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Como escrever

Como escrever

17/7/2009

"Escrevo para mim. Escrever é uma viagem minha; quem quiser que pegue carona."

Ignácio de Loyola Brandão

Tenho pensado seriamente em publicar um livro intitulado "Como escrever crônicas – teoria e prática", que poderia ser vendido em livrarias de aeroporto, em supermercados, bancas de jornal e açougues juntamente com um outro que estou tentado a escrever: "Como vender livros de crônicas".

No livro eu citaria casos famosos de escritores e suas manias, como o Balzac, por exemplo. Ele supunha que a inspiração estava na sola dos pés. Inteligentemente, ele punha os dois pés numa bacia com água gelada e isso fazia com que as idéias subissem lá para o cimo da cabeça. Aí era só acessar o teclado do computador e teríamos uma Divina Comédia em questão de dias. Ou seria Comédia Humana? A única dificuldade para isso é que o computador pessoal ainda não havia sido inventado. Nem mesmo as canetas Bic. Ou será que elas já teriam sido? Preciso consultar o Google.

Incluirei no meu livro o colega João Ubaldo Ribeiro, a falar de sua esquizofrenia criadora. Diz ele que há dois Joões: o que ficaria sempre no bar, tomando água de coco e proseando com os amigos e o outro João, aquele que lhe cobra o serviço que deve entregar ao jornal ou à editora. "Que folga é essa, seu vagabundo?" E lá vai o bom baiano, qual cachorro escorraçado, de volta ao quarto, ou escritório, ou estúdio dele, para fazer brotar da folha de papel em branco o necessário a que a crônica da próxima semana esteja pronta a tempo.

Falarei também do Régis Bonvicino, colega do Sebastião Amorim e do Stroppa, todos os três sendo juízes e poetas. Diz o Régis que não sabe escrever quando recluso. Anda pelas ruas, catando, qual um Chico Buarque qualquer, as palavras que os distraídos entornam no chão. "Hoje em dia estou ficando com medo de andar. Isso empobrece tudo. Antes andava tranqüilamente, agora já penso que posso ser morto, seqüestrado." E olha que o homem é juiz!

Falarei também, é claro, do meu método de produção literária, um registro para a posteridade e um incentivo a todos aqueles que reputam que Rubem Braga e Luis Fernando Veríssimo só existiram um. Ou dois, vá lá.

Geralmente a coisa funciona assim: não tenho qualquer idéia prévia do tema que abordarei nesta semana. Deito-me em confortável cama de colchão ortopédico, pijama de mangas e pernas curtas, se estiver calor; longo se aquele ventinho noroeste começar a penetrar no quarto pelas frestas da porta-balcão, fazendo aquele assovio que nós chamamos de ventos uivantes. Por vezes coloco um CD no respectivo player, para dar ao quarto um ambiente aconchegante. Nada de rock nem de forró. É um violino do Jascha Heifetz, ou violoncelo do Yo-Yo-Ma. Talvez um piano do como é mesmo o nome dele? Preciso consultar o CD antes de enviar esta crônica para publicação. Ou um Frank Sinatra, naquelas baladas fossentas dos anos cinqüenta, It Was a Very Good Year, por exemplo, só faltando a Doris Day ali ao lado, segurando o cinzeiro enquanto ele finge que toca piano. Já o Nature boy, a very young, enchanted boy, simplesmente me faz chorar.

Assim, ao som do In the Wee Small Hours of the Morning, por exemplo, eu adormeço em berço esplêndido. A menos que a Maria Helena chegue antes de eu pegar no sono, quando ela manda o Sinatra para o chuveiro e eu fico ali fingindo que já peguei no sono.

Lá pela madrugada, a indefectível hora da micção noturna, como convém. Faço-o e aproveito para ir até a cozinha recolocar mais água na bexiga. Volto para o quarto e, quando não meto a testa na quina do batente da porta, vou direto para o meu lado da cama, na qual me deito em decúbito dorsal (com a barriga para cima, diz o Manual Merck) e fico a imaginar o que haveria no teto do quarto, escuro como breu. As ideias vêm pingando dali e eu vou juntando palavras e frases, formando poesias, crônicas, discursos, contos, novelas, romances e peças de teatro até que o Morfeu dê um basta àquilo tudo e no dia seguinte eu não me lembro praticamente de nada daquilo. Justamente por isso tenho ao lado da cabeceira, sobre o criado-mudo, um bloco de notas e uma caneta com a qual anoto o título da crônica, se se cuidar de crônica, e algumas palavras-chave. No dia seguinte, toca relembrar o que eu queria mesmo dizer com aquelas palavras para que o texto merecesse aquele título.

Claro que quase nunca o texto que vai aparecer no monitor do computador se compara ao candidato ao prêmio Pulitzer da véspera. Mas, para meu consolo, ouvi que compositores como o Chico Buarque e o Djavan consideram suas melhores letras aquelas de que eles se esqueceram antes de poderem escrevê-las ou registrá-las no gravador. Estou bem acompanhado, concorda?

Em novo capítulo do tal livro recomendarei aos candidatos a cronista que não se esqueçam de mandar o texto para a geladeira, assim que concluído. Darei meu importante testemunho: vezes sem conta, quando trago de volta o texto ao monitor, semanas depois, descubro que havia escrito menos do que o texto propiciava. Essa reedição me faz supor que ele será mais legível. É como a massa de pão ou de pizza: nada de levar ao forno imediatamente. Deixe o livro dormir por alguns dias e depois.

No capítulo final do livro, responderei a algumas perguntas que os leitores certamente me fariam, se entrassem em contato comigo, o que não ocorre com a freqüência que seria esperável. O que mostra que poucos leitores pretendem enveredar por esse promissor ramo profissional. Está aí o Loyola Brandão publicando livro sob encomenda que não me deixa mentir. O Lobato não fez o mesmo, por mais esquerdista que fosse? Ou vai me dizer que ele acreditava mesmo nas propriedades medicinais do licor que anunciava?

Uma dessas perguntas será: quando o escritor está convencido de que o seu texto não precisa mais ser revisto? Responderei curto e grosso: nunca, minha filha. Sabe aquele pintor famoso que ia à galeria onde estavam expostos seus quadros, levando um estojo, de onde tirava, vez ou outra, pincel e tubo de tinta, para corrigir imperfeições de seu quadro? Pois quem escreve tem a mesma neura. Daí muitos de nós nos recusarmos a ler o que escrevemos, depois da publicação de nossa importante obra. Quando temos o azar de ver sair uma segunda edição do livro, olha a nossa vergonha tendo de retificar aqui, corrigir ali e completar lá adiante. E pedir desculpas aos que haviam comprado livro da primeira edição, é claro.

Isso quando não dizem de nossos textos o que os críticos profissionais disseram do primeiro livro do Guimarães Rosa, um médico de interior de Minas pensando que é um novo James Joyce. Pois não é que o tempo mostrou quem ele de fato era?

Ou para não reproduzir a fala do Chico, autor do delicioso "Leite Derramado", se não sabeis, depondo na mais recente FLIP: "escrever é uma chatice."

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Colunista

Adauto Suannes foi desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.