A coluna Civil em Pauta, coordenada por mim e pelo professor Flávio Tartuce, estreia hoje. Seu objetivo é trazer conteúdos teóricos e práticos que sejam úteis à comunidade jurídica e aos cidadãos em matéria de Direito Civil.
Não poderíamos inaugurar a Coluna sem tentar colaborar com os nossos irmãos do Rio Grande do Sul no enfrentamento de desafios jurídicos impostos às suas relações privadas.
É que o Brasil inteiro segue estarrecido com a catástrofe natural que, ainda hoje, assola mais de quatrocentos e quarenta municípios do Rio Grande do Sul1. Inundações, causadas pelas chuvas e por outros fatores naturais, submergiram grande parte do Estado gaúcho, espalhando mortandade, destruições e devastação2.
Inúmeras famílias perderam suas casas e estão atualmente em abrigos improvisados. A destruição alcançou plantações, animais, construções, veículos e outros. No momento em que é escrito este artigo, não há ainda estimativa cronológica para recuperação. O Aeroporto Salgado Filho, por exemplo, projeta que só conseguirá reabrir para funcionamento em setembro3. As águas seguem afogando diversos municípios gaúchos.
O Governador do Rio Grande do Sul decretou estado de calamidade pública em todo o território desse gigante Estado da Federação. Trata-se do decreto estadual 57.596, de 1º de maio de 2024, que dispõe:
Art. 1º Fica declarado estado de calamidade pública no território do Estado do Rio Grande do Sul, atingido pelos eventos climáticos de Chuvas Intensas, COBRADE 1.3.2.1.4, ocorridos no período de 24 de abril a 1º de maio de 2024.
§ 1º Os órgãos e as entidades da administração pública estadual, observadas suas competências, prestarão apoio à população nas áreas afetadas em decorrência dos eventos de que trata este Decreto, em articulação com a Coordenadoria Estadual de Proteção e Defesa Civil.
§ 2º A situação de anormalidade declarada em âmbito estadual por este Decreto, não obsta o início ou o prosseguimento da declaração em âmbito local pelos Municípios, que poderão avaliadas e homologadas pelo Estado.
Art. 2º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação e vigorará pelo prazo de 180 dias.
Em atos posteriores, o Governador do Rio Grande do Sul ratificou a declaração de calamidade pública (decretos estaduais 57.600, de 4 de maio de 2024; e 57.614, de 13 de maio de 2024).
Esse cenário de catástrofe causará inúmeros problemas jurídicos nas relações privadas. Exporemos algumas diretrizes para servir de orientação aos nossos irmãos gaúchos na resolução desses problemas.
Desde logo, lembre-se que esses impactos aproximam-se aos que perturbaram as relações privadas no ano de 2020 com a pandemia da Covid-19. À época, o risco praticamente letal de contaminação acarretou a paralisação de todo o País por força de medidas restritivas de circulação de pessoas.
Diante da semelhança, deixamos uma diretriz jurídica para as relações jurídicas abaladas pela catástrofe natural gaúcha: a aplicação, por analogia, da Lei do Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET), a lei 14.010/20204. De fato, a analogia é uma forma de preenchimento de lacuna legal (art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).
Igualmente, são aplicáveis, mutatis mutandi, todas as ideias desenvolvidas nos diversos artigos jurídicos que foram publicados durante a pandemia da Covid-19, notadamente na Coluna Migalhas Contratuais (coordenada pelos Professores Angélica Carlini, Eroulths Cortiano Jr., Flávio Tartuce, José Fernando Simão, Marília Pedroso Xavier e Maurício Bunazar, integrantes da diretoria do Instituto Brasileiro de Direito Contratual – IBDCont)5.
É preciso, porém, ter cautela: cada caso concreto tem de ser analisado de modo individualizado. Não se pode generalizar de modo indiscriminado. É preciso verificar em que medida a catástrofe gaúcha impactou efetivamente cada situação particular. Em alguns casos concretos, a catástrofe não gerou qualquer impacto efetivo e significativo.
Pense, por exemplo, em um gaúcho, com farto patrimônio em saldo bancário e que more, de aluguel, em Porto Alegre. Suponha que ele tivesse o dever de pagar um boleto bancário de R$ 5.000,00 pela compra de uma geladeira. A inundação de sua casa, em nada, atingiu sua capacidade financeira para pagar esse boleto.
No máximo, por conta da indisponibilidade dos serviços de internet e dos serviços bancários, seria possível justificar o seu atraso no pagamento, de modo a afastar a incidência de encargos moratórios. Afinal de contas, a mora do devedor pressupõe um atraso culposo no pagamento (arts. 394 e 396 do Código Civil – CC6).
Diante disso, passamos a expor algumas reflexões específicas.
Em primeiro lugar, entendemos que, em regra, por aplicação analógica do art. 3º da Lei do RJET7, os prazos prescricionais e decadenciais relativos a situações jurídicas envolvendo moradores das cidades atingidas pela catástrofe devem ser considerados suspensos desde 1º de maio de 2024 (data do supracitado Decreto estadual nº 57.596) até a data em que vier a cessar o estado de calamidade pública (conforme pertinente decreto estadual).
