Constituição na Escola

A criminalização da homofobia: Como a Constituição Federal aborda a (des)igualdade, as discriminações e o racismo?

A criminalização da homofobia: Como a Constituição Federal aborda a (des)igualdade, as discriminações e o racismo?

8/3/2019

Felipe Costa Rodrigues Neves, Bianca Diniz e Maria Paes Barreto de Araujo

Nesse último mês várias notícias divulgaram a discussão travada no Supremo Tribunal Federal sobre a criminalização (ou não) da homofobia e da transfobia – condutas descritas como a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero.

Essa discussão teve início após a propositura de ações perante a Suprema Corte pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestir, Transgêneros e Intersexos (ABGLT) e pelo Partido Popular Socialista (PPS), em 2012 e 2013, respectivamente. Segundo eles, a Constituição Federal repudia a discriminação dos direitos e liberdades fundamentais; logo, a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero – incluindo-se, aqui, ofensas, agressões e até mesmo o homicídio – deveria ser punida criminalmente. Diante disso, os autores das ações requerem que o Supremo Tribunal Federal fixe um prazo para que o Congresso Nacional legisle sobre o tema ou, caso tal prazo não seja cumprido ou seja considerado desnecessário pela Corte, que ela própria regulamente temporariamente a questão.

O julgamento dessas ações teve início no último dia 13 de fevereiro. Após ouvidos ambos os lados – tanto os a favor quanto os contra a criminalização –, os Ministros iniciaram seus votos. Em primeiro lugar, falou o Ministro Celso de Mello (relator de uma das ações) que defendeu que o Congresso Nacional – e não o Supremo Tribunal Federal – é quem deve editar lei criminalizando a homofobia e a transfobia, mas sem prazo determinado. Nesse meio tempo, em suas palavras, ambas as condutas devem ser enquadradas na Lei do Racismo (lei 7.716/89). Nessa mesma linha votou o Ministro Edson Fachin (relator da segunda ação). Na sequência, os dois relatores foram acompanhados pelos Ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, quando o julgamento acabou suspenso pelo Ministro Dias Toffoli.

A discussão, portanto, ainda está aberta sendo necessárias algumas reflexões. Como a nossa Constituição Federal, colocada em pauta nas supramencionadas ações, trata a (des)igualdade, a discriminação e o racismo? Afinal, o que é racismo? É possível a aplicação do instituto do racismo também à homofobia e à transfobia?

A Constituição Federal, em seu artigo 3º, inciso III, prevê como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais". Apesar de tratar das "desigualdades sociais e regionais" – e não especificamente da desigualdade de gênero – vemos uma preocupação constitucional voltada ao tema.

Na sequência, o artigo 5º afirma que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade". É o chamado princípio da igualdade. No entanto, precisamos lembrar que determinados grupos minoritários possuem situações peculiares, de desigualdade e, desse modo, "a verdadeira igualdade consiste em tratar-se igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade"1. É exatamente por isso que alguns aplaudiram, por exemplo, a criação do Estatuo do Idoso, da Criança e do Adolescente, bem como defendem a existência de cotas raciais para o ingresso em universidades, a criminalização do feminicídio e da homofobia, por entenderem que idosos, jovens, negros, mulheres, gays, lésbicas, transexuais etc. são minorias que merecem atenção especial do Legislador com intuito de alcançarem a igualdade perante o restante da sociedade.

Ainda de acordo com o supramencionado artigo 5º, temos o inciso XLI segundo o qual "a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais" – fundamento trazido pela ABGLT e pelo PPS para as ações aqui discutidas.

Diante disso, percebe-se que o texto constitucional realmente preocupa-se em (i) incentivar a redução das desigualdades – como um dos fundamentos do Brasil; (ii) garantir a igualdade aos cidadãos, na medida de suas desigualdades; e (iii) possibilitar que o Legislador edite leis infraconstitucionais com intuito de punir discriminações contrárias aos direitos e liberdades fundamentais.

A Constituição Federal, inclusive, expressamente previu que a prática de racismo “constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. E, nos termos da lei 7.716/89 – editada pelo Legislador como complemento à previsão constitucional –, são considerados "crimes de racismo" aqueles "resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional".

Importante lembrar que o racismo não pode ser confundido com o delito de injúria racial descrito no artigo 140, §3º, do Código Penal2. Isso porque, segundo o Conselho Nacional de Justiça, "enquanto a injúria racial consiste em ofender a honra de alguém valendo-se de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem, o crime de racismo atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando toda a integralidade de uma raça"3. Exemplo didático de crime de injúria racial: torcedores de um determinado time de futebol que ofendem um jogador negro, chamando-o de “macaco”; exemplo de racismo: impedir que negros, no geral, utilizem o elevador social em edifício público ou residencial (art. 11, lei 7.716/89).

Como se vê, o racismo não se aplica diretamente à discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. No entanto, de acordo com o entendimento atual trazido pelo Supremo Tribunal Federal no início do julgamento das ações propostas pela ABGLT e pelo PPS, até que o Congresso Nacional edite lei específica para criminalização da homofobia e transfobia – nos termos do artigo 5º, XLI, CF e dos demais preceitos constitucionais citados acima – a lei 7.716/89 deve ser, por analogia, aplicada a tais condutas.

A crítica trazida por aqueles defensores da criminalização ora debatida é a de que a falta de regulamentação específica sobre o tema, ainda que possamos aplicar a tipificação do racismo por analogia, traz insegurança jurídica àqueles discriminados por suas orientações sexuais e/ou identidades de gênero – o que vai de encontro ao quanto defendido pela nossa Constituição Federal e até mesmo pela legislação infraconstitucional a qual abarca, por exemplo, o Estatuto do Idoso, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a lei 7.716/89– regulamentações específicas voltadas à proteção de grupos de minoria.

Posto isso, para descobrirmos o desfecho dessa situação, resta aguardarmos a finalização do julgamento das ações pelo Supremo Tribunal Federal bem como eventual discussão de lei específica sobre a criminalização da homofobia e da transfobia pelo Congresso Nacional.

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1 O princípio da igualdade. Acesso em 6/3/2019, às 19h10.

2 Art. 140: "Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro (...) § 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: Pena - reclusão de um a três anos e multa".

3 Conheça a diferença entre racismo e injúria racial. Acesso em 6/3/2019, às 11h25.

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Colunista

Felipe Costa Rodrigues Neves é advogado formado pela PUC-SP, Mestre em Direito pela Stanford University, nos Estados Unidos. Felipe e fundador da ONG "Projeto Constituição na Escola", a maior ONG de educação cívica do Brasil, que promove aulas presenciais sobre Direito Constitucional para milhares de alunos da rede pública todo ano. Felipe já foi eleito como uma das pessoas mais influentes pela Forbes 30 Under 30 (2018), escolhido como um dos 11 jovens lideres brasileiros pela Fundação Obama (2017) e nomeado Young Leader of America, pelo Governo dos Estados Unidos (2016). Felipe ainda é o advogado mais jovem a ter recebido o Prêmio Innovare, do Ministério da Justiça (2017)".