Recentemente, foram veiculadas diversas notícias a respeito da abertura de novo processo de impeachment do então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, após o americano ter incentivado seus apoiadores a marchar rumo ao Capitólio, sob o pretexto de que as eleições contra seu adversário, Joe Biden, teriam sido fraudadas. Com isso, o tema do impeachment voltou à ordem do dia no debate nacional e internacional.
Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Brasil já foi alvo de dois processos de impeachment. Primeiramente, com o então presidente da República, Fernando Collor de Mello, em 1992 e, posteriormente, em 2016, com a então presidente Dilma Rousseff. Mas, afinal de contas, o que é o impeachment?
Impeachment é uma palavra que deriva do latim impedimentum e significa impedir, proibir de permanecer. Em um regime republicano, como é no Brasil, os agentes públicos são responsáveis pelos atos que praticam no exercício de sua função, pois tal responsabilidade nada mais é do que a contrapartida dos poderes que lhe foram investidos pela soberania popular. Portanto, impeachment é a denominação do processo político que o Presidente da República está sujeito ao praticar infrações de natureza político-administrativa, chamadas de crimes de responsabilidade, ou ao praticar condutas previstas no Código Penal e nas leis penais, os chamados crimes comuns.
Os crimes de responsabilidade estão dispostos no artigo 85 da Constituição Federal, sendo qualquer ato que atente contra o texto constitucional e, especialmente, contra a existência da União; o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; a segurança interna do país; a probidade administrativa; a lei orçamentária e o cumprimento das leis e das decisões judiciais. Importante destacar que o rol de crimes estabelecidos no referido artigo é meramente exemplificativo, isso significa dizer que a lei poderá definir outras condutas que também configurem crime de responsabilidade.
Além da previsão no texto constitucional, os crimes de responsabilidade também estão dispostos em lei específica, a lei 1.079/50, que destrincha as condutas acima elencadas e regula o seu procedimento.
Para instaurar o processo de impeachment em casos de crime de responsabilidade, qualquer cidadão poderá realizar a denúncia, devendo, para tanto, encaminhá-la assinada e acompanhada dos documentos comprobatórios de sua alegação1 para a Câmara dos Deputados. O Presidente da Câmara fará, a priori, uma análise liminar da idoneidade da denúncia, podendo rejeitá-la se entender que a acusação é evidentemente inepta ou sem justa causa, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal no Mandado de Segurança 23.885/022.
Na Câmara, a denúncia será recebida e encaminhada a uma comissão especial eleita exclusivamente para tanto, que contará com a participação de representantes de todos os partidos e ficará responsável pela elaboração de parecer discorrendo se a denúncia em questão deve ou não ser objeto de deliberação. A admissão da acusação deve ser autorizada por dois terços dos membros da Casa Legislativa em uma votação nominal (art. 51, inciso I da CF e art. 22 da lei 1.079/50).
Em caso de recebimento, a denúncia será encaminhada ao denunciado, que poderá contestá-la, fase em que serão determinadas as diligências necessárias para a produção de todas as provas que se julgar necessárias (art. 22, §1º da lei 1.079/50). Em seguida, o parecer será submetido a uma nova votação nominal, que determinará se é o caso de procedência ou não da denúncia (art. 23 da lei 1.079/50). Essa primeira fase consiste em uma análise política acerca da admissibilidade do processo, pois o julgamento propriamente dito é realizado no Senado Federal.
Assim, no caso de procedência da denúncia, o processo será enviado ao Senado e o Presidente será submetido a julgamento (art. 52, I; art. 86, caput, art. 24 da lei 1.079/50), em uma sessão presidida pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (art. 52, parágrafo único da CF). Após a instauração do processo no Senado, o Presidente terá a suspensão do exercício de suas funções e, no caso de eventual condenação, mediante voto de dois terços dos membros do Senado, o Presidente ficará inabilitado para exercer sua função pública no prazo de oito anos, bem como terá a destituição de seu cargo. Caso, entretanto, o Senado julgue improcedentes as acusações, o processo é arquivado e o Presidente segue em seu cargo normalmente.
Quando a conduta do Presidente da República configurar crime comum, o julgamento ocorrerá no Supremo Tribunal Federal, mas, assim como no caso de crime de responsabilidade, a Câmara dos Deputados deverá autorizar, mediante voto de dois terços de seus membros, a instauração do processo (art. 51, I e art. 86, caput da CF).
Nessa hipótese de crime comum, a acusação deve ser feita por meio de denúncia e, caso recebida pelo Supremo Tribunal Federal, o Presidente fica suspenso de suas funções (art. 86, §1º, I da CF). Enquanto não sobrevier sentença condenatória, porém, não estará sujeito a prisão.
