O jovem casal está ali, diante da igreja, certamente saindo da missa das seis. Ou preparando-se para entrar e assistir à missa das sete. Ambos têm na mão esquerda um copinho de sorvete. Na mão direita um pequeno objeto que, desta distância, não dá para precisar bem o que seja. Como eles, cadenciadamente, levam a mão direita fechada até a altura da respectiva boca, pode-se presumir que o que eles seguram é uma pazinha de madeira ou de plástico, destinada a retirar do copinho o que ali dentro se encontra.
- Missa, que missa?, meu rapaz. Meça bem tuas palavras. Então nós temos cara de quem vai à missa? Olhe bem nos meus olhos. Vocês escritores - se é que cronista merece o nome de escritor - têm essa leviandade de pôr no papel a primeira impressão que lhes ocorre, como se o mundo fosse terminar amanhã. Quer dizer, com o efeito estufa que aí está e com a saúde de ferro do George W., isso é bem possível acontecer, falo do fim do mundo, tudo indica que virá mesmo, mais hoje mais amanhã, mas, até prova em contrário, ainda teremos mais algumas décadas, ou, pelo menos, alguns anos para continuarmos a tomar o nosso sorvete de açaí, como eu e a Annie aqui do lado, minha noiva...
- Muito prazer!
... O prazer certamente não é dela, que só lhe deu esse sorriso por força de um condicionamento cultural, já que mostrar os dentes para um estranho é, entre os animais, uma forma de impor distâncias. O sorriso é a sublimação do rosnar. Aliás, que motivo ela teria para mostrar-se alegre diante de um estranho? Especialmente sendo ele um bisbilhotador da vida alheia, como o senhor? Já leu Gramsci? Voltando ao Bush - falo agora com você, amorzinho - repare: esses anos todos com a poluição se acumulando, a imprensa livre amordaçada pelo capitalismo mais selvagem que já houve - veja a opressão do povo livre do Iraque - o nosso povo ordeiro e trabalhador sendo alienado pelas forças oligárquicas imperialistas que mais não fazem do que despejar pão e circo pelos meios de comunicação diariamente, seja valendo-se da televisão, a invadir, sem escrúpulos - veja o caso emblemático do BBB - os lares da classe obreira, aproveitando-se de jornadas de trabalho estafantes e que retira do povo - retira, não: diminui - sua capacidade de resistir e lutar por uma sociedade mais justa, seja o cinema...
- O seu sorvete vai derreter.
... Obrigado. Bom esse sorvete de açaí, né bem? Eu ainda não tinha experimentado. Ele me fez pensar em mudar o enfoque da minha tese. Em lugar de escrever sobre a possibilidade e evidência de que Deus não toma sorvete, eu reconsiderarei a extenção da obra, ...
- Extensão é com s e não com ç.
... considerando que ainda não é minha tese de doutorado. Mas, como eu lhe dizia, minha querida, antes de ser interrompido por esse, esse.
- Desculpe.
Pois veja bem: se Deus é infinito, tudo n'Ele é infinito. Inclusive sua sede e seu bom gosto. Ora, quem tem bom gosto e tem sede toma sorvete. Sei que, dito assim, fora do contexto e sem os prolegômenos próprios de uma tese acadêmica, pode parecer anúncio da Kibon. Ou do sindicato dos fabricantes de sorvete. O Mezan disse que eu não me preocupasse com esses aspectos formais. "O que conta é a essência! O que conta é a essência! Depois a gente vê isso." Simpático o Mezan, sabia? Eu achava aquilo de ele escrever no Estadão uma concessão pequeno-burguesa, mas nada como enfrentar a fera cara a cara, olho no olho. Sabe que ele leva jeito? Estou usando expressões dele. "Você leva jeito, Vladimir". Foi o que o Mezan me disse. Não entendi porque ele me chamou de Vladimir, mas você há de concordar que é um nome um tanto..., um tanto..., como direi?, revolucionário, é ou não é? Bom isso, né? Sabia que ele não é formado em Psicologia? Lá na PUC o pessoal chama ele de epistemólogo. Bom ele me aceitar como orientando, cê não acha? Voltando à minha tese: se Deus tem fome e sede, como admito, ex ante, que Ele tem, então não haveria sorvete no mundo, pois todo sorvete produzido seria destinado a satisfazer essa sede infinita. Sacou? O problema é que hoje foi já a quarta vez que eu pedi sorvete de coco e o rapaz disse que de coco ele não tem. "Outra vez?", eu perguntei. Ele fez uma cara de quem sabe mas não quer contar. Você reparou, bem? Eu ainda insisti: "mas quando chega?" E ele: "Só Deus sabe!"
O ônibus para no ponto situado diante da igreja. Os dois jovens atiram os respectivos copos plásticos no jardinzinho ali mais ao lado esquerdo, considerando a posição de quem entra na igreja. Ele passa, várias vezes, a palma da mão direita na lateral da calça, segura, com a mão esquerda, o braço direito da noiva - coisa que o Mezan certamente diria que é exercício de posse e domínio - e ambos se apressam para tomar o ônibus, pois o próximo sabe-se lá quando passa. Antes de subir, o rapaz ainda me dá uma olhada, com ar de superioridade. Parece-me que ele me exibe o pulso direito fechado, com um dos dedos voltado para o alto. Não tenho muita certeza, pois não deu pra ver muito bem.
Acho que devo ir ao oftalmologista.
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