Durante esse período, não é razoável punir o morador dos municípios atingidos pela catástrofe com a prescrição ou com a decadência, por absoluta falta de razoabilidade em exigir dele o exercício de seu direito.
Se não é humanamente impossível, certamente será extremamente oneroso exigir que esse indivíduo que está lutando para sobreviver em meio à tragédia tenha de adotar condutas de cobrança de crédito ou de exercício de direitos. Acresça-se que o próprio Poder Judiciário gaúcho suspendeu prazos processuais diante do fechamento de diversas unidades jurisdicionais que estão submersas pelas águas da chuva e do rio Guaíba8.
Essa regra, porém, pode ser excepcionada, se, no caso concreto, for verificado que o exercício do direito não se tornou demasiadamente oneroso nem inviável.
Em segundo lugar, por incidência analógica do art. 10 da Lei do RJET9, também se devem considerar – em regra – suspensos os prazos de usucapião no mesmo interstício temporal. Há, porém, de admitir-se exceção a essa regra a depender do caso concreto, conforme já expusemos.
Em terceiro lugar, por analogia aos arts. 15 e 16 da Lei do RJET10, não se deve – em regra – admitir prisão civil por inadimplemento de alimentos familiares nem considerar em marcha o prazo de dois meses previsto no art. 611 do Código de Processo Civil para a abertura de processos de inventários, ao menos enquanto perdurar o estado de calamidade pública na forma dos atos normativos do Governador do Estado do Rio Grande do Sul.
Em quarto lugar, em matéria contratual, chamamos a atenção de todas as partes para a necessidade de agir com bom senso, sempre buscando um acordo razoável e distribuindo, entre si, os transtornos causados pela catástrofe natural. Afinal de contas, a postura colaboradora das partes de um contrato decorre da boa-fé objetiva.
Todavia, na hipótese de não haver acordo, alguns institutos e regras jurídicas devem ser colocados à mesa para reflexão.
De um lado, a impossibilidade fortuita superveniente da prestação deve ser levada em conta para permitir a resolução de determinados contratos sem dever de indenização, por força dos arts. 234, 235, 248, 250, 253 e 256 do CC11.
Nesse ponto, é forçoso considerar a existência de regras especiais baseadas em similar lógica de justiça.
Em locação, por exemplo, o perecimento fortuito da coisa ou a impossibilidade fortuita (ainda que temporária) de utilização da coisa pelo locatário deve ser considerada como uma justa causa para a resolução contratual ou, até mesmo, para a redução do aluguel, sem dever de indenização, conforme art. 567 do CC12. Pense, por exemplo, em pessoas que alugavam um apartamento que, atualmente, está totalmente submerso, sem qualquer viabilidade de utilização plena.
De outro lado, a descaracterização da mora por impossibilidade superveniente de o devedor cumprir a obrigação é também ferramenta importante para, em vários casos concretos, afastar a incidência de encargos moratórios e outras consequências decorrentes da mora (arts. 396 e 399 do CC13).
Por fim, a superveniência da catástrofe gaúcha pode ter abalado, no caso concreto, o equilíbrio econômico-financeiro do contrato e pode ter frustrado as legítimas expectativas das partes.
Certamente, se as partes tivessem previsto que a tragédia sobreviria no curso do contrato, elas certamente teriam colocado cláusulas contratuais específicas. À falta de uma cláusula contratual expressa, o próprio ordenamento jurídico prevê regras supletivas, fruto da vontade presumível do homo medius, tudo conforme uma das lógicas de justiça que subjaz o Código Civil: o princípio da vontade presumível14.
Desse modo, os juristas deverão avaliar cada caso concreto para verificar o cabimento da resolução, da revisão contratual ou do emprego de algum meio de defesa de qualquer das partes com base em alguma das seguintes figuras:
a) teoria da imprevisão (arts. 317 e 478 do CC);
b) doutrina da frustração do fim do contrato15;
c) teoria da quebra da base objetiva do contrato, aplicável em relação de consumo, conforme art. 6º, V, do Código de Defesa do Consumidor16;
d) quebra antecipada do contrato17;
e) exceção de inseguridade (art. 477 do CC18);
f) exceção de contrato não cumprido (art. 476 do CC19).
A propósito do tema, recomendamos aprofundado artigo do professor Flávio Tartuce tratando dos impactos da pandemia da Covid-19 nos contratos20.
Esperamos que o bom senso, a boa-fé e a solidariedade presidam todas as relações privadas que foram impactadas pela catástrofe natural gaúcha, de modo que os sujeitos consigam resolver os problemas sem a necessidade de litígios judiciais ou arbitrais.
O Direito, porém, disponibiliza esses diversos institutos para acudir situações emergenciais e de calamidade como essas.
Trata-se de institutos testados e aprimorados em meio a diversas crises e catástrofes que já acometeram a humanidade ao longo da história. Como costuma dizer o professor Flávio Tartuce, nós, os civilistas, estamos entre os juristas mais antigos do Planeta, com milênios de desenvolvimento de institutos jurídicos que conseguem dar respostas aos problemas sociais atuais.
