Circus

Indícios

Indícios

3/4/2009

 

"Nenhum homem é grande para o seu criado de quarto."

Napoleão Bonaparte

Não sei se ainda ensinam isso nas Faculdades de Direito, mas a palavra "indício" provém de "index", que era o nome latino do dedo indicador, aquele com que apontamos alguém e dizemos: "Foi esse aí!".

Sempre tive horror a tal reconhecimento, principalmente quando é feito sobre uma estática fotografia, e muito denunciado acabou ganhando com isso, pois minha experiência pessoal me mostrou que tomar a nuvem por Juno, como se diz elegantemente nos meios acadêmicos, não é apenas frase de efeito. Prova indiciária? estou fora, como diz a moçada.

Eu ainda usava calça curta e gozava de grande prestígio na vizinhança. Bom filho, estudioso, ponderado e tudo aquilo que os olhos bondosos daquelas senhoras viam em mim, mesmo não estando eu muito de acordo com isso. Em suma, como dizem muitos juízes, eu tinha "bons antecedentes". E era, já naquela época, muito brincalhão.

Morava umas duas quadras depois de nossa casa uma garotinha, de uns 4 ou 5 anos, com cabelos loiros cacheados, que falava pelos cotovelos. Era a Malu, cujo nome verdadeiro eu jamais soube, neta do seu Benedito, com quem ela morava. Minha distração era provocar a garota, esperando o troco, que não falhava. Era mês de dezembro e eu, ao passar pela frente da casa, reparei que havia no jardim um belo pinheiro, tipicamente uma dessas árvores natalinas que cobrimos com bolas coloridas e neve de algodão, tal como não havia em Jerusalém e que o Jung diz que é uma representação da cruz em que morrerá quem vai nascer no Natal. Veio-me à mente a notícia que havia corrido na véspera: seu Benedito havia dado uns tiros para o ar, para afugentar uns ladrões que tinham, na noite anterior, tentado arrombar a porta dos fundos da casa. "Diga a seu avô pra preparar a espingarda que eu venho buscar essa árvore de Natal hoje à noite" disse eu e segui meu caminho, com a menina despejando seu protesto lá atrás.

Dia seguinte, como era de rotina, fui à padaria buscar o leite e o pão fresco. Dona Mariana, nossa vizinha, comentava com o vendeiro o absurdo que havia ocorrido naquela noite: "Levaram a árvore que o seu Benedito estava reservando para o Natal! Olha que absurdo, seu fulano!"

Minhas pernas ficaram geladas. Peguei a mercadoria e fiz um esforço enorme para chegar à minha casa, pois as pernas se recusavam a caminhar. Logo que entrei, minha mãe, com ar neutro, disse-me que o seu Benedito queria falar comigo. Que eu passasse na casa dele logo mais. Achei que fosse desmaiar, mas não disse nada. Seja tudo o que Deus quiser.

Fui recebido com a atenção costumeira, quer uma água? um café? seguindo-se o compreensível nariz de cera: "nós conhecemos você há tanto tempo e sabemos ser incapaz de fazer uma coisa dessas, mas, evidentemente, quando você brincou com a Malu, dizendo que viria buscar aquele pinheirinho, havia alguém por perto, que ouviu a conversa e então". Eu mal ouvia o que o seu Benedito falava, não havia nada que eu pudesse dizer, pois aquilo tinha sido uma brincadeira boba etc. e tal. A tal árvore apareceu uns dias depois, jogada num terreno ermo. Olha que maldade, dona fulana.

