Constituição na Escola

Estados de exceção e o covid-19: Estado de sítio, estado de defesa, calamidade pública e estado de emergência

Estados de exceção e o covid-19: Estado de sítio, estado de defesa, calamidade pública e estado de emergência

27/3/2020

Texto de autoria de Lucas Iosicazo Kanaguchi e Rafael Felix

Com a aparição no Brasil do COVID-19, popularmente chamado de coronavírus, vem sendo muito discutido, após a decretação de estado de calamidade pública por parte do Governo Federal, quais os efeitos práticos de tal decisão e quais outras soluções podem eventualmente ser aplicadas à situação. Diante desse cenário, na sequência explicaremos quais mecanismos e/ou institutos estão previstos em nosso ordenamento jurídico, especialmente na Constituição Federal, para combate a situações excepcionais, de risco, como a atual pandemia.

O estado de emergência e o estado de calamidade pública são conceitos semelhantes e que, por conta disso, muitas vezes acabam sendo confundidos. A diferença entre eles, porém, é relativamente simples: enquanto o primeiro se relaciona à possibilidade iminente de surgirem danos à saúde, à população e aos serviços públicos; no segundo, há a efetiva ocorrência de tais danos, os quais deixam de ser uma hipótese, passando à realidade concreta posta. Por exemplo: antes de haver confirmação do primeiro caso de Corona Vírus no Brasil, o Ministério da Saúde publicou uma portaria declarando emergência na saúde pública, por se tratar de perigo iminente de contágio e disseminação do vírus. Após diversas confirmações de casos de COVID-19 no país, inclusive casos fatais, aí sim foi declarado, pelo Presidente da República com aprovação do Congresso Nacional, o estado de calamidade pública.

A decretação de calamidade pública relaciona-se à necessidade do Governo de aumentar o gasto público para combater a disseminação do dano – no caso, o Corona Vírus –, principalmente no que se refere à disponibilização de recursos para os Estados e Municípios. A Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101), sancionada no ano de 2000, impõe que a União observe as metas fiscais e os limites de gastos determinados para cada ano, o que, na prática, limitaria o quanto o Governo poderia gastar no combate ao Corona Vírus. Entretanto, a própria lei, em seu artigo 65, prevê que, na ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, o Governo é dispensado de atingir a meta fiscal anteriormente imposta. Em síntese, a situação de calamidade pública autoriza gastos extraordinários, para o combate da situação calamitosa.

Para além disso, a nossa Constituição Federal prevê a possibilidade de adoção de outras medidas em casos de calamidade pública, como a abertura de crédito extraordinário, nos termos do artigo 65:

"Art. 167. São vedados:

XIII – a transferência voluntária de recursos, a concessão de avais, as garantias e as subvenções pela União e a concessão de empréstimos e de financiamentos por instituições financeiras federais aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios na hipótese de descumprimento das regras gerais de organização e de funcionamento de regime próprio de previdência social. [...]

§ 3º A abertura de crédito extraordinário somente será admitida para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública, observado o disposto no art. 62.”

E a instituição de empréstimos compulsórios, de caráter tributário, de acordo com o artigo 148:

Art. 148. A União, mediante lei complementar, poderá instituir empréstimos compulsórios: I - para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência;

Mas não é só o estado de emergência ou o estado de calamidade pública que podem ser decretados em situações extraordinárias e calamitosas de grandes proporções. Isso porque, a Constituição Federal ainda prevê a possibilidade de decretação do estado de sítio e do estado de defesa, ambos pelo Presidente da República, após autorização, pelo Congresso Nacional, em maioria absoluta, conforme prevê a Constituição Federal em seus artigos 136 e 137.

O estado de defesa, previsto no artigo 136 da Constituição Federal, é decretado pelo Presidente da República e, após, deve ser confirmado pelo Congresso Nacional, em votação por maioria absoluta. A medida tem como objetivo a preservação ou restabelecimento, em locais restritos e determinados, da ordem pública ou da paz social, quando ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza. O decreto que o institui deverá determinar seu tempo de duração e especificar as áreas a serem abrangidas, além de permitir a adoção de medidas coercitivas como, por exemplo: (i) restrição dos direitos de reunião, do sigilo de correspondência e do sigilo de comunicação telegráfica e telefônica; bem como (ii) a ocupação e o uso temporário de bens e serviços públicos, respondendo a União pelos danos causados e custos decorrentes. O tempo de duração não poderá ser superior a trinta dias, podendo ser prorrogado uma vez, por igual período.

O estado de sítio, por sua vez, está previsto no artigo 137 da Constituição Federal e pode ser aplicado nos casos de: (i) "comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa"; e (ii) "declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira". Nessas duas hipóteses, o pedido de declaração de estado de sítio é feito pelo Presidente da República, mas tem que ser aprovado, na sequência, pela maioria absoluta do Congresso Nacional (artigo 137, parágrafo único, CF).

Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de:

I - comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa;

II - declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.

Parágrafo único. O Presidente da República, ao solicitar autorização para decretar o estado de sítio ou sua prorrogação, relatará os motivos determinantes do pedido, devendo o Congresso Nacional decidir por maioria absoluta.

O decreto que institui o estado de sítio, permite, por exemplo: (i) a obrigação de permanência em localidade determinada; (ii) restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão; (iii) a suspensão da liberdade de reunião; (iv) intervenção nas empresas de serviços públicos e a requisição de bens, dentre outros.

Essa medida – diferentemente do estado de defesa, que alcança local restrito e determinado como uma cidade ou um estado – tem maior abrangência, pois aplica-se a todo o território nacional. Não há prazo fixo para o estado de sítio, devendo o decreto que o instituir estabelecer seu período de duração, as normas necessárias à sua execução e as garantias constitucionais que ficarão suspensas. Não obstante, há limitação de prazo máximo, qual seja: trinta dias, o qual poderá ser prorrogado quantas vezes for necessário, a depender da situação concreta.

Exemplificando: durante a vigência do estado de defesa, o Poder Público teria a possibilidade de restringir o direito de reunião, em decorrência da necessidade de evitar grandes aglomerações. A decretação de estado de sítio, por seu turno, permitiria ao Poder Público a restrição da liberdade de ir e vir do cidadão, obrigando a população, por exemplo, a se manter em quarentena total.

É importante lembrar, porém, a excepcionalidade de todas as medidas aqui apontadas. Sim, pois todas – em maior ou menor grau – implicam restrições de direitos, garantias e liberdades individuais e, portanto, devem ser tratadas com muita cautela.

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Colunista

Felipe Costa Rodrigues Neves é advogado formado pela PUC-SP, Mestre em Direito pela Stanford University, nos Estados Unidos. Felipe e fundador da ONG "Projeto Constituição na Escola", a maior ONG de educação cívica do Brasil, que promove aulas presenciais sobre Direito Constitucional para milhares de alunos da rede pública todo ano. Felipe já foi eleito como uma das pessoas mais influentes pela Forbes 30 Under 30 (2018), escolhido como um dos 11 jovens lideres brasileiros pela Fundação Obama (2017) e nomeado Young Leader of America, pelo Governo dos Estados Unidos (2016). Felipe ainda é o advogado mais jovem a ter recebido o Prêmio Innovare, do Ministério da Justiça (2017)".