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1 Disponível aqui.
2 Em 12 de maio de 2024, havia a notícia de 145 mortes (Disponível aqui).
3 Disponivel aqui.
4 Em conjunto com o professor Pablo Stolze Gagliano, tivemos a oportunidade de comentar integralmente a Lei do RJET: (1) GAGLIANO, Pablo Stolze; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias. Comentários à Lei da Pandemia (lei 14.010, de 10 de junho de 2020 - RJET).: Análise detalhada das questões de Direito Civil e Direito Processual Civil. In: Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 25, n. 6190, 12 jun. 2020. Disponível aqui; (2) GAGLIANO, Pablo Stolze ; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias. Continuando os comentários à Lei da Pandemia (lei 14.010, de 10 de junho de 2020 - RJET).: Análise dos novos artigos. Revista Jus NavigandiTeresina, ano 25, n. 6279, 9 set. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 15 mai. 2024.
5 Destacamos os artigos publicados a partir de 23 de março de 2020. Disponível aqui.
6 Art. 394. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer.
Art. 396. Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora.
7 Art. 3º Os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020.
§ 1º Este artigo não se aplica enquanto perdurarem as hipóteses específicas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais previstas no ordenamento jurídico nacional.
§ 2º Este artigo aplica-se à decadência, conforme ressalva prevista no art. 207 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).
8 Sobre o tema: TJ-RS suspende prazos processuais e só analisa medidas urgentes.
9 Art. 10. Suspendem-se os prazos de aquisição para a propriedade imobiliária ou mobiliária, nas diversas espécies de usucapião, a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020.
10 Art. 15. Até 30 de outubro de 2020, a prisão civil por dívida alimentícia, prevista no art. 528, § 3º e seguintes da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), deverá ser cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar, sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações.
Art. 16. O prazo do art. 611 do Código de Processo Civil para sucessões abertas a partir de 1º de fevereiro de 2020 terá seu termo inicial dilatado para 30 de outubro de 2020.
Parágrafo único. O prazo de 12 (doze) meses do art. 611 do Código de Processo Civil , para que seja ultimado o processo de inventário e de partilha, caso iniciado antes de 1º de fevereiro de 2020, ficará suspenso a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020.
11 Art. 234. Se, no caso do artigo antecedente, a coisa se perder, sem culpa do devedor, antes da tradição, ou pendente a condição suspensiva, fica resolvida a obrigação para ambas as partes; se a perda resultar de culpa do devedor, responderá este pelo equivalente e mais perdas e danos.
Art. 235. Deteriorada a coisa, não sendo o devedor culpado, poderá o credor resolver a obrigação, ou aceitar a coisa, abatido de seu preço o valor que perdeu.
Art. 248. Se a prestação do fato tornar-se impossível sem culpa do devedor, resolver-se-á a obrigação; se por culpa dele, responderá por perdas e danos.
Art. 250. Extingue-se a obrigação de não fazer, desde que, sem culpa do devedor, se lhe torne impossível abster-se do ato, que se obrigou a não praticar.
Art. 253. Se uma das duas prestações não puder ser objeto de obrigação ou se tornada inexeqüível, subsistirá o débito quanto à outra.
Art. 256. Se todas as prestações se tornarem impossíveis sem culpa do devedor, extinguir-se-á a obrigação.
12 Art. 567. Se, durante a locação, se deteriorar a coisa alugada, sem culpa do locatário, a este caberá pedir redução proporcional do aluguel, ou resolver o contrato, caso já não sirva a coisa para o fim a que se destinava.
13 Art. 396. Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora.
Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada.
14 Sobre o princípio da vontade presumível, ver: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O Princípio da Vontade Presumível no Direito Civil: fundamento e desdobramentos práticos. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, janeiro 2023 (Texto para Discussão nº 314). Disponível aqui. Publicado em 18 de janeiro de 2023.
15 José Fernando Simão faz aprofundada abordagem da necessidade de pensar na base do contrato, suscitando ideias que também atraem reflexões não apenas acerca da teoria da quebra da base do contrato, mas também da frustração do fim do contrato (SIMÃO, José Fernando Simão."O contrato nos tempos da covid-19". Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio. Disponível aqui. Publicado em 3 de abril de 2020). Lembramos que a doutrina da frustração do fim do contrato foi desenvolvida na Inglaterra, ao passo que a teoria da quebra da base do contarto, na Alemanha. Ambas, porém, descendem da cláusula rebus sic standibus, conceito oriundo do direito romano, conforme lembra Reinhard Zimmermann (ZIMMERMANN, Reinhard. Derecho privado europeo. Buenos Aires/Argentina: Editora Astrea, 2017).
16 Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...) V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.
17 Sobre o tema, reportamo-nos a este artigo: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O coronavírus, a quebra antecipada não culposa de contrato e a revisão contratual: o teste da vontade presumível. Publicado em 17 de março de 2020.
18 Art. 477. Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la.
19 Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro.
20 TARTUCE, Flávio. O coronavírus e os contratos - Extinção, revisão e conservação - Boa-fé, bom senso e solidariedade. Disponível aqui. Publicado em 27 de março de 2020.