Circus

Script

Script

6/3/2009

 

"Não é que eu tenha medo da morte. Eu apenas não gostaria de estar lá quando isso acontecesse."

Allan Stewart Königsberg
(vulgo Woody Allen)

Se você reparar bem, os filmes do Woody Allen seguem um mesmo roteiro. Ele pode até trocar Manhattan por Londres ou Barcelona, mas o jeitão desajeitado do personagem é sempre o mesmo. Rigorosamente, ele fala de si mesmo o tempo todo. E quem de nós não é assim?

Pois o personagem de nossa proposta cinematográfica de hoje é exatamente o Woody Allen, que está se dirigindo, com toda pressa, ao banheiro de uma dessas lojinhas de beira de estrada, onde se vende desde pneu até camisinha. Ele, evidentemente, tem junto ao ouvido direito seu inseparável telefone celular, no qual ele trava um diálogo incompreensível, como é próprio dos personagens interpretados por ele, tendo do outro lado alguém que não se descobre se é um homem, uma mulher, um elefante ou um cachorro. Ainda falando ao telefone, ele se dirige ao local adequado e com a mão esquerda abre a braguilha da calça. Em seguida discute ao telefone e depois leva a mão esquerda até a calça, fechando o zíper da mencionada braguilha. Sempre falando e falando, ele para diante de um espelho enorme, que o mostra de corpo inteiro.

Que faz um espelho daquele tamanho naquele minúsculo banheiro? Mistério! O fato é que o nosso