Civilizalhas

A troca de um rim por um Ipad e a disposição do próprio corpo

22/6/2011

Recentemente, a imprensa mundial noticiou o inusitado caso de um geek chinês, de 17 anos, que vendeu um de seus rins para comprar um Ipad 2, o cobiçado tablet da Apple. Depois, arrependeu-se.

Embora o episódio tenha ocorrido na China, examina-se tal situação, assim como a possibilidade de disposição do próprio corpo, à luz do Direito brasileiro.

Evidentemente, contratos dessa natureza atentam contra o bom senso, contra a saúde, contra os bons costumes, a ética, a moral e também contra a lei. Abaixo, seguem algumas considerações sobre o tema.

1) No Brasil, é proibido o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes (art. 13 do Código Civil). Dispor é desfazer-se, é alienar, a título gratuito (doação) ou a título oneroso (compra e venda). A proteção da integridade física fundamenta-se na dignidade da pessoa humana e na inviolabilidade do direito à vida (art. 1º, inciso III e art. 5º, caput, da Constituição Federal).

2) A interpretação do referido art. 13 do Código Civil, a contrário senso, permite concluir que o ato de disposição que não acarreta diminuição permanente da integridade física e não atenta contra os bons costumes é permitido (ex: disposição de cabelo, unha, leite materno).

3) Se houver exigência médica, o ato de disposição também é admitido, como a extração de um órgão ou tecido comprometido com uma doença por exemplo, ou a necessidade de amputação de um membro. Nesses casos, é possível a disposição porque a vida e a saúde são, igualmente, os interesses protegidos.

4) O art. 13, parágrafo único, do Código Civil, prescreve que o ato de disposição é permitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial. Transplantar é transferir de uma parte para outra, do mesmo indivíduo, ou de uma pessoa (viva ou morta) para outra.

5) A lei 9.434/97, regulamentada pelo decreto 2.268/97, no art. 9º, caput (com redação dada pela lei 10.211, de 23/3/2001), permite à pessoa juridicamente capaz dispor, desde que gratuitamente, de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes consanguíneos até o quarto grau, ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea. A obrigatória gratuidade do ato de disposição visa à erradicação do comércio e tráfico de órgãos, problema grave que, hodiernamente, aflige diversos países. A regra tem origem na Constituição Federal (art. 199, § 4º), que veda todo tipo de comercialização de órgãos e tecidos humanos, inclusive sangue, para fins de transplante e transfusão.

6) O parágrafo terceiro, do mesmo artigo 9º, firma que somente é permitida a doação de órgãos duplos (ex: rins), de partes de órgãos (ex: fígado), tecidos ou partes do corpo (ex: pele, medula óssea) cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora. Portanto, uma pessoa não pode dispor de órgão fundamental à sua sobrevivência, como o coração, ainda que tal renúncia à vida seja para beneficiar um de seus filhos que padece de doença grave em estado terminal.

7) Em qualquer hipótese, a disposição, para efeito de transplante, deve ser gratuita e a qualquer tempo, antes de implementada, pode ser revogada (art. 5º, § 4º, da lei 9.434/97). Ou seja, não se aplicam os clássicos preceitos de execução específica do contrato. A possibilidade de arrependimento, antes de executada a doação, é ínsita a todos os contratos dessa natureza.

8) A doação de órgão duplo ou partes regeneráveis, bem como o transplante, não dependerão de autorização judicial se feitos entre cônjuges ou parentes consanguíneos até o quarto grau (exemplo de consanguíneo de quarto grau na linha colateral: primos; em linha reta é permitido até entre trisavô e trineto). Não havendo uma dessas relações entre doador e donatário, é imprescindível a autorização judicial (exceto para medula óssea). O objetivo da lei é claramente o de coibir a comercialização de órgãos, tal como ocorreu no episódio chinês que confere título ao presente texto. Por isso, o juiz deve ser extremamente cuidadoso ao analisar pedidos dessa natureza, investigando se a doação é realmente doação, motivada por razões altruísticas e de solidariedade. A falta de relação de parentesco ou de amizade íntima entre o doador e o donatário pode ser um indício de doação simulada.

9) Somente as pessoas que gozam da capacidade plena podem doar. Os incapazes com compatibilidade imunológica comprovada poderão fazer doação somente nos casos de transplante de medula óssea, porém, desde que sua saúde não seja posta em risco. Para tanto, basta a autorização dos pais ou, se o doador não os tiver, a anuência dos responsáveis legais somada à autorização judicial (art. 9º, § 6º da lei 9.434/97).

10) Questão polêmica diz respeito ao transexual. É transexual aquele que acredita firmemente pertencer a outro sexo. O seu corpo não condiz com a sua psique. É necessária a avaliação médica (psiquiátrica) do indivíduo para a verificação do propósito de eventual modificação de sexo. Sendo recomendada a modificação pela medicina, a cirurgia de transgenitalização deve ser efetivada. Embora tudo indique que o legislador não tenha refletido sobre essa questão especificamente, haja vista a redação do art. 13 do CC referir-se apenas a "exigência médica" e não "recomendação" ou "conveniência" médica, essa é a interpretação que deve prevalecer em respeito ao principal suporte em que estão assentados os direitos da personalidade, que é a dignidade da pessoa. Deve ser dada interpretação extensiva à expressão exigência médica porque o bem-estar, a saúde, a intimidade e a integridade psíquica são direitos da personalidade abrigados pela Constituição Federal. Eventual "mutilação do sexo", nessas circunstâncias, visa à adaptação e harmonização do sexo psicológico ao genital.

11) A doação de sangue também é um ato de disposição permitido porque não importa diminuição permanente. Evidente que ninguém pode doar todo o sangue que circula em seu corpo porque isso acarreta a morte. Com relação ao sangue, as regras são similares. A lei 10.205, de 21 de março de 2001, proíbe qualquer tipo de comercialização (art. 1º). Um dos princípios dessa lei é a proibição de remuneração do doador de sangue (art. 14, inciso III). No entanto, não se considera comercialização a cobrança de valores referentes a insumos, materiais, exames sorológicos, imunoematológicos e demais exames laboratoriais definidos pela legislação competente, realizados para a seleção do sangue, componentes ou derivados, bem como honorários por serviços médicos prestados na assistência aos pacientes e aos doadores (art. 2º, parágrafo único).

12) Por fim, para depois da morte, é válida, desde que com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte (art. 14 do Código Civil). Nesse caso, obviamente é permitida a doação de um órgão, ainda que ele não seja duplo ou regenerável.

13) Portanto, a atitude insana do chinês que trocou um de seus rins por um Ipad, examinada à luz do Direito brasileiro, contraria de forma inequívoca a lei. Trata-se de negócio jurídico nulo. Não obstante a nulidade, contratos dessa natureza não se sujeitam às consequências normais da nulidade porque não se pode fazer com que as partes retornem ao status quo ante.

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Colunista

Adriano Ferriani é professor de Direito Civil da PUC/SP.