Circus

Homem e sua dor (Um)

Homem e sua dor (Um)

22/5/2009

 

Antenor era um homem só.

Tinha o aspecto de um livro antigo, desses encadernados em couro, um couro que se foi esgarçando com o tempo, sem que saibamos se isso se deveu ao manuseio constante ou ao desprezo dos leitores. Assim como se o couro se vingasse de haver sido empregado em um objeto tão sem utilidade. Os dizeres na lombada já esmaecidos, como a sugerir que logo deveria ser reencadernado, se alguém visse nele alguma utilidade, o que, no caso, parecia improvável.

Não sei bem como se aproximou de nós.

Jogávamos dominó na mesa do fundo do bar todas as quartas-feiras à noite. Um grupo de três pessoas que nos conhecíamos desde tempos imemoriais. As pedras do jogo, amareladas pelo uso constante, com os pontos meio-apagados, circulavam céleres pela mesa, provocando, de tempos em tempos, gritos de indignação deste ou daquele. Vez ou outra saltava um palavrão e alguém exibia seu segredo, com o qual estava a um passo de ganhar aquela rodada. O preço da derrota era mais uma garrafa de cerveja na conta. Esses eram os raros momentos em que o silêncio era quebrado. E ali ficávamos até que o último freguês se retirasse e o velho Manoel se aproximasse, como quem viesse sapear o jogo. Era sua delicada senha de que já estava com sono. Compreendíamos e, como em uma litania, mandávamos vir a última garrafa, de cujo desfrute ele também participava.

Anos e anos naquela rotina silenciosa. Pouco sabíamos um dos outros, na sua intimidade. Este era casado com uma mulher bem mais nova, que ficava em casa, vendo novela, o que ele não suportava. Por vezes reclamava daquela situação constrangedora. "Ser traído por um aparelho eletrônico é demais!". Ríamos, mas um riso triste, pois aquilo era mais do que uma piada. Era o desabafo de quem sabia que se a mulher tivesse um mínimo de condição econômica, fugiria com o aparelho para uma ilha deserta, onde viveriam felizes para sempre. E ele, fosse pela idade, fosse porque ainda alimentasse a ilusão dos primeiros tempos, fosse pela rotina, entregara os pontos, aceitando aquele ménage à trois.

"No princípio cheguei a desligar o aparelho, mas a falta de assunto nos punha um olhando para o outro, sem nada dizer. Aí eu pegava o jornal, instintivamente, e ela me pedia se podia ligar o aparelho. Eu deixava e ficava olhando pelo canto dos olhos a satisfação dela quando aquela luz azulada lhe batia no rosto. Aquele rosto tão sofrido de alguém que parecia participar da vida daqueles personagens. Parei de implicar com aquilo, assim como alguém que, mesmo sabendo-se inocente, aceita a condição de corno".

Isso fora dito há muito tempo, aos poucos, como uma novela em capítulos, e nós fomos juntando os pedaços daquela queixa homeopática, que poderia ser a queixa de qualquer um de nós.

Aquele outro era viúvo. Parece que tinha filhos, mas pouco falava deles. Uma carta recebida era anunciada sem grande entusiasmo. Ao contrário, isso era dito assim como quem anuncia algo indesejável, uma urticária que lhe saiu na perna ou a queda de um dente podre. Seu conteúdo jamais era revelado. "Meu filho me escreveu" era tudo o que dizia. Onde morava? Estaria necessitando de algo? Ninguém se atrevia a indagar-lhe. Ainda hoje me pergunto por que guardávamos tanta solenidade uns com os outros, se nos considerávamos amigos. Ou talvez não nos achássemos dignos do título. Talvez fôssemos apenas isso: companheiros de rodadas de dominó e cerveja nas noites de quarta-feira. "Parece que minha filha vai ter um bebê" e nada mais era dito nem lhe era indagado, mesmo depois de meses, quando a tal criança certamente já teria nascido. Era um estranho pacto de silêncio que nos irmanava. E o barulho monótono das pedras circulando, como o pulsar incômodo do sangue nas têmporas a nos mostrar, nas madrugadas de insônia, que ainda estávamos vivos.

Se a tristeza era a marca dos membros do grupo, Antenor certamente levava a palma. Desse não sabíamos absolutamente nada. Entrava no bar e pedia uma cerveja, que tomava de pé no balcão, sozinho, lentamente, sorvendo cada gole, com o olhar parado, que se projetava para além da porta, além da rua, além do mundo. Acendia um cigarro, que raramente levava à boca, a cinza acumulando-se, sem cair, tal sua imobilidade. Como que tocado por um anjo, vez ou outra pegava o copo, que lentamente levava à boca, em um movimento mecânico do braço, que lembrava, pela precisão, uma pá carregadeira. Interrompíamos o jogo para aguardar a queda da cinza, contando mentalmente os segundos, os minutos que aquilo demoraria. Era um jogo dentro do jogo.

Um de nós, depois de muito tempo, teve a idéia de oferecer-lhe uma das cadeiras vazias de nossa mesa, que ele aceitou com um lento gesto de cabeça, agradecido. Passou a beber junto conosco, ainda olhando a porta do bar, como se esperasse a chegada de alguém. Gentilmente recusava o convite de participar da roda de dominó. Ele estava ali, mas era apenas parte dele. Uma parte insignificante. Sua maior parte estava longe, perdida sabe-se lá onde.

Um dia, vimos aparecer um sorriso em seu rosto, sempre voltado para a porta. Um tímido sorriso, desses que não querem ser notados. Mas era um sorriso, sem dúvida alguma. O inusitado do fato fez suspendermos o jogo, para desfrutarmos, algo invejosos, daquela sombra de alegria. Dali de onde estávamos podíamos ver a rua que praticamente terminava na esquina onde se situava o bar. Na rua vazia, tudo o que vimos foi um cão, sem raça nem cor definida, que se encaminhava altivo em nossa direção. Ele entrou no estabelecimento e não chamaria a atenção de ninguém, se não fosse o olhar fixo do Antenor, que atraiu o animal até nossa mesa sem dizer palavra. Na verdade, não era bem um cão, mas uma cadela, muito limpa, que se aproximou dele e lhe lambeu a mão direita, praticamente ignorando a presença dos demais. Havia na mesa um prato com umas fatias de salame que ele serviu ao animal, enquanto lhe acariciava a cabeça com a outra mão.

Ali nasceu uma estranha amizade, cujo conteúdo nenhum de nós jamais conheceu em sua profundidade, em seus mistérios. Aquele livro empoeirado renovou-se, readquirindo o brilho que um dia, muito distante, certamente já tivera. E assim, em todas as quartas-feiras, enquanto jogávamos nosso dominó, podíamos apreciar o rosto daquele homem exibindo sua enorme ansiedade pela chegada breve de sua amiga. Pontualmente, lá vinha ela desde o fim da rua, o que era por nós percebido pelo sorriso daquele rosto outrora tão enigmático. Passamos a vivenciar sua ansiedade, por menos que o desejássemos, e a vivenciar também seu alívio com a chegada da visita.

Em uma das quartas-feiras ele não veio ao bar. Quando a Lady chegou - era assim que nos referíamos à cadela -, sua decepção foi visível. Foi de mesa em mesa consultando os presentes, sem mostrar com nenhum de nós o afeto que dedicava ao Antenor. Chamei-a e ofereci-lhe o salame. Ela cheirou e rejeitou o presente, como se respeitasse a ausência de quem lhe era tão caro. Sentou-se nas patas de trás e ficou olhando a porta do bar, tal como o Antenor havia feito tantas vezes. Quando o seu Manoel se aproximou, ela olhou-nos com uns olhos tristes e se retirou dali, deixando no ar um resto daquela tristeza, como se ela se houvesse tornado um de nós.

Em várias quartas-feiras seguintes, o olhar do Antenor voltou a ficar perdido no horizonte, como se não contasse mais com a vinda de sua amiga. Sua dor era tão grande que nenhum de nós tinha coragem de tocar no assunto. Alguém menos sensível ou menos sofrido do que nós teria feito piada daquele desencontro amoroso. Nós nos limitávamos a respeitar aquela dor, que sabíamos ser enorme, pois o jogo terminava e a visita não aparecia. O que ele parecia prever que de fato ocorreria.

Certa noite, Antenor pôs-se de pé em um salto, como se tivesse levado um choque elétrico. Paramos o jogo e nos voltamos para o fim da rua. Lá vinha Lady, caminhando apressada, acompanhada de um bando de cães. Ela estava, evidentemente, no cio e aquela matilha se disputava a prioridade de cobri-la. Quando ela chegou diante da porta do bar e viu ali o Antenor, estancou, como que admirada. Um dos cães aproveitou-se para colocar as duas patas dianteiras sobre seu dorso. Aquele animal de olhar sereno e aspecto dócil, renegando a lei da natureza, avançou sobre o atrevido, agarrou seu pescoço com a boca e pôs-se a balançá-lo no ar, com uma fúria inimaginável, até que o arremessou longe, como um simples fardo, que permaneceu imóvel onde caiu. Outros cães se aproximaram e foram enxotados por ela com igual e incompreensível fúria. Ela e Antenor trocaram um longo olhar, sem que um se dispusesse a se aproximar do outro.

Ele saiu do bar, passou por ela e seguiu pela rua, com os passos apressados, como quem foge de si mesmo. Ela, contrariando tudo o que seria esperável, não o seguiu. Ficou ali, na rua, sentada sobre as patas traseiras, como quem vê partir um navio.

Antenor, desde aquele dia, nunca mais voltou ao bar.

Lady, segundo comentários do seu Manoel, teria sido atropelada por um caminhão de cerveja. Para espanto do motorista, segundo lhe contara, ela praticamente se atirara sob as rodas dianteiras do veículo.

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Colunista

Adauto Suannes foi desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.