Civilizalhas

O contrato built to suit e a lei 12.744/12

16/1/2013

Built to suit, numa tradução livre, seria "construído para servir", ou "construído para ajustar". Juridicamente, a expressão é utilizada em referência a contratos de locação (antes considerados atípicos por alguns) de bens imóveis urbanos, em que o locador investe dinheiro no imóvel, nele edificando ou por meio de reformas substanciais, sempre com vistas a atender às necessidades previamente identificadas pelo locatário.

Exemplificando, se uma rede de varejo precisa locar um imóvel que tenha determinadas características, qualquer investidor pode providenciar a compra e construção, ou reforma, com a finalidade única de atender aos interesses desse inquilino especificamente. Para tanto, antes do investimento, o locador celebra o contrato built to suit, contemplando um prazo de vigência que lhe permita ter a segurança de recuperar o capital investido, além de perceber rendimentos da locação.

Locações dessa natureza são interessantes para a indústria e comércio. São, portanto, locações para fins não residenciais. Há benefícios de diversas naturezas para o locatário, porque não há imobilização de capital para o exercício de sua atividade (costuma ser melhor aplicar o capital na atividade desenvolvida do que no imóvel), além de possíveis vantagens financeiras e tributárias, dependendo do regime de tributação adotado pela pessoa jurídica. O locador, por sua vez, deve investir para atender às particularidades do inquilino, mas, como recompensa, tem a segurança de um contrato firme, com pessoas jurídicas geralmente estabelecidas no mercado. O prazo contratual fixado é suficientemente extenso para permitir ao locador-investidor recuperar todo o capital investido, além de perceber os rendimentos compatíveis (aluguéis propriamente ditos).

Sobre essa espécie atípica de locação, nunca houve em nosso ordenamento um único artigo de lei que a disciplinasse. A aplicação integral da lei 8.245/91, que regula as locações de imóveis urbanos, é inconciliável com a natureza do built to suit quanto a alguns aspectos.

O mais importante deles diz respeito ao valor locatício. Enquanto na locação convencional, o aluguel remunera o uso do imóvel destinado ao locatário, no built to suit o aluguel deve remunerar, além do uso, também o investimento feito para personalizar o imóvel, ou construí-lo, exclusivamente para atender às necessidades de um inquilino específico. O locador pode até depender de recursos de terceiros para efetivar a construção, sendo comuns operações de financiamento para tal fim.

O contrato, é fácil notar, apresenta complexidade significativamente maior que a locação convencional de imóvel urbano.

Qual o problema da aplicação da lei 8.245/91, quanto a esse aspecto? Todos sabem, a lei permite ao locatário denunciar imotivadamente a locação, comunicando o locador com trinta dias de antecedência, mesmo que o contrato ainda esteja vigendo por prazo determinado. Tal prerrogativa é conferida apenas ao locatário.

A aplicação da referida regra ao built to suit seria injusta. O locador não pode, depois de proceder a um investimento específico para atender ao locatário e, por essa razão celebrar exemplificativamente um contrato de dez anos de duração, ser surpreendido com o comunicado precoce do locatário que não se interessa mais em permanecer no imóvel.

Esse é apenas um dos aspectos, talvez o mais importante, a exigir um tratamento diferenciado aos contratos built to suit.

A lei 8.245/91, exemplo de dirigismo contratual, tolhe parcialmente a liberdade de contratar, porque parte do pressuposto que o locatário está em posição jurídica e econômica mais vulnerável que o locador. Daí a sua proteção ao locatário, com regras de ordem pública que não podem ser afastadas pela vontade das partes. A autonomia da vontade é limitada. O art. 45 da lei 8.245/91 lei impõe a nulidade a todas as cláusulas que visem a elidir os objetivos da lei.

Recentemente, aos 19 de dezembro de 2012, a lei 12.744, publicada no Diário Oficial no dia seguinte, acrescentou o artigo 54-A à lei 8.245/91. O seu caput diz:

"Art. 54-A. Na locação não residencial de imóvel urbano na qual o locador procede à prévia aquisição, construção ou substancial reforma, por si mesmo ou por terceiros, do imóvel então especificado pelo pretendente à locação, a fim de que seja a este locado por prazo determinado, prevalecerão as condições livremente pactuadas no contrato respectivo e as disposições procedimentais previstas nesta Lei".

A lei passou a regular o contrato built to suit, estabelecendo, diferentemente dos princípios protetivos ao locatário, maior amplitude à autonomia da vontade. Ou seja, as cláusulas livremente pactuadas são válidas e não padecerão de nulidade, porque o pressuposto das locações convencionais (vulnerabilidade do locatário) não está presente nos contratos built to suit.