Cumpre registrar que, por força do art. 86, §4º da Constituição Federal, o Presidente somente poderá ser responsabilizado por condutas praticadas durante a vigência de seu mandato e que tenham relação com o exercício de sua função pública. Logo, o cometimento de infrações penais comuns que sejam estranhas ao seu ofício somente será objeto de julgamento após o término do seu mandato – trata-se de uma imunidade relativa temporária, conforme já decidido no julgamento do Habeas Corpus nº 83.154/033.
Voltando os olhos aos impeachments enfrentados por dois recentes presidentes brasileiros, vemos que, após as respectivas condenações, o ex-Presidente Fernando Collor ficou inelegível por oito anos, mesmo tendo renunciado ao cargo antes do julgamento do processo de impeachment. A ex-Presidente Dilma Rousseff, por sua vez, teve cassado o seu mandato, visto que ainda o ocupava quando o processo foi julgado, mas, de outro lado, teve mantido o direito de se eleger em eleições futuras.
Essa variação nas penalidades impostas a ambos se deveu ao julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, de um recurso movido por aliados da Presidente Dilma Rousseff para que fossem realizados dois julgamentos distintos na fase final de seu processo de impeachment: o primeiro, para decidir a respeito da perda do mandato pela prática de crime de responsabilidade; e o segundo, para decidir se deveria ela ser declarada inelegível pelos próximos anos ou não. O primeiro, como sabemos, foi procedente para decretar a cassação do mandato da ex-Presidente e o segundo foi procedente para manter os seus direitos políticos. Com isso, Dilma Rousseff candidatou-se ao cargo de Senadora pelo Estado de Minas Gerais, nas eleições de 2018, mas não se elegeu. O ex-presidente Fernando Collor, por sua vez, perdeu os seus direitos políticos por oito anos, tendo retornado à vida pública, em 2006, quando foi eleito Senador pelo Estado de Alagoas.
É notório, portanto, que um processo de impeachment não se trata de procedimento simples, possível de ser iniciado e debatido às pressas. Requer farta e detalhada apuração acerca dos fatos denunciados como sendo crime de responsabilidade cometido pelo Presidente da República instituído no cargo e, além disso, extensa movimentação política na Câmara dos Deputados e no Senado Federal para a votação de sua aceitação e posterior decretação. Infere-se daí, portanto, a importância das eleições legislativas, já que são os membros do Congresso Nacional que, aliados ou não ao Presidente em exercício, poderão conduzi-lo à perda do cargo ou à sua manutenção até o fim de seu mandato.
*Camila Monzani Gozzi é advogada formada pela PUC/SP, especialista em Direito de Família e Sucessões pelo Cogeae/PUC e mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Foi finalista do prêmio Young Leaders of the Americas Initiative, concedido pelo Governo dos Estados Unidos da América, em 2019.
**Paula Boni é advogada formada pela PUC/SP, com atuação em Direito Penal.
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1 Ou acompanhada de declaração de impossibilidade de apresentá-los e, nesse caso, indicando o local onde possam ser encontrados. Nos crimes em que haja prova testemunhal, a denúncia deve apresentar o rol de testemunhas em número mínimo de cinco.
2 STF, MS. 23.885, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 28.08.2002, DJe 20.09.2002.
3 O que o art. 86, § 4º, confere ao presidente da República não é imunidade penal, mas imunidade temporária à persecução penal: nele não se prescreve que o presidente é irresponsável por crimes não funcionais praticados no curso do mandato, mas apenas que, por tais crimes, não poderá ser responsabilizado, enquanto não cesse a investidura na presidência. Da impossibilidade, segundo o art. 86, § 4º, de que, enquanto dure o mandato, tenha curso ou se instaure processo penal contra o presidente da República por crimes não funcionais, decorre que, se o fato é anterior à sua investidura, o Supremo Tribunal não será originariamente competente para a ação penal, nem consequentemente para o habeas corpus por falta de justa causa para o curso futuro do processo. Na questão similar do impedimento temporário à persecução penal do congressista, quando não concedida a licença para o processo, o STF já extraíra, antes que a Constituição o tornasse expresso, a suspensão do curso da prescrição, até a extinção do mandato parlamentar: deixa-se, no entanto, de dar força de decisão à aplicabilidade, no caso, da mesma solução, à falta de competência do Tribunal para, neste momento, decidir a respeito. (HC 83.154, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 11.09.2003, DJe 21.11.2003).