Muitíssimos anos mais tarde, os parapsicólogos me ensinaram que isso se chama pré-cognição, que é a capacidade que algumas pessoas têm de conhecer algo antes que isso efetivamente ocorra. O Einstein entrou por esse caminho, quando questionou os conceitos absolutos de tempo e espaço. Que é o antes e o depois? Se você voar a uma velocidade supersônica, voltará à Terra mais moço do que quando dela saiu. Dá pra entender? O Jung também tocou nisso, ao abordar o que ele chamou de sincronicidade ("ao mesmo tempo", da raiz grega kronos, tempo). Felizmente, não é todo dia que isso ocorre, mas, como diz o próprio Jung, apenas quando convergem determinadas circunstâncias psíquicas, caso contrário nossa vida seria um inferno, como a daquele padre que, contou-me seu colega Odilon Paulo Silveira, que percebia, pela cor da aura da pessoa, quem estava próximo da morte. Isso passou a aterrorizá-lo tanto que ele quase não mais saía de casa, para evitar essa experiência dramática. E olhe que o padre Silveira não simpatizava com os espíritas e só usava batina.

Ainda sobre indícios: eu mesmo reconhecia que era muito parecido com um cantor de música popular, Jairo Aguiar, que era apenas um mês mais velho do que eu, semelhança que era motivo de comentários de meus amigos. Certo dia, quando eu caminhava pelo Viaduto do Chá, uma senhora, fã de carteirinha do cantor, me agarra e se põe a fazer uma declaração de amor ali mesmo no meio daquelas pessoas que iam e vinham, indiferentes àquela paixão. Tentei desvencilhar-me da senhora, mas a paixão dela ela maior do que as minhas forças. Limitei-me a ouvir aquilo, receber alguns abraços e dar-lhe, por fim, um "autógrafo", que ela saiu a beijar pelo caminho, enquanto eu imaginava o que me ocorreria se o cantor estivesse a merecer o ódio dela.

Isso para não falar do processo criminal que eu tinha em mãos, quando no TACrim, no qual o réu havia sido reconhecido por fotografia. Havia quatro fotografias nos autos, uma de pior qualidade do que outra. E o réu havia sido reconhecido por aquilo! Não tive dúvida: num dia de sessão plenária, em que todos os juízes da casa estavam ali, indaguei de um por um se aquelas quatro fotografias se referiam a quatro pessoas, três, duas ou eram todas relativas à mesma pessoa. Acredite: recebi todas as respostas possíveis! E eram homens que haviam passado grande parte da vida apreciando indícios! E ainda vejo pessoas serem condenadas por força de um reconhecimento perigoso como esse.

Trago estas recordações por causa de certo rapaz, tempos já lá vão, que teve a infelicidade de passar diante das câmeras do posto de gasolina logo depois de o posto haver sido assaltado. Um dos assaltantes usava camisa pólo negra, calça jeans e tênis preto. O tal rapaz também. Como todos sabemos que "o criminoso sempre volta ao local do crime", algo que não sei qual sábio inventou, tome prisão preventiva no rapaz. E lá vem um perito a fazer algo que não havia passado pela cabeça de delegado nenhum, nem de promotor nem de juiz: mediu, pelas imagens da tela, a proporção corporal do tal assaltante e do suspeito, concluindo, enfático, em rede nacional de televisão: "não é a mesma pessoa!". Fico imaginando de onde saiu esse anjo da guarda, sem o qual é fácil sabermos qual seria o futuro do tal rapaz.

E, para concluir: a Beatriz, hoje aposentada, era assistente social no fórum, casada com juiz criminal. Naquele dia, ela precisou ir falar com o marido, que estava às voltas com uma audiência em caso de roubo, na qual a assustada vítima explicava como o bando havia agido. Eram uns tantos rapazes e uma moça, de meia idade, que não havia sido presa. A Beatriz, muito sem cerimônia, pede licença aos presentes e se dirige ao marido, para falar de um cheque ou coisa que o valha, com aquele nariz empinado dela. A vítima, sem a mais mínima dúvida, aponta o indicador para a Bia: "era essa a moça que estava com eles!" Todos riram daquele evidente equívoco da vítima e a minha querida amiga escapou de um processo criminal.

Imaginemos, porém, que ela não fosse esposa do juiz e - azar dos azares! - tivesse já tido alguma condenação anterior por crime contra o patrimônio. Qual advogado a livraria de um cento e cinqüenta e sete no lombo?

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Colunista

Adauto Suannes foi desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.