Civilizalhas

O seguro de vida, o suicídio e o STJ

9/11/2011

Em 1992, o STJ editou a súmula 61, com o seguinte teor: "O seguro de vida cobre o suicídio não premeditado". Antes disso, o STF já havia editado a súmula 105, que prescrevia: "Salvo se tiver havido premeditação, o suicídio do segurado no período contratual de carência não exime o segurador do pagamento do seguro". Vigia, nessa época, o Código Civil de 1916, que no artigo 1.440, possibilitava o seguro por morte involuntária, em contraposição à morte voluntária, assim considerado "o suicídio premeditado por pessoa em seu juízo". Daí a importância da averiguação da premeditação do suicídio.

Depois, surgiu o Código Civil de 2002, trazendo em seu conteúdo dispositivo completamente distinto (art. 798, caput) para tratar do suicídio no contrato de seguro, a saber: "O beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o segurado se suicida nos primeiros dois anos de vigência inicial do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o disposto no parágrafo único do artigo antecedente".

A nova opção legislativa brasileira foi parecida com a italiana que, no art. 1.927 do Código Civil dispõe: "In caso di suicidio dell'assicurato, avvenuto prima che siano decorsi due anni dalla stipulazione del contratto, l'assicuratore non è tenuto al pagamento delle somme assicurate, salvo patto contrario". A França acolheu sistema não muito diverso.

Assim, foi criada entre nós uma regra objetiva para afastar as infindáveis discussões que o tema suscitava na vigência da lei anterior. A partir da vigência do CC de 2002, a premeditação do suicídio passou a ser irrelevante. Se ocorrer no período de dois anos da contratação do seguro, não cabe indenização. A contrário senso, se ocorrer depois desse período, a seguradora tem a obrigação de indenizar. A regra é objetiva e cogente, não podendo a seguradora impor cláusula que afaste o seu dever de indenizar, com exceção dessa hipótese de suicídio cometido nos dois anos seguintes à celebração do contrato (art. 798, parágrafo único do CC).

Embora as seguradoras preferissem não indenizar o suicídio em qualquer circunstância, independentemente do período transcorrido entre o ajuste contratual e a morte, a exemplo do que vale em Portugal, o prazo de dois anos pode inibir, ou ao menos postergar, eventual pretensão que tenha como suporte também a indenização. Isso é salutar porque pode desestimular o suicídio. Além disso, ganha-se tempo para tratar aquele que já não mais vislumbra razão para estar vivo.

A objetividade do texto legal pode sugerir injustiça, pois a premeditação do suicídio perdeu espaço para dirimir controvérsias dessa natureza. Mas isso é legítimo. Há muitas outras situações no ordenamento jurídico em que prevalece o critério puramente objetivo, como a idade em que se atinge a maioridade, os prazos prescricionais e decadenciais, entre outros.

Apesar disso, o STJ vem interpretando que prevalece a questão da premeditação e que, mesmo o suicídio cometido antes dos dois anos contados da sua contratação, acarreta para a seguradora o dever de indenizar, exceto se ela provar que o segurado agiu premeditadamente. Além de conferir à premeditação importância descabida em face do novo texto legal, desloca o ônus da prova para a seguradora.

A interpretação do STJ parece equivocada. O suicida sofre de problema de saúde, como depressão, esquisofrenia, transtorno bipolar, dentre outros. A questão da "premeditação", ou seja, de celebrar o contrato já com a intenção de se matar, é muito frágil. O comportamento do suicida é muitas vezes oscilante, não havendo propriamente uma lógica normal naquilo que faz. Impor à seguradora o ônus de provar o plano, o ardil, é o mesmo que ignorar tudo isso. A "malícia" que pressupõe a própria morte para o plano ser "bem-sucedido" não pode ser tratada como a malícia do fraudador. Há desproporção violenta entre o evento morte (a própria morte) e o benefício de cunho indenizatório que ela pode gerar.

Sem levar em consideração o texto legal (art. 798 do CC), que é bastante claro, o suicídio praticado por pessoa que tem seguro de vida pode ser analisado sob diversas perspectivas.

Em primeiro lugar, o bem jurídico mais importante nessa situação é a vida do estipulante. Aquele que visa ao suicídio não está bem de saúde psíquica. Não se pode legalmente confortá-lo ao estabelecer a possibilidade de indenização aos beneficiários por ele contemplados, amenizando eventual peso de consciência que sua morte acarretaria. A lei deve, na medida do possível, desestimular o suicídio. E interpretação do STJ não contribui para isso.

Em segundo lugar, deve-se investigar a situação do beneficiário do seguro, que não tem nada a ver com a morte e, normalmente, depende economicamente do suicida. Recusar o pagamento a ele não atinge diretamente o morto, obviamente, mas sim esse terceiro que muitas vezes não tem sequer como sobreviver sem a indenização.

Em terceiro lugar, há de se verificar a situação da seguradora, que tem interesse em não pagar a indenização, porque a condição morte foi buscada propositadamente. E todos sabem, o CC contém regra geral que considera não verificada a condição levada a efeito maliciosamente, por aquele que é beneficiado pelo seu implemento (art. 129).

A interpretação do STJ parece voltar mais a atenção para a proteção do beneficiário, em detrimento da seguradora. Porém, o equívoco dessa "justiça" decorre da despreocupação em relação à situação do próprio suicida, que sabedor da viabilidade jurídica de indenização, pode se sentir não propriamente estimulado, mas sim despreocupado com o aspecto econômico que sua morte pode gerar, em relação a seus entes queridos.

Além disso, a liberdade de interpretação não é ilimitada. Com o devido respeito, decisões nesse sentido não decorrem do poder de interpretar. O STJ, assim agindo, extrapola os seus poderes porque exerce verdadeiro papel de legislador. A premeditação, diferentemente do Código Civil de 1916, não faz mais parte da fattispecie do artigo, devendo ser portanto solenemente ignorada. O juiz não pode ser tutor do legislador, criando o norte que entende mais correto e ignorando as opções legislativas adotadas regularmente. As "flexibilizações", de toda ordem, em que vêm incorrendo algumas decisões, criam o risco nefasto da insegurança jurídica e atenta violentamente contra a tripartição dos poderes. Rompe-se o sistema e ninguém mais sabe o que é certo e errado.

O critério adotado pela lei, correto ou equivocado, é objetivo e apresenta diversas vantagens. A mais relevante delas é a de estimular o potencial suicida a permanecer vivo por dois anos, fato que pode contribuir favoravelmente para a mudança de seu destino.

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Colunista

Adriano Ferriani é professor de Direito Civil da PUC/SP.