Civil em pauta

A aurora do direito civil digital: A proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital - Parte II

Eduardo Busatta discute a proteção das crianças e adolescentes no mundo digital sob o aspecto do Direito Civil.

25/10/2024

Dando sequência à reflexão sobre a proposta de Reforma do CC especificamente em relação ao Direito Civil Digital iniciada no artigo anterior1, passamos agora a abordar a proteção de crianças e adolescentes nesse contexto. Neste segundo texto, exploraremos como a proposta de legislação civil visa garantir a segurança, a proteção de dados pessoais e o bem-estar de crianças e adolescentes na era digital.

Com o avanço da tecnologia e a popularização da internet, crianças e adolescentes estão cada vez mais presentes no ambiente digital. É inequívoco que este público, devido à sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, está significativamente mais vulnerável aos riscos inerentes ao meio digital. Casos emblemáticos como o "Desafio do Apagão", um viral nas redes sociais onde pessoas induzem a própria asfixia até desmaiar. Essa prática perigosa resultou na morte de inúmeras crianças e adolescentes2, gerando, inclusive, ações contra as plataformas pelo fato do algoritmo “recomendar” tal desafio para infantes.3

Mesmo em cenários menos extremos, pesquisas científicas têm evidenciado que a exposição excessiva às telas compromete severamente o desenvolvimento físico, emocional e intelectual das novas gerações. Um dado alarmante revela que, pela primeira vez na história, observa-se uma redução no QI dos filhos em comparação aos pais4. Como alertam os especialistas, “o que impomos às nossas crianças é indesculpável. Sem dúvida, jamais na história da humanidade, uma tal experiência de embrutecimento cerebral foi realizada em tão larga escala.” 5

Esse cenário traz à tona a necessidade urgente de garantir a proteção integral desse público vulnerável, assegurando seu melhor e superior interesse conforme estabelecido no Estatuto da Criança e do Adolescente6. É fundamental que o espaço virtual seja um ambiente seguro e saudável, promovendo o desenvolvimento e o bem-estar dos jovens usuários.

O Anteprojeto de Reforma do CC dedica quatro artigos específicos no Capítulo VI, intitulado "A presença e a identidade de crianças e adolescentes no ambiente digital", que materializam e fortalecem os princípios da proteção integral e do melhor interesse, adaptando-os às especificidades do contexto digital. Vale ressaltar que o Anteprojeto propõe uma proteção mais abrangente e concreta que aquela estabelecida pela LGPD, considerada modesta em relação ao público infantojuvenil, uma vez que esta se concentra primordialmente nas questões de consentimento e controle de dados pessoais7.     

Para operacionalizar esta proteção, o Anteprojeto estabelece responsabilidades específicas e bem delineadas aos provedores de serviços digitais.

A primeira delas, denominada dever de verificação eficaz da idade, impõe aos provedores a obrigação de implementar sistemas confiáveis para verificação etária dos usuários, impedindo que crianças e adolescentes acessem conteúdos inapropriados para sua faixa etária. 

Trata-se de ponto crucial para a proteção dos menores, uma vez que o acesso a conteúdo inadequado pode causar sérios impactos em seu desenvolvimento psicológico, emocional e social, colocando até mesmo em risco a sua vida e integridade corporal, como demonstrado acima. A exposição prematura a materiais impróprios, como violência explícita, conteúdo sexual ou discurso de ódio, pode resultar em traumas, ansiedade, comportamentos inadequados e uma compreensão distorcida da realidade. 

A segunda responsabilidade consiste no dever de assegurar o controle parental efetivo, pelo qual os provedores precisam disponibilizar ferramentas eficazes que permitam aos pais e responsáveis limitar e monitorar adequadamente o acesso dos jovens a determinados conteúdos e funcionalidades no ambiente digital. Embora existam soluções disponíveis no mercado para este fim, frequentemente estas se mostram ineficientes, pouco intuitivas ou de difícil acesso e compreensão pelo público em geral. A imposição deste dever aos provedores, com ênfase em sua eficácia, representa um avanço significativo na proteção integral de crianças e adolescentes no meio digital.

Esta obrigação reconhece o papel fundamental dos pais e responsáveis como primeiros guardiões do desenvolvimento saudável dos menores, fornecendo-lhes instrumentos adequados para exercer essa supervisão de forma efetiva no contexto tecnológico atual. Ao estabelecer padrões mínimos de qualidade e usabilidade para estas ferramentas de controle parental, garante-se que a proteção dos menores no ambiente digital não seja apenas uma responsabilidade teórica, mas uma realidade prática e acessível a todas as famílias.

A terceira responsabilidade corresponde ao dever de assegurar a proteção dos dados pessoais de crianças e adolescentes, em estrita conformidade com a lei 13.709, de 14/8/18 LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Embora tal dispositivo possa parecer redundante ou trivial à primeira vista, sua inclusão tem relevância jurídica significativa ao reafirmar expressamente a vigência e aplicabilidade das disposições da LGPD neste contexto específico.

Esta reiteração normativa serve a múltiplos propósitos: reforça a importância da proteção de dados pessoais de menores como direito fundamental, evita potenciais interpretações que poderiam sugerir derrogação tácita das normas protetivas da LGPD, e estabelece uma ponte clara entre os diferentes marcos regulatórios que compõem o sistema de proteção integral de crianças e adolescentes no ambiente digital. Assim, garante-se maior segurança jurídica e efetividade na tutela dos direitos dos menores, especialmente considerando sua particular vulnerabilidade no contexto do tratamento de dados pessoais em plataformas digitais.

