Civilizalhas

Brevíssimas considerações sobre a concessão especial para fins de moradia

21/12/2011

A lei 11.481, de 31 de maio de 2007, preocupada com a regularização fundiária, acrescentou mais dois incisos ao art. 1225 do CC. Referido artigo arrolava como direitos reais, em cada um de seus dez incisos, a propriedade, a superfície, as servidões, o usufruto, o uso, a habitação, o direito do promitente comprador de imóvel, o penhor, a hipoteca e a anticrese. Os dois incisos acrescentados, XI e XII, são reservados, respectivamente, à concessão especial para fins de moradia e à concessão de direito real de uso.

O presente texto analisa, superficialmente, a concessão especial para fins de moradia.

Apesar de a lei 11.481 ter incorporado o inciso XI ao art. 1225 do CC somente em 2007, o instituto já existe desde 2001. A ideia inicial do legislador era a de inseri-lo no ordenamento jurídico por meio do Estatuto da Cidade (lei 10.257/01), dentre os diversos mecanismos então criados para dar efetividade à função social das cidades e também à função social da propriedade. Tanto isso é verdade que a concessão especial para fins de moradia estava disciplinada nos artigos 10 a 15 do referido Estatuto. Porém, tais artigos foram vetados pelo Presidente da República.

O veto presidencial ocorreu não por ser contrário ao mecanismo, mas sim por alguns aspectos do regramento contido no Estatuto da Cidade. Por essa razão, houve o comprometimento de apresentação de um texto para substituir a supressão feita, com as correções julgadas necessárias. E assim surgiu, logo em seguida, no mesmo ano, a MP 2.220, de 4 de setembro de 2001, que vige até hoje, por ser anterior à Emenda Constitucional 32, também de 2001.

O caput do art. 1º da MP 2.220 contém a seguinte redação: "Aquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinquenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural".

Trata-se, portanto, de uma espécie de usucapião que não acarreta a aquisição da propriedade, mas sim da "concessão de uso especial para fins de moradia". O pedido pode ser feito administrativamente pelo interessado e, nesse caso, a Administração Pública tem o prazo de doze meses para apreciá-lo, a contar da data do protocolo do requerimento. Havendo recusa (ou omissão) administrativa, o pedido pode ser feito judicialmente.

Uma das razões expostas para justificar o veto presidencial aos artigos 15 a 20 do Estatuto da Cidade foi a falta de restrição de incidência do novo mecanismo a algumas categorias de imóveis públicos. A crítica era pertinente e adequada.

Com a correção, passou a constituir prerrogativa do Poder Público assegurar o exercício do direito de concessão especial de uso em outro local quando o imóvel objeto de requerimento for: a) de uso comum do povo; b) destinado a projeto de urbanização; c) de interesse da defesa nacional, da preservação ambiental e da proteção dos ecossistemas naturais; d) reservado à construção de represas e obras congêneres; e) situado em via de comunicação.

A prerrogativa não é a de poder ou não poder conferir o direito aos bens públicos que estão nessas condições. A esses bens, impõe-se o indeferimento do pedido como única medida. A prerrogativa consiste em poder conceder, ou não, o benefício ao requerente em outra localidade em que não haja qualquer espécie de restrição. Afinal, a moradia e a dignidade da pessoa desamparada são bens jurídicos que justificam o instituto.

Da leitura dos artigos 1º e 2º da MP 2.220/2001, extraem-se os requisitos para a sua concessão: a) animus domini; b) o exercício contínuo da posse pelo prazo de cinco anos, concluídos até o dia 30 de junho de 2001; c) a ausência de oposição de quem tem legítimo interesse em se opor ao exercício da posse; d) a localização do imóvel em área urbana; e) a utilização do imóvel para a moradia própria do pretendente ou de sua família; f) a ausência de propriedade ou concessão (a qualquer título) de outro imóvel rural ou urbano e g) a ausência de reconhecimento do mesmo direito anteriormente.

Com relação à área do imóvel, o art. 1º determina que não pode ser ela superior a duzentos e cinquenta metros quadrados para o pedido individual. Sendo superior, o possuidor individual não tem direito ao benefício. Porém, de acordo com o art. 2º, se tal área for superior ao limite referido, de 250 m2, e o imóvel for ocupado por população de baixa renda, também para moradia, e desde que observados os mesmos requisitos do art. 1º, não sendo possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, a concessão poderá ser outorgada coletivamente.

Há, portanto, correlação entre a concessão de uso especial para fins de moradia (artigos 1º e 2º da MP 2.220/2001) e as usucapiões previstas, respectivamente, nos artigos 9º e 10 do Estatuto da Cidade, incidentes, porém, sobre imóveis particulares.

O aspecto mais preocupante dessa MP 2.220/2001 está no segundo requisito, acima apresentado, para a sua concessão. Somente os possuidores que exerceram posse por pelo menos cinco anos até o dia 30 de junho de 2001 têm direito ao benefício. A Constituição Federal, no art. 183, caput, que é o fundamento remoto para o instituto, não cria óbice dessa natureza.

A propósito, o Estatuto da Cidade, na parte vetada, também não continha tal limitação. E essa foi outra razão para o veto presidencial. Parece-nos que a limitação temporal é inconstitucional porque a MP cria um requisito mais rígido que a própria CF e também porque fere o princípio da igualdade. Não há sentido algum em atribuir o benefício a quem tinha cinco anos de posse até 30 de junho de 2001 e não fazê-lo a quem, por exemplo, completou o prazo de cinco anos de posse em julho de 2001 ou mesmo em data posterior. Não se pode dar tratamento distinto a cidadãos que estão em posição fática idêntica. A situação do país não mudou. Os problemas fundiários que afligem o Brasil resultam de causas passadas e presentes.

Nessa parte, as regras contidas no Estatuto da Cidade eram mais lógicas e razoáveis.

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Colunista

Adriano Ferriani é professor de Direito Civil da PUC/SP.