Texto de autoria de Juan Lopes Amaral e Camila Monzani Gozzi
Ao longo dos anos, a estrutura do processo penal foi regida por três sistemas: (i) o sistema inquisitivo, pelo qual recaem sobre uma mesma pessoa ou órgão as atribuições de colher provas, acusar, defender e julgar um mesmo caso, implicando, na maioria das vezes, a ausência de espaço para qualquer manifestação em contrário e gerando, por consequência, decisões de cunho parcial; (ii) o sistema acusatório, no qual tais responsabilidades são atribuídas a pessoas e órgãos nitidamente distintos, assegurando a possibilidade de o julgador, desde que assim justifique, se recuse a julgar determinado caso, que é então apurado por um juiz isento, que se mantém distante, mas atento no manejar dos instrumentos processuais e probatórios produzidos pelas partes; e (iii) o sistema misto, numa fusão entre os dois primeiros, mas garantindo a existência de órgãos distintos, sendo um defensor, outro acusador e o outro julgador. Nesse sistema, resguardam-se componentes inquisitivos para a instrução preliminar e outros acusatórios para a etapa de instrução e julgamento.
No Brasil, alguns dispositivos do CPP, como os artigos 1561, e 282, estabelecem a possibilidade do juiz ordenar a produção de provas de ofício, bem como a responsabilidade de passar por seu crivo o requerimento de arquivamento do inquérito policial e, assim, julgar o caso com maior com imparcialidade.
Essas previsões do CPP, contudo, divergem dos princípios inicialmente eleitos pela Constituição Federal de 1988, trazendo feições inquisitórias ao nosso processo penal de cunho, ao menos majoritário, acusatório. Isso, porém, pode estar com os dias contados.
Sim, pois a Constituição Federal, nos diversos direitos e garantias individuais previstos nos incisos do artigo 5º, demonstra clara preferência ao sistema acusatório (ainda que não o puro) na medida em que assegura a presunção de inocência3, o princípio do juiz natural4, a publicidade dos atos processuais5, a vedação da utilização de provas ilícitas6, o direito ao contraditório e à ampla defesa7 e, ainda, na hipótese de crimes dolosos contra a vida, cujo julgamento está sujeito a júri popular, a plenitude de defesa8.
A opção por adoção do sistema acusatório se confirmou quando, em 24 de dezembro de 2019, foi publicada a lei 13.964/2019, também conhecida como Pacote Anticrime, que, dentre outras alterações, acrescentou o art. 3º-A ao CPP, segundo o qual: "O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação".
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A supracitada mudança legislativa deixou patente que, hoje, o Brasil adota o sistema acusatório no que tange ao desenvolvimento do processo penal. Não obstante, para que tal sistema possa ser efetivamente aplicado e respeitado, faz-se necessária a adoção de alguns institutos e mudanças, tais como:
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A implementação da figura do juiz de garantias, porque, de fato, no sistema acusatório não parece razoável a participação do juiz de instrução e julgamento na investigação, uma vez que tal participação pode (e deve) afetar a sua imparcialidade. Isso porque, ao longo das investigações, o magistrado tem contato com pedidos cautelares – como quebra de sigilos, prisões cautelares, busca e apreensão, etc. – sem a observância do contraditório e da ampla defesa.
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A adaptação do procedimento processual penal à nova redação do art. 28 do CPP que desvinculou do juiz a confirmação (ou não) do arquivamento do inquérito policial, garantindo, ainda mais, a separação entre as funções do órgão acusatório e julgador – traço essencial para que haja maior imparcialidade deste último9.
A manutenção da cadeia de custódia da prova penal10, nos termos do art. 158 do CPP, que é uma sequência de procedimentos, isto é, um conjunto de cuidados na colheita, análise e guarda da prova, para que ela não seja contaminada e, portanto, possa ser utilizada como fidedigno elemento probatório – a fim de assegurar que o processo não seja contaminado por elementos probatórios ilícitos, o que é vedado pelo CPP e inclusive pela Constituição Federal, em seu art. 5º, LVI.
Não obstante o quanto exposto até aqui, em decisão proferida no âmbito de ações que questionam a constitucionalidade da lei que criou o Pacote Anticrime perante o STF11, o ministro Luiz Fux determinou, em janeiro de 2020, a suspensão, por tempo indeterminado, da eficácia de algumas das regras criadas pela dita lei que enfatizaram caráter acusatório do nosso sistema processual penal, justamente como preconizado pela Constituição Federal desde 1988.
Assim, por ora, enquanto os julgamentos sobre o assunto não são postos em pauta, a definição a respeito do tema ficará em aberto – o que, pode-se afirmar, termina por gerar insegurança jurídica.
Relembrando a lição do brilhante jurista Silvio Almeida, "nós estamos na esquina da história"12 e, de fato, se as decisões do STF sobre o tema ocorrerem no momento adequado e com zelo constitucional, mais que dar continuidade às progressistas novidades, vamos efetivar as mudanças que abrem portas para um processo penal acusatório amplo, sabendo que esse é mais um caminho que se faz caminhando.
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1 Art. 156, CPP: "A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:
I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida;
II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante".
2 Art. 28, CPP (redação original): "Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender".
3 Constituição Federal, art. 5º, LVII: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória"”
4 Constituição Federal, art. 5º, LIII: "Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente".
5 Constituição Federal, art. 5º, incisos XXXIII, LX, e art. 93, IX.
6 Constituição Federal, art. 5º, LVI: "São inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos".
7 Constituição Federal, art. 5º, LV: "Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes".
8 Constituição Federal, art. 5º, XXXVIII: "É reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa. (...)".
9 Art. 28, CPP (nova redação): "Ordenado o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do Ministério Público comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade policial e encaminhará os autos para a instância de revisão ministerial para fins de homologação, na forma da lei".
10 Artigo 158-A, CPP.
11 Disponível aqui. Acessado em 29/06/2020.
12 In: Roda Viva, 22/06/2020.