Circus

Cerimônia (A)

Cerimônia (A)

7/8/2009

Ela estava junto à janela, olhando o jardim. Absorta. Que lhe dizer na hora da despedida? Procurava mudar as ideias. Mas, qual um tema musical, a antevisão dele ali na sala, mala na mão, ia e vinha. Allegro, ma non tropo. Que dizer-lhe?

Tantos anos juntos, tantas tristezas somadas, quanta alegria sonegada em nome de um futuro radiante. E o futuro se vai no próximo trem.

O olhar perdido no meio da grama alta, invadida pelo mato, como a procurar ali, naquele símbolo do seu desleixo e de sua apatia, a resposta para suas indagações. Os olhos parados, sem piscar, imóveis, tal qual ela. Não havia sol, nem frio, nem manhã, nem tarde. Nem tempo. Ela parara no tempo e no espaço.

Quando ele viera, com aquele sorriso maroto de garotinho deslumbrado, nada pedira a ele. Ele também nada prometera. Ninguém nada exigira. Na verdade, talvez tivesse sido ela que, movida por um sentimento jamais experimentado antes, passou a interpretar como compromisso aquele estado de vida em comum. Ou quase em comum. Ele vinha, sempre trazendo um ramo de rosas, ficava ali uns dias. Dormiam juntos, acordavam sorridentes. Café na cama. Manhãs longas e alegres. Uma vida de telenovela. Riu com o canto da boca, ante o pensamento ridículo, sem mover músculo. Um instante apenas. E a máscara da impassividade voltou.

- Como vai o galã?

As outras manicures, entre invejosas e despeitadas, não regateavam adjetivos. Que agora soavam em seus ouvidos como agulhadas.

E o tempo foi passando. Seu envolvimento cada vez maior. Sua entrega também. De um vendedor semi-analfabeto ela fizera dele alguém, como diziam as colegas mais velhas. Incentivou-o a concluir o colegial. Estudavam juntos quando ele voltava do cursinho. Sofreram juntos a angústia do vestibular e se abraçaram felizes quando se deu o ingresso na faculdade. Era no interior do Estado, mas era uma faculdade. E quem custeara tudo isso?

- Deixa pra lá, dona Eufrásia. Fiz por ele o que ele faria por mim. Amar não é isso?

Sim, mas quem se prepara para a ingratidão?

- Sabe, meu bem. Lá eu poderei freqüentar faculdade e trabalhar, sem precisar viajar todos os dias e sem depender de suas economias. Eu também tenho amor próprio. Afinal, são apenas alguns anos. O tempo passa logo, não é, meu bem?

Ela bem que deixaria o emprego na capital para acompanhar o garboso universitário.

- Você ficou louca? Quem deixaria um emprego desses para enfiar-se numa cidadezinha daquelas? E eu não estou ainda em condições de arcar com as despesas da casa. Você sabe, não é, meu bem?

Não está, nunca esteve e nunca estará, era o que ela desejava dizer. Verdade que hoje se abre faculdade em qualquer cidadezinha perdida no interior. Mas será que uma cidade que possui faculdade não terá emprego para uma manicure?

- Claro que não, meu bem. Isso é coisa de grandes centros. Seja razoável, meu bem.

O tratamento amoroso já virara cacoete há muito tempo. Relembrá-lo agora era como sentir chicotadas. Ela sabia de tudo. O bem dele era outro. Dela tirara o que pudera. A filha de um fazendeiro seria a próxima etapa para a sede de poder que aquele.

O ranger dos dentes foi tão forte que ela despertou do torpor em que se encontrava. Olhou em torno. Quantas horas seriam?

Insetos esvoaçavam aqui e ali, freneticamente, aproveitando o calor da tarde, até caírem exaustos no gramado. Seguindo-os, deu com um louva-deus. Ele carregava uma pequena mosca na boca e caminhava com muita elegância, qual um noivo em direção ao altar. Altar!? Seria sua imaginação, tangida por sua dor, ou aquela postura do inseto era mesmo a de um noivo?

Ali estava um bom pretexto para espantar os pensamentos que teimavam em retornar, girando e girando como os insetos. Voltou-se para o louva-deus a caminho do altar. Tinha graça! Ele foi subindo a folhagem, naquela marcha solene, carregando a carga preciosa. Em seu delírio ela ouvia a marcha triunfal da Aída. Deixou a imaginação correr solta. A quem se destinaria a carga preciosa transportada pelo inseto? Ao fim da longa caminhada, obteve a resposta: a um outro louva-deus, porém de tamanho um pouco menor. Seria a mãe alimentando o filho?

