"Galileu considerou a descoberta de um meio de comunicar nossos pensamentos mais secretos a qualquer outra pessoa com 24 caracteres a maior das invenções humanas."
Noam Chomsky
(Novos horizontes no estudo da
linguagem e da mente)
Ela nasceu em Cachoeiro de Itapemirim, burgo tornado famoso por ter sido o berço de dois outros personagens. Eles bastante conhecidos; ela nem tanto. Tal como o Roberto Carlos e o Rubem Braga, a Lurian não ficou na cidadezinha capixaba, preferindo tentar a vida em outras paragens. Tímida, olhar triste, marcado pelas olheiras de nascença, ei-la cursando a Faculdade de Psicologia na cidade grande. Seu projeto é concluir o curso e voltar à sua cidade natal, onde passará o resto da vida tentando dar alento aos tristes e mal amados que a procurarem.
Mas as Parcas tecem suas armadilhas sem a mais mínima consideração pelos projetos pessoais. Tomam de um jornalista norte-americano e o removem de sua terra natal para um país exótico do sul do continente, de onde ele enviará periodicamente notícias sobre a incompreensível economia local. E onde ele conhecerá, enquanto se aclimata, a psicóloga de olhar triste. E onde se enredarão em romance inimaginável, que dará em casamento. Coisa de cinema!
E as mesmas Parcas o chamam de volta a seu país de origem, para onde ele levará a esposa, que, modesta em suas ambições, jamais se havia ocupado de aprender língua que não fosse a materna. E onde ela tentará encontrar o tempo perdido. E ei-la perdida na terra longínqua, buscando meios e modos de comunicar-se. E se marca encontro com o marido no restaurante, lá está ela, com toda antecedência sentada junto à janela, olhos aflitos postos no estacionamento, naquele vem/não-vem aflitivo, já pensando em como sair dali se ele não chega. E eis que se aproxima o garçom e lhe faz pergunta em língua que lhe soa como diálogo cinematográfico. Que ela responde com todo o inglês de que dispõe no momento. "I hope my husband!" é tudo o que ela consegue dizer ao atônito serviçal. Que mais atônito fica quando chega o jovem loiro, sorriso no rosto, que a cumprimenta com intimidade, demonstrando que os céus ouviram as preces da moça estranha.
O tempo passa e, com ele, vêm os filhos, a integração dela no novo ambiente cultural, o domínio da nova língua, a adaptação gostosa a novos hábitos, o conhecimento da diferença de significado entre esperar e ter esperança. E com o tempo vem o convite para que a avó materna das crianças venha conviver por uns tempos com os netos.
"Nem pensar" é tudo o que a velha senhora pode responder, sem mais condições psicológicas para adaptar-se a uma vida fora dos limites de sua cidadezinha, recanto seguro onde nasceu, viveu e pretende morrer, ressabiada pelas experiências quase traumáticas por que passara a filha, considerando-se ela estar, falo agora da mãe, fora de época para novos aprendizados.
Com a promessa de que se cuidará apenas de uma visita, a velha, por fim, acede ao convite. E a filha, ainda na terra natal, se põe a orientá-la, não fosse a mãe repetir os equívocos inúmeros que aquela cometera nos primeiros tempos no país estranho. Se for referir-se a "folha de papel" ou "lençol", não se esquecer de esticar bem o som da vogal, para a coisa não ficar mal cheirosa. "E cuidado com os gestos!" recomendava a filha aflita, esclarecendo, ao fim e ao cabo, que o encontro da ponta do polegar com a ponta do indicador, formando um círculo, a ser exibido com os demais dedos esticados, é a grafia gestual do OK, com que os encarregados do tráfego aéreo dos aeroportos autorizam aos pilotos a partida das aeronaves, a significar que está tudo bem. Que ela não se assustasse com isso.
Espantada com algo tão descabido, mais espantada ela ficaria com o que o pai dos burros lhe mostraria: ou aquilo provinha de Zero Killed, que era escrito abreviadamente na entrada do quartel quando nenhum dos soldados amigos havia sido morto na última investida contra os inimigos; ou poderia ser a abreviatura da forma primitiva "oll korrect", com que os nativos caçoavam da pronúncia dos primeiros imigrantes. Como quer que fosse, promete a senhora a si mesmo manter silêncio absoluto e conservar as mãos enrodilhadas em auto-abraço durante toda sua breve estadia no estranho país do norte. Que é para não dar vexame. Silêncio é de ouro, como lhe ensinara sua falecida mãe, que Deus a guarde.
E lá está a velha convivendo com os netos, que se comunicam com as crianças vizinhas, cujos pais se mostram afetuosos com a filha da visitante, e que com ela trocam ininteligíveis expressões, emolduradas por sorriso de lado a lado, a mostrar amizade e integração.
E dá-se que a veneranda senhora vai com a filha ao supermercado e ali, naquele estacionamento enorme, quem se mostra prestes a entrar no carro senão a descontraída vizinha? E que, ao ver mãe e filha, se põe a falar lá de longe coisas que a velha não entende, mas que a filha responde alegremente, e as duas riem um riso gostoso. E a vizinha agora levanta o braço direito e balança a mão, como se fosse ela uma bandeirinha, dessas que eles acenam nas paradas cívicas, que por certo expressa a satisfação da nativa pela presença ali da estrangeira.
E a estrangeira descruza os inúteis braços, retribui com seu melhor sorriso, mas se convence de que aquilo é pouco para expressar sua satisfação retributiva. E em complemento estende o braço direito, que dobra em ângulo reto. O punho fechado continua fechado, menos o dedo médio, com que a alegre senhora ergue e aponta os céus, no mais efusivo cumprimento com que poderia brindar a gentileza da alegre vizinha, algo muito maior do que um burocrático "tudo bem": "que Aquele que está lá no alto te proteja".
E a vizinha agora está sendo procurada pela aflita filha da velha senhora, que lhe explica, como pode, a confusão gestual que a mãe havia feito, coisa de gente velha, espera que ela compreenda. E vê que a vizinha compreende, e ri muito disso, dobrando o corpo para a frente, braços batendo na coxa ritmadamente.
E a filha agora já sabe que a vizinha contará o incidente a seus outros amigos nas inúmeras festas a que irá, a mostrar como são estranhos esses brasileiros com seus hábitos e seus costumes ainda tão primitivos, incapazes de assimilar conceitos tão óbvios, nem hábitos e costumes novos, em sua insuperável e sobejamente conhecida barbárie.