A revista Veja publicou, na semana passada (edição 2.227), interessante reportagem, com o seguinte título : "Clique, clique clique... E lá se vai a fidelidade conjugal". O texto informa que muita gente comprometida está fazendo sexo pela internet. Alguns números da pesquisa impressionam : 53% das pessoas entrevistadas praticam ou já praticaram algum tipo de ato de natureza sexual por meio da web e, segundo outra análise, feita com quase 600 pessoas, pelo instituto QualiBest, a pedido do referido hebdomadário, 41% delas já se relacionaram pela internet com alguém, "enquanto tinham outro na vida real".
Tal questão vem ganhando cada vez mais importância por causa dos diversos mecanismos tecnológicos que, somados à internet, possibilitam sortidas formas de realização de fantasias sexuais com outras pessoas, do aconchego do lar e sem o conhecimento do outro consorte ou companheiro. Além disso, sites de relacionamentos exclusivos para pessoas casadas, que prometem sigilo e discrição, proliferam na rede e encorajam aqueles que buscam novas formas de relacionamento e prazer sexual. Esse cenário facilita aos irrequietos, incitados pela simples curiosidade ou pela libido incontida, a busca por novos tipos de relação, afetivas ou sexuais.
O tema é analisado, de forma sucinta, sob o aspecto jurídico.
1) A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado (art. 226, caput, da CF). Por isso, é de interesse público a manutenção de sua saúde e integridade. O casamento é a forma mais comum de constituição de família. Como consequência, é de interesse público a conservação do casamento e demais formas de relações afetivas com vínculo jurídico, como se dá também com a união estável (incluindo-se a união entre pessoas do mesmo sexo).
2) A dignidade da pessoa humana constitui outro importante fundamento da Constituição Federal (art. 1º, inciso III).
3) Da conjunção das duas afirmações acima feitas, conclui-se que o ser humano deve ter os seus direitos fundamentais observados não só pelo Estado e pelos outros indivíduos, de maneira geral, mas também dentro do casamento, da união estável e das relações homoafetivas. Nesse sentido, a pessoa que vive com outra, no âmbito familiar, não pode ser exposta, não pode ser traída e não pode se sujeitar à infidelidade, ao desrespeito e a qualquer atitude desonrosa de seu consorte, que põe em risco a inteireza e a segurança da família, célula nuclear da sociedade. O casamento pressupõe a monogamia e o respeito recíproco.
4) A pessoa casada que desatende o dever de fidelidade comete ilícito civil. Há algum tempo, o adultério não é mais crime. O art. 240 do Código Penal, que tipificava o adultério como crime, foi revogado pela lei 11.106 de 28 de março de 2005. No entanto, continua sendo ilícito civil e enseja consequências dessa natureza ao infrator (art. 1573, inciso I, do Código Civil).
5) A infidelidade é expressão abrangente. O Código Civil não a define. Embora haja na doutrina certa controvérsia sobre o seu conceito, parece-nos que a infidelidade pode se configurar com relação sexual (infidelidade material) ou sem ela (infidelidade moral). Não é necessária a conjunção carnal. Portanto, pouco importa se há contato físico ou se a relação é apenas virtual.
6) A discussão em torno de saber se a investida, conversa, flerte ou sexo virtuais constituem ou não infidelidade parece inócua. Isso porque além da fidelidade, constitui dever conjugal o respeito e consideração recíprocos. Esse é um dever autônomo, que não está condicionado à fidelidade. O cônjuge que se relaciona afetiva ou sexualmente, pela internet, com outra pessoa, desrespeita o seu consorte e isso é suficiente para caracterizar conduta desconforme com o casamento e união estável. Portanto, ainda que não se considere, tecnicamente, a relação virtual como infidelidade (pela ausência de contato físico), isso não ameniza, em princípio, o grau da infração, no caso ao art. 1566, V, do Código Civil. Não há hierarquia nem predominância dos deveres conjugais uns sobre os outros. Todos eles devem ser observados para o bom andamento da relação conjugal e para a higidez da família.
7) A mesma observação vale para a união estável e para as uniões homoafetivas. O companheiro tem o mesmo dever de lealdade e respeito, conforme preconiza o art. 1724 do Código Civil.
8) A infidelidade ou a conduta desonrosa (que desrespeita o cônjuge) pode se dar em diversos graus e intensidade, tanto por meio do contato físico quanto virtualmente. A pessoa pode usar a internet, nesse sentido, apenas visitando sites pornográficos até interagir com outras pessoas, por conversas (em tempo real ou não) ou mesmo com a utilização de câmeras que possibilitam a troca simultânea, e em tempo real, de imagens. Em princípio, aquilo que constitui infração na "vida real", também o é se o procedimento for virtual. Quem flerta no trabalho, por exemplo, com troca de olhares, insinuações e carícias não age como pessoa comprometida e a conduta pode ser classificada de desonesta (conduta desonrosa), mesmo que não seja efetivada a relação sexual. Se o fenômeno ocorre pela internet, a "traição" não é de menor intensidade apenas por essa razão.
9) Pelo fato de os relacionamentos serem diferentes uns dos outros, a conduta tida como desrespeitosa, desonrosa ou infiel deve sempre ser analisada contextualmente, com as circunstâncias próprias da relação. Isso porque a conduta desonrosa ou infiel pressupõe culpa. E a análise da culpa deve ser feita observando-se a dinâmica do relacionamento. Há casais que têm relações mais abertas de parte a parte, seja pelo seu perfil, seja pela distância (long distance marriage). Aquilo que pode ser tido como conduta desonrosa para um casal, pode não ser para outro em face da permissividade recíproca que se outorgam os cônjuges ou companheiros. A questão da culpa por infidelidade ou por conduta desrespeitosa, desonrosa, parece estar intimamente ligada à desonestidade e à falta de consideração pelo sentimento alheio. Para exemplificar, podemos citar o simples namoro, que antecede qualquer espécie de relação afetiva mais séria. O namoro, diferentemente do casamento, da união estável e da união homoafetiva, não gera vínculo jurídico entre as partes. E já no namoro é possível perceber que a razão que gera o seu rompimento, quando motivado em conduta reprovável da outra parte, varia bastante. Ou seja, há pessoas, mais austeras, que terminam o namoro por tomarem ciência que o namorado, ou namorada, visitou site considerado libertino; outras pessoas toleram tal comportamento, mas não suportam a interatividade ou qualquer espécie de namorico virtual. As pessoas são diferentes. Algumas coisas são toleradas por muitos, outras não são admitidas por quase ninguém. Mas há aqueles comportamentos que estão numa zona intermediária, e precisam ser examinados à luz do contexto da relação, caso deles decorram discussões judiciais. Se no namoro é assim, por muito maior razão esse processo pode se dar numa situação em que já existe o vínculo (jurídico), decorrente do casamento ou da união estável.
10) Em face do exposto acima, apesar da flexibilidade do conceito de culpa em situações afetivas, em linhas gerais, parece que a interatividade seria um componente importante para caracterizar o avanço da fronteira entre o que é tolerável e o que desrespeita e justifica o término de uma relação, com as demais consequências de natureza civil. Se não há interatividade, por conversa, flerte, troca de imagens comprometedoras, em tempo real ou não, em princípio, não há conduta desonrosa ou infidelidade. Dependendo das circunstâncias e da dinâmica da relação, o simples acesso a site de conteúdo pornográfico pode caracterizar conduta desonrosa. No entanto, as infrações mais frequentes são aquelas viabilizadas pela câmera e pelos aplicativos que permitem a troca de mensagens instantaneamente. Nesses casos, mesmo não havendo possibilidade de contato físico, o grau de intimidade pode ser quase tão alto quanto, porque permite, além da conversa, o flerte, a prática de atos sexuais, como a masturbação (assistida ou compartilhada).
11) Conforme afirmado inicialmente, a infração aos deveres conjugais acarreta consequências de natureza civil. A primeira delas é o fim da relação conjugal ou da união estável, motivada pela falta cometida pelo cônjuge infiel ou desrespeitoso. A segunda consequência é a privação de alimentos que pode ser imposta ao cônjuge culpado, com a ressalva do parágrafo único do art. 1704 do Código Civil. Além dessas consequências, o cônjuge culpado, caso tenha assumido o sobrenome de seu consorte, pode ser compelido a retirá-lo do nome, com as ressalvas previstas nos três incisos do art. 1578 do Código Civil. Por fim, pode o culpado ser condenado a pagar indenização por danos, materiais e morais, decorrentes de sua atitude.
12) O fato de o infrator se valer do anonimato para a troca de mensagens pela internet ou não mostrar o rosto na troca de imagem, não é suficiente para descaracterizar a infração. Quando muito, pode servir apenas para ser considerado pelo juiz na valoração do dano moral. Isso porque a dor moral do cônjuge ou companheiro inocente pode ser considerada extraordinariamente maior se os fatos forem expostos publicamente ou em seu círculo de relações pessoais e profissionais.