Não era. O presente foi entregue cerimoniosamente. Pelo menos assim lhe pareceu. O louva-deus menor devorou a oferta com sofreguidão. Terminado o repasto, voltou-se para o companheiro, que aguardava pacientemente, com a paciência dos predestinados. Abraçaram-se longamente. E realizaram a cópula mais demorada que ela já presenciara, se é que presenciara antes algo assim.

Ela sentiu um arrepio com aquele romance que se realizava ali, bem diante dos seus olhos, diante de sua dor, diante de sua carência afetiva. Podia sentir o bater mais rápido do coração dos amantes, a respiração ofegante. Talvez até um gemido abafado. Palavras de amor sendo sussurradas durante a penetração. Era um especial encontro de amor. O primeiro? O último?

Os dois insetos, com a calma fatalista das coisas da Natureza, envolviam-se cada vez mais naquele jogo amoroso, naquela entrega recíproca que ela tão bem conhecia. Consumavam o ato amoroso, garantindo a continuidade da vida. Por fim, quedaram imóveis, abraçados, como a transmitirem-se palavras de despedida.

Separaram-se, por fim. A continuidade da vida estava assegurada. Ele deixara nela a semente que perpetuaria sua presença na terra. Se assim era, para que novos encontros? Para que novos atos de amor, novos abraços, novos instantes de prazer? A função do macho estava consumada. E a fêmea começaria agora a preparar-se para a maternidade. Seu interesse agora seria evidentemente outro.

Levada tão somente pela força das coisas naturais, a fêmea dirigia-se agora até onde estava o macho, esgotado. Mordeu-lhe a cabeça. Ele não tinha forças para reagir. Ou não deveria mesmo reagir? Seria aquilo uma agressão ou a simples consumação de um ritual?

Petrificada, a moça viu a fêmea retirar bocados do antigo companheiro, devorando-o, literalmente, pedaço a pedaço. Primeiro a cabeça, depois o restante do corpo, os membros por fim. Dentro de algum tempo (quanto tempo?) não havia ali sinal algum do amor que unira tão estreitamente os dois seres. Ficou apenas a vida, perpetuando-se após o ritual macabro. Eram dois que se tornaram um. Não é isso que diz o celebrante na cerimônia de casamento?

A visão daquela celebração deixou-a profundamente perturbada. Fechou a janela e correu para dentro de casa, assustada. Assustada com quê?

Atirou-se na cama e chorou intensamente. Um choro muito sentido, profundo. Como se lhe viessem à tona todos os sentimentos que abafara até agora. O despeito, a indignação, o ódio, a inveja. A consciência de que fora utilizada, esgotada, exaurida vinha-lhe agora à mente.

O choro fez-lhe bem. Dormiu ali mesmo, banhada em lágrimas, como se diz.

Acordou despertada com o soar da campainha da porta. Recompôs-se rapidamente. Penteou os cabelos com os dedos e foi atender ao chamado.

Mala na mão, vestido com invulgar aprumo, um sorriso no rosto bem barbeado, ali estava o seu galã. Ele pousou a mala no chão e se encaminhou para ela, com a mão direita às costas, escondendo algo, que não despertava a menor curiosidade nela. Parou apenas alguns centímetros do local onde ela permanecia imóvel, indiferente àquela encenação quase teatral. Ele estendeu a mão com a caixinha fechada.

- Abra. É para que você sempre se recorde de mim.

A moça não teve coragem de tocar a caixa. Um pressentimento estranho fê-la permanecer estancada. Viu-se no jardim, cercada pela grama alta, como se estivesse em um altar. A roupa nupcial do moço à sua frente agora era verde, com reflexos brilhantes, que ofuscavam a vista dela. Ela pensou que iria desmaiar.

Diante da indecisão dela, ele mesmo se dispôs a abrir a caixinha. Ela ainda tentou impedir, sabe-se lá por quê, mas não conseguiu mover-se. As pernas não obedeceram. Os braços permaneceram colados junto ao corpo. Não podia falar. Balbuciou apenas. Uns sons estranhos, sem sentido, que ele nem notou. Quando o noivo abriu a caixa, apareceu o terrível presente: uma pequena mosca de ouro, com dois olhinhos de brilhantes. Uma bela jóia, sem dúvida, digna de uma cerimônia nupcial.

A respiração dela foi voltando ao normal. Tomou a caixa nas mãos, aceitando a oferenda. Com toda naturalidade, tirou dela o inseto, que levou à boca. E, sem tirar os olhos do homem, que nada compreendia, começou a mastigar lentamente a mosca de ouro.

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Colunista

Adauto Suannes foi desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.