Ao deputado federal Antonio Carlos de Mendes Thame, um oásis moral perdido no deserto brasiliense
Rubem Alves, com sua dupla autoridade de psicólogo e entendedor das coisas divinas, nos diz, no excelente O Velho que acordou Menino, que todas as pessoas normais têm o ímpeto de furtar. Antes de falar de seu primeiro furto, afirmação que nos faz supor que deve ter havido outros, ele traz o aval de ninguém menos do que Santo Agostinho, que, mesmo tendo no quintal de casa frutas deliciosas, não se pejava de pular o muro, apenas pelo prazer de provar da fruta alheia. E o santo certamente não desconhecia que a Humanidade é fruto do furto de uma fruta, se me permites o deboche. Aliás, se a tendência do ser humano fosse a de respeitar a vida e o patrimônio alheios, para que se perderia tempo contemplando isso no Decálogo? Quem faz a pergunta não sou eu, mas o Rubens, mineiro bom de prosa, o que é uma redundância. O A Arte de Furtar não foi atribuído a ninguém menos do que o padre Vieira? Pois então.
Consciência tranquila ante minha normalidade, vou buscar em minha biografia aquilo que me equipara ao autor do Confiteor. Se Agostinho podia furtar e depois invocar sua pecadora humanidade, quia non ego? Veja lá, meu caro Príncipe Credídio, se a ferrugem do tempo não me comprometeu, dentre outras coisas, também o latinório. Se o bispo de Hipona, que era tudo aquilo, podia, certamente eu, ligeiramente mais pecador do que ele, também poderei. Nem que seja à custa de uma tal isonomia, o que quer que isso signifique em grego. Era o que eu certamente teria dito, pro domo mea, se tivesse lido o Rubem Alves em minha juventude. E se o livro dele já tivesse sido escrito, é claro.
In illo tempore, falo do meu tempo de menino, nossa turma, inspirada no personagem do Edgard Rice Burroughs, que jamais esteve na África, personagem aquele vivido nas telas pelo campeão olímpico Johnny Weissmuller, disparadamente o melhor Tarzan de todos os tempos, inventou uma brincadeira de pega-pega na qual, em lugar de alguém ter de procurar os que se escondiam no mato, o sorteado, depois de contar até 21 de abril e dizer "quem não se escondeu não se esconde mais", deveria alcançar alguém da turma dentre os que se encontravam encarapitados no alto de alguma das árvores da "chácara do alemão". Esse tal alemão era ninguém menos do que o patriarca da família Baumgarten, que depois se notabilizou e enriqueceu fabricando um impermeabilizante que se mistura no reboco, coisa que o Leonardo Da Vinci desconhecia quando resolveu pintar a Santa Ceia, hoje definitivamente comprometida pela umidade e o bolor, rico filão (mais um) para o Maurício de Souza. O fato é que subíamos nessas árvores, na maioria altíssimos pinheiros, e, à medida que fazíamos isso, o galho vergava e caía sobre a árvore mais próxima, para a qual passávamos, qual bando de macacos. De vez em quando o galho estalava e um de nós despencava diretamente ao solo. Não me consta que alguém tenha sofrido algum dano físico em decorrência da queda.
Agora o furto. A vida não é só subir e descer de árvores. O tal alemão tinha um pequeno pomar, onde plantava abacaxi, que, segundo a lenda, era protegido à custa de tiros de sal. Pois depois da emoção do pega-pega, nada como a emoção de furtarmos abacaxis da chácara do homem. Não me lembro de termos furtado uma única, uma só que fosse fruta madura. O abacaxi furtado sempre estava verde, circunstância que seria contornada despejando-se sal nas rodelas. Que nenhum de nós, mesmo assim, ou por causa disso, conseguia comer. Parece até coisa do Jô Soares, que, no tempo em que era menos chato (acho que foi a queda da moto), apresentava uns standings shows (naquele tempo, a língua paralela do Brasil ainda não era o Inglês) deliciosos. Num deles, ele abria uma lata de cerveja, que dizia estar na temperatura ambiente, como lhe havia ensinado um alemão, despejava sumo de limão, tomava um gole e suspirava: "que merda!". Nosso abacaxi não era diferente. O prazer, porém, como diz o Rubem, não estava no objeto, mas no ato. Coisa hormonal, certamente.
Já adulto e lidando com as coisas do Direito, impressionava-me o fato de os ladrões não se contentarem com o butim conseguido, por maior que fosse. Já naquele tempo eu não engolia isso de a pobreza estar por trás desses crimes. Fosse isso e não teríamos a horda de políticos que temos, até com direito a vaso de sete ervas. Faça uma lista dos teus preferidos e procure conhecer o montante do patrimônio deles. Ou espere que algum deles morra e os seus herdeiros venham a público brigar pelo patrimônio amealhado apenas com a atividade política do de cujus. Ou o auxiliar mais próximo, lesado na partilha.
Que sente um ladrão ao conseguir consumar o ato de rapinagem? Eis uma pergunta que sempre me intrigava. Deve haver aí um prazer que compensa o risco. Para tentar respondê-la, nada como fazer o mesmo.
Pronto, o pretexto científico estava arranjado. Agora era focar o objeto do furto.
Eu e todas as pessoas normais sempre tivemos a tendência de colecionar alguma coisa, a começar pelas Balas Futebol de nossa infância ou as figurinhas que vinham dentro do Café Jardim. Pois eu agora, já adulto, colecionaria paliteiros com grife. Logo eu que tenho horror de quem palita os dentes em público, eis a ironia. E só colecionaria paliteiros furtados. Para tanto, desenvolvi uma técnica complicada: eu, inicialmente, limpava os lábios com o guardanapo, que depois jogava sobre a mesa. Ele caía exatamente sobre o paliteiro. Terminada a refeição, eu pegava novamente o guardanapo, agora recheado com o paliteiro, e trazia à boca. Com a outra mão eu recolhia o paliteiro, que seria escondido dentro da meia (hoje transformada em porta-dólares), com receio de uma revista por parte de algum maitre mais desconfiado, até porque era importante cercar aquilo de toda emoção possível, como eu havia visto no filme francês Du Rififi chez les Hommes, dirigido pelo Jules Dassin, que, como teu avô não sabe, não era francês, mas norte-americano, auto-exilando-se na França por conta do macartismo.
Foram dezenas de paliteiros enfeitando o barzinho de casa, furtados em cidades diferentes, que eu exibia envaidecido a meus atônitos e incrédulos amigos. Por fim, o impensável: furtei um paliteiro de um restaurante norte-americano. Quando dei conta de meu atrevimento, concluí que era hora de parar com aquela estupidez. Imaginem o que ocorreria se alguém me surpreendesse no cometimento de um tal furto no território da law and order, da tolerância zero? Só de pensar nas possíveis manchetes dos jornais eu tinha calafrios.
O tempo passou e me dou conta de que outra pessoa respeitabilíssima se confessa vítima da, digamos assim, síndrome de Santo Agostinho. Em sua autobiografia, Um homem Um Rabino, Henry Sobel, de tantos serviços prestados à causa da Justiça, relata o famoso episódio das gravatas, ocorrido, aliás, nos Estados Unidos, como amplamente noticiado pela imprensa. E diz mais no mesmo livro: vinte anos antes desse recente fato ele já havia tido experiência semelhante com gravatas também nos EUA.
Positivamente, deve haver alguma explicação teológica para a coisa.
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