O parágrafo primeiro do art. 54-A determina, expressamente, a possibilidade de se ajustar a renúncia ao direito de revisão do valor dos aluguéis durante o prazo de vigência do contrato. Assim determinou o legislador exatamente porque é comum nos contratos built to suit a renúncia do locatário ao direito de pleitear tal revisão. O texto de lei é feliz e foi acertado porque o valor da locação não corresponde necessariamente ao valor de mercado de ocupação, uma vez que nele costuma estar embutido também o investimento feito (construção ou reforma) para atender ao locatário.

Em face dessas características, parece-nos correto afirmar que mesmo não havendo cláusula dessa natureza, dependendo das circunstâncias, seria temerário eventual pedido do locatário nesse sentido.

É importante notar que a cláusula de renúncia ao direito de revisão do valor locatício é válida somente enquanto o contrato vige por prazo determinado. Se a locação passar a viger por prazo indeterminado, todas as cláusulas continuam valendo, com exceção dessa. A partir de então, o locatário passa a ter o direito de pleitear a revisão do aluguel se estiverem preenchidos os demais requisitos legais. Assim deve ser, pois o montante investido pelo locador já foi recuperado, porque estava diluído nos valores locatícios do contrato durante a sua vigência por prazo determinado.

O parágrafo segundo do art. 54-A determina que "em caso de denúncia antecipada do vínculo locatício pelo locatário, compromete-se este a cumprir a multa convencionada, que não excederá, porém, a soma dos valores dos aluguéis a receber até o termo final da locação".

Na locação convencional, o locador não pode cobrar os aluguéis vincendos (pode apenas cobrar a multa, nos termos do art. 4o. da Lei 8.245/91, modificado pela lei 12.112/09). No built to suit pode. Exatamente pela natureza do contrato.

O parágrafo terceiro, último do referido art. 54-A, foi vetado. A sua redação era a seguinte: “Desde que devidamente registrado o contrato de locação no registro de títulos e documentos da situação do imóvel, os valores relativos aos aluguéis a receber até o termo final contratado serão livremente negociáveis pelo locador com terceiros, na forma dos arts. 286 a 298 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), responsabilizando-se o locatário e eventuais garantidores pelo respectivo adimplemento".

A justificativa para o veto foi a seguinte: "Ao exigir que o contrato seja levado ao Registro de Títulos e Documentos, o dispositivo cria ônus adicional, contrário à própria finalidade do projeto. Ademais, a supressão do dispositivo não obstrui a cessão de crédito nos termos da legislação vigente".

A ideia central da lei é boa. Aumenta a segurança. É importante lembrar que os créditos decorrentes de contratos dessa natureza podem ser securitizados, permitindo a emissão de CRIs. Dúvidas existentes a respeito da aplicação ou não da lei 8.245/91 não eram saudáveis para o mercado imobiliário.

Porém, é questionável a forma como está redigida a lei.

Por exemplo, o caput do art. 54-A diz que "prevalecerão as condições livremente pactuadas no contrato respectivo e as disposições procedimentais previstas nesta Lei". Se as cláusulas podem ser firmadas livremente, não haveria necessidade dos parágrafos. A boa técnica legislativa recomenda que o parágrafo do artigo contenha medidas complementares, explicativas ou excepcionais da norma geral, contida no caput, tudo com o objetivo de possibilitar a perfeita compreensão do sentido da norma.

A dúvida que surge é a seguinte: a liberdade de contratar diz respeito somente ao que está disposto nos parágrafos ou os parágrafos são inclusivos apenas? Se a liberdade é plena e não limitada aos parágrafos, cabem outras perguntas: podem as partes estipular duas modalidades diferentes de garantia? Podem ser cobradas luvas na renovação do contrato? Pode o locatário renunciar antecipadamente ao direito de preferência? Pode ser cobrado aluguel dobrado no mês se dezembro? E o valor correspondente á "res sperata"?

Se o objetivo era o de reforçar a possibilidade de cláusulas daquela natureza, melhor seria ter feito referência a elas no próprio caput. Tudo para não dar margem à interpretação de que a liberdade estaria adstrita apenas à cláusula de renúncia ao direito de revisão e multa que incluísse todos os aluguéis vincendos.

Por fim, é importante destacar que as disposições procedimentais previstas na lei 8.245/91 são aplicáveis aos contratos built to suit. Assim, não serão válidas as cláusulas que afastem algumas dessas normas procedimentais. Por exemplo, a ação de despejo por falta de pagamento deve respeitar o direito do locatário de purgar a mora, não tendo valor eventual disposição contratual que retire do inquilino tal prerrogativa.

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Colunista

Adriano Ferriani é professor de Direito Civil da PUC/SP.