuição da posse e do toque de bola adversários. As jogadas são as nossas políticas públicas e, enquanto diretrizes para enfrentar um problema público2, são desenhadas e avaliadas pelo time como um todo.
Para roubar a posse de bola, precisamos de distanciamento social. No entanto, como se sabe, as taxas de distanciamento social em todo o país estão abaixo do necessário para diminuir o crescimento da curva. Segundo estatísticas, apenas cerca de 34% da população cumpre o isolamento social, ao passo que os especialistas recomendam taxas de 70%3. Pelo menos agora, nosso time conta com uma outra técnica de ataque: a vacina. Todavia, ainda não conseguimos realizar essa técnica de maneira ampla e urgente de modo a conter a crise hospitalar e, com isso, combater recordes diários de mortes.
Visando a superação desse desafio é necessário a união do time, uma coordenação central que: (a) deixe espaço para autonomia de cada um dos jogadores (governos locais); mas que, ao mesmo tempo, (b) considere que todos os envolvidos estão cientes dos objetivos traçados e, nessa linha, empenharão todas as forças para contenção do vírus. É muito trabalho, ninguém conseguiria fazer isso sozinho, ou seja, precisamos não apenas de união, mas, sim, precisamos da União! A palavra-chave aqui, então, é federalismo4.
A Constituição Federal determina qual jogador (qual ente federativo) deve fazer cada jogada, quais são as responsabilidades e as competências de cada um. O artigo 197 da Carta Magna prevê a saúde como um direito de todos e dever do Estado, a qual deve ser garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças, de modo a promover o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Além disso, o texto constitucional também estabelece que “cuidar da saúde e assistência pública” é competência comum dos três entes federativos, tanto que, todas as ações e serviços de saúde prestados por instituições públicas integram o nosso Sistema Único de Saúde, o SUS5.
A união dos entes federativos é crucial para todo o processo de prevenção e de imunização da população, respeitando não apenas o direito à vida6, mas olhando também para os objetivos de nosso país, contidos no artigo 3º da Constituição Federal, especialmente o de erradicar a pobreza e a marginalização, bem como de reduzir as desigualdades sociais e regionais, descrito no inciso III de tal dispositivo constitucional. A pandemia, infelizmente, nos deixou mais distantes desse objetivo, ela escancarou e piorou as desigualdades em todos os âmbitos – social, econômico, regional, racial e de gênero – mas não devemos desistir se tentar alcançar tal fim.
Após o término do auxílio emergencial, o número de brasileiros que vivem na extrema pobreza cresceu7. Atualmente, são mais de 19 milhões de nacionais que estão em insegurança alimentar ou passando fome8. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que há pelo menos 13,9 milhões de desempregados9 em nosso país. Enquanto isso, de maneira oposta, o número de bilionários brasileiros e o montante de suas fortunas aumentaram10.
Em relação à desigualdade regional, estima-se que o Ministério da Saúde tenha repassado ao menos R$ 23 bilhões aos municípios brasileiros para o combate ao coronavírus durante o ano de 2020. Desse montante, os municípios da região norte foram os que menos receberam recursos. A título exemplificativo, enquanto a população de Porto Alegre recebeu cerca de R$ 229 por habitante, Manaus recebeu apenas R$ 2411.
Enfrentamos também desafios que reforçam nossa desigualdade racial: apesar da população negra ser a maioria absoluta dentre os casos registrados e de mortes decorrentes da COVID-19, hoje há cerca de duas pessoas brancas para cada pessoa negra vacinada12. A população indígena também foi impactada de maneira desproporcional, registrando uma letalidade de mais de 16%13, ao passo que a média nacional é de 4,2%14.
As mulheres, valente maioria da linha de frente do combate à COVID-1915, têm sua situação de desigualdade aumentada pelo triste aumento de casos de violência doméstica decorrente da saída do mercado de trabalho, para retorno (ou aumento) do expediente doméstico.
Diante do aumento dessas desigualdades, precisamos relembrar que a Constituição Federal é o pacto fundante de uma sociedade, pacto este assumido por todos os seus cidadãos na busca por justiça e paz social16. Esse contrato social tem como premissa firmar os objetivos17, princípios18, valores19 e direitos daquela comunidade, além de estabelecer regras de convivência, funcionamento e organização de todos os seus indivíduos.
A Constituição Federal já nos deu uma estrutura robusta na qual estão previstos os princípios norteadores, acordados por toda a nossa sociedade, e que podem nos guiar para o enfrentamento da maior crise do século 21. Neste FLA x FLU da vida real, o tempo perdido é calculado por famílias chorando a morte de seus entes queridos. Passou a hora do nosso time conversar, tanto em campo quanto nos vestiários, a fim de traçar as melhores táticas e jogadas, pois a estratégia vitoriosa já está desenhada - precisamos repactuar seus termos e fazer valer essa estratégia se quisermos uma sociedade mais livre justa e solidária, na qual caminhemos em direção à erradicação (e não agravamento) da pobreza, da marginalização e das desigualdades.
*Pedro Henrique Araujo Silva é estudante de Direito na USP. Estagiário do escritório Dinamarco, Rossi, Beraldo & Bedaque. Voluntário do Projeto Constituição Nas Escolas.
**Isabel Cortellini é advogada formada pela PUC/SP e mestra em Ciências Políticas pela Universidade de Leiden, na Holanda. Atua com políticas públicas e gestão de projetos - tem experiência com advocacy em assuntos relacionados a tecnologia, sustentabilidade e educação.
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1 CARVALHO, Marcos Antonio. Taxa de ocupação de UTI para covid-19 está acima de 80% em 24 Estados e no DF. O Estado de SP. Disponível aqui. Acesso em: 18, mar., 2021.
2 SECCHI, L.; COELHO, F. S.; PIRES; V.. Políticas Públicas: conceitos, esquemas de análise, casos práticos. 3. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2020.
3 FELIX, P.; PARAENSE, R.; BISPO, F. Pandemia no Brasil piora, mas só 1/3 cumpre o isolamento; especialistas recomendam 70%. O Estado de São Paulo. Disponível aqui. Acesso em: 18, mar, 2021.
4 O federalismo é um modelo de Estado no qual o poder soberano, suas responsabilidades e competências, são divididos (no caso brasileiro em: União, estados e municípios). A vantagem desse modelo é a pluralidade de centros de poder, os quais, coordenados entre si em uma democracia representativa, permitem a unificação de diversas comunidades nacionais (respeitando a diversidade e inovação) e maior participação política de seus integrantes (você vota nas três esferas e não em uma apenas, por exemplo), ao mesmo tempo que mantém uma unidade política e econômica (BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. (orgs.). Dicionário de Política. 12.ed. Brasília: LGE Editora/Editora UnB, 2004, p. 481).
5 O art. 4º da lei 8.080/90 dispõe que: "o conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS)".
6 É preciso recordar que o direito à vida consta no caput do art. 5º do nosso texto constitucional. Na verdade, podemos ir além e nos questionar se, quando falamos de uma carta política fundante de nossa sociedade, o direito à vida e a sua proteção não seriam direitos naturais que garantem e contribuem significativamente para a existência de nosso Estado, não sendo, portanto, um direito meramente taxativo, mas sim um direito estruturante e essencial.
7 SCARDOVELLI, Eliane. Número de brasileiros que vivem na extrema pobreza cresce com fim do auxílio emergencial. O Globo. Disponível aqui. Acesso em: 18, mar, 2021.
8 GANDRA, Alana. Pesquisa revela que 19 milhões passaram fome no Brasil no fim de 2020. Agência Brasil. Disponível aqui. Acesso em 07, abr,2021.
9 ALVARENGA, D.; SILVEIRA, D. Desemprego cai para 13,9% no 4º trimestre, mas a taxa média em 2020 é a maior já registrada pelo IBGE. O Globo. Disponível aqui. Acesso em: 27, mar, 2021.
10 QUEM SÃO OS BRASILEIROS NO RANKING DOS BILIONÁRIOS DO MUNDO 2021. Forbes. Disponível aqui. Acesso em: 07, abr., 2021.
11 JUNQUEIRA, Diego. Cidades da região Norte receberam menos recursos federais por habitante para combater a covid-19. Repórter Brasil. Disponível aqui. Acesso em 27, mar, 2021.
12 MUNIZ, B.; FONSECA, B.; FERNANDES, L.; PINA, R.. Brasil registra duas vezes mais pessoas brancas vacinadas que negras. Agência Pública. Disponível aqui. Acesso em: 10, abr., 2021.
13 LUPION, Bruno. Mortalidade por covid-19 entre indígenas é 16% maior. Deutsche Welle. Disponível aqui. Acesso em: 11, abr., 2021.
14 ALENCAR, Bruna. Fiocruz diz que taxa de letalidade da Covid no Brasil aumentou para 4,2% em março. O Globo. Disponível aqui. Acesso em: 11, abr., 2021.
15 MEIRELLES, A.; BARBOSA, A. Mulheres são maioria na linha de frente do combate à Covid-19. CNN. Disponível aqui. Acesso em: 11, abr., 2021.
16 BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. (orgs.). Dicionário de Política. 12.ed. Brasília: LGE Editora/Editora UnB, 2004. 1.318 p.
17 Art. 3º da Constituição Federal: "Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".
18 Art. 4º da Constituição Federal: "A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I - independência nacional; II - prevalência dos direitos humanos; III - autodeterminação dos povos; IV - não-intervenção; V - igualdade entre os Estados; VI - defesa da paz; VII - solução pacífica dos conflitos; VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X - concessão de asilo político. Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações".
19 Art. 1º da Constituição Federal: "A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição".