Circus

Suspeito (O)

Suspeito (O)

15/5/2009

As duas mulheres caminhavam pela rua Direita, apinhada de gente, no ritmo ditado pela mais velha, que se detinha diante de cada loja, apreciando vestidos aqui, sapatos ali, brinquedos mais adiante, livros acolá, contando com a paciência da mais nova, em cujo braço a velha permanecia enganchada.

No meio da multidão apareceu um rapaz correndo. Correr como, com toda aquela gente ocupando calçadas e leito carroçável, onde apenas trafegava, vez que outra, algum veículo oficial, com a buzina insistindo em pedir passagem pelo meio da multidão de pessoas indo e vindo? A solução foi ele dar dois ou três disparos, provocando a queda de toda aquela gente, como se a centena de pessoas que por ali circulavam apressadamente, exceção daquelas duas mulheres, que não tinham pressa alguma, tivesse sido atingida pelos poucos disparos efetuados. Deitados no chão, os que permaneceram vivos viram o rapaz, sempre a correr, entrar numa travessa, à direita, umas três quadras adiante.

Passado o susto, as pessoas foram-se levantando apressadamente, para retomar a caminhada frenética, sem se importar se havia alguém ferido, pois tinham coisa mais importante para fazer. A moça mais nova levantou-se, mas a mais velha permaneceu deitada no chão.

Você se machucou, mãe?, perguntou ela. Machucar-me com quê? disse a velha, ainda deitada no chão. Com os tiros? Qual tiro, qual nada, aquilo eram fogos de São João. E você não se levanta por quê? Porque ainda é cedo, e você bem que poderia deitar-se aqui comigo.

Pacientemente a filha convenceu a mãe a levantar-se, prometendo-lhe comprar-lhe uma blusa na loja de departamentos que havia mais adiante, ao lado do consultório médico, onde tinham hora marcada para logo mais com o psiquiatra. A senhora está lembrada?

Uma vez ali, enquanto a filha escolhia a tal blusa, na bancada de saldos, a mãe embarafustou-se pela loja adentro, entrevistando as pessoas que encontrava, sempre terminando a conversa com indicação de seu nome e endereço e um convite para um chá da tarde no dia seguinte. Não aceito desculpas para sua ausência, hein?, insistia. Às quatro em ponto.

Agora, a velha está na secção de perfumaria, abrindo e experimentando batons de todas as cores, sem levar em consideração a presença da demonstradora, com o mostruário inútil nas mãos. Imagine se eu vou passar nos lábios um batom que já foi experimentado por outra mulher, explicava a velha. Chamada a gerente, mulher tarimbada, notou ela que aquela freguesa deveria ser abordada de modo especial. Com muito jeito, convenceu-a a irem até a lanchonete, onde. Lá ficaram por um bom tempo, até que a freguesa dali se retirou sem despedir-se.

A filha não notou a aproximação da mãe, que lhe sussurrou algo que ela não entendeu. Tudo bem com a senhora, mãe? Mais ou menos, disse a velha. Acabo de ver na lanchonete o tal rapaz que fez os disparos. Acho que ele vai assaltar a loja. Ele está com dois comparsas. Devemos avisar a gerência.

A filha procurou desconversar, mas quando a velha lhe disse que iria procurar os guardas, a moça resolveu, como tantas vezes fazia, entrar no jogo da mãe. Vamos juntas, que eu explico tudo ao guarda, disse a filha.

A partir de informações dos funcionários, a dupla chegou até onde estava o homem de roupa azul e quepe na cabeça. A moça explicou ao guarda que sua mãe padecia da doença de Alzheimer e, por isso, não podia ser contrariada, pois ela se enfureceria se isso acontecesse. Que ele, com muito jeito, dissesse à senhora que tomaria providências sobre o caso, para acalmá-la. Solícito, ele se apresentou à velha, agradecendo sua colaboração. Informou-lhe que ela se parecia com a mãe dele, que ficava em casa tomando conta dos dois filhos do casal, pois sua esposa também trabalhava fora. Ele iria investigar a denúncia feita por ela sem demora e reiterava seu agradecimento pela colaboração dela. A velha prontificou-se a acompanhá-lo, para dizer qual dos três rapazes estava armado, mas sua filha, a muito custo, conseguiu convencê-la de que aquilo era desnecessário, pois o guarda era homem experiente e cuidaria do caso. Ele se despediu de ambas, tomando o rumo da lanchonete e as duas mulheres seguiram para o caixa, já que a hora da consulta se aproximava.

A moça ainda não havia pago a conta quando se ouviram dois disparos e um grito vindo da lanchonete, ao mesmo tempo em que três rapazes passavam por elas chispando, a caminho da saída. Instintivamente, todos ali se atiraram ao chão, procurando esconder-se atrás dos balcões. Todos, menos a velha, que, muito agitada, censurava a filha por haver impedido que ela auxiliasse o guarda. Como ele haveria de saber qual dos três estava armado? Como? Quem agora vai cuidar da mãe dele e das duas crianças? Quem? Você? Você?

Lentamente, os fregueses foram-se levantando, ainda ressabiados. A filha da velha, porém, permanecia deitada no chão, o corpo dobrado em posição fetal, chorando copiosamente. Era como se o teto da loja tivesse caído sobre seu frágil corpo.

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Colunista

Adauto Suannes foi desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.