Por fim, foi estabelecido o dever de proteção por design, impondo que se deve proteger os direitos das crianças e adolescentes desde a concepção do ambiente digital, garantindo que, em todas as etapas—desenvolvimento, fornecimento, regulação, gestão de comunidades, comunicação e divulgação—o melhor e superior interesse dos jovens seja observado.

Trata-se do reforço na proteção por design estabelecida pela LGPD8 e representa um avanço significativo na tutela dos direitos de crianças e adolescentes no ambiente digital, pois estabelece que a proteção deve ser considerada desde a concepção dos serviços e plataformas, e não apenas como uma adaptação posterior. Esta abordagem preventiva e estrutural garante que o melhor interesse dos jovens seja incorporado em todas as etapas do ciclo de vida dos serviços digitais - desde o desenvolvimento inicial, passando pelo fornecimento, regulação, gestão de comunidades, até a comunicação e divulgação. Tal princípio reconhece que a proteção efetiva não pode ser uma consideração secundária ou reativa, mas deve estar intrinsecamente integrada à própria arquitetura dos ambientes digitais. 

Ao exigir que as plataformas considerem as necessidades e vulnerabilidades específicas dos usuários menores de idade desde o início, este dever promove uma mudança fundamental na forma como os serviços digitais são concebidos e implementados, priorizando a segurança e o desenvolvimento saudável das crianças e adolescentes. Esta abordagem proativa não apenas minimiza riscos potenciais, mas também cria um ambiente digital mais seguro e adequado, alinhando-se aos princípios fundamentais da proteção integral estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pela CF/88.

E tal dever também é imposto claramente aos criadores de produtos e serviços ligados às tecnologias da informação e comunicação destinados a crianças e adolescentes, uma vez que devem ser concebidos com a garantia de sua proteção integral e a prevalência de seus interesses, o que especificado pelo anteprojeto com a enunciação dos seguintes deveres decorrentes: 

Por fim, em uma disposição inovadora, o Anteprojeto proíbe expressamente a veiculação de publicidade em produtos ou serviços de tecnologia da informação destinados a crianças e adolescentes. Esta vedação abrange todas as formas de exibição de produtos ou serviços, incluindo plataformas gratuitas de compartilhamento de conteúdo e redes sociais.

É importante ressaltar que o impacto da publicidade nas crianças já foi considerado pelo legislador brasileiro ao estabelecer9, no CDC, que se considera abusiva a publicidade que explora a deficiência de julgamento e experiência das crianças. Ao vedar a publicidade no ambiente digital, o anteprojeto vai além, reconhecendo as peculiaridades e os riscos específicos deste contexto tecnológico.

Esta abordagem mais rigorosa se justifica pelas características próprias do meio digital, que potencializam os riscos da publicidade direcionada ao público infantil. No ambiente virtual, as técnicas publicitárias são mais sofisticadas e persuasivas, utilizando recursos interativos, personalização algorítmica e elementos lúdicos que tornam ainda mais difícil para as crianças distinguirem conteúdo comercial de entretenimento. Além disso, a exposição constante e a capacidade de coleta e processamento de dados comportamentais permitem estratégias de marketing altamente direcionadas e potencialmente mais manipuladoras. Portanto, a vedação total da publicidade direcionada a crianças no meio digital representa uma resposta proporcional e necessária para proteger efetivamente este público especialmente vulnerável das práticas comerciais predatórias que se desenvolveram no contexto das novas tecnologias.10

Diante disso, é correto afirmar que o Anteprojeto de Reforma do CC representa um marco significativo na proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital, estabelecendo uma proposta de arcabouço normativo robusto e abrangente. As disposições demonstram uma compreensão aprofundada dos desafios contemporâneos e das vulnerabilidades específicas do público infantojuvenil no contexto digital.

A implementação destes dispositivos, aliada aos mecanismos já existentes no ordenamento jurídico brasileiro, tem o potencial de criar um ambiente digital mais seguro e propício ao desenvolvimento saudável das novas gerações. Contudo, o sucesso desta iniciativa dependerá da criação de uma cultura de proteção de dados pessoais, da fiscalização adequada pelos órgãos competentes e da atuação firme do Poder Judiciário. 

A proibição da publicidade direcionada ao público infantojuvenil e a imposição de deveres específicos aos provedores de serviços digitais demonstram uma postura assertiva do legislador na proteção dos interesses das crianças e adolescentes. Estas medidas, embora possam enfrentar resistência do mercado, são fundamentais para garantir que o ambiente digital não se torne um espaço de exploração comercial predatória deste público vulnerável.

__________

1 Disponível aqui.

2 Ver a respeito: Disponível aqui. Acesso em 16 out. 2024.

3 Ver a respeito: Disponível aqui. Acesso em 16 out. 2024.

4 Conforme: DESMURGET, Michel. A fábrica de cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças. São Paulo: Vestígio, 2023.  

5 Idem, p. 273.

6 BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre a Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1990. Disponível aqui. Acesso em: 16 out. 2024.

7 Conforme se vê do art. 14 da LGPD. BRASIL. Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Brasília, DF: Presidência da República, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 16 out. 2024.

8 Estabelecido pelo art. 46, § 2º da LGPD, que assim dispõe: 

Art. 46. Os agentes de tratamento devem adotar medidas de segurança, técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito.

(...).

§ 2º As medidas de que trata o caput deste artigo deverão ser observadas desde a fase de concepção do produto ou do serviço até a sua execução.

9 BRASIL. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1990. Disponível aqui. Acesso em: 16 out. 2024.

10 Ver a respeito: ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Tradução de George Schlesinger. 1. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.

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Colunistas

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.

Flávio Tartuce é pós-doutor e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Patrono regente da pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário da EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico. Relator-Geral da proposta da reforma do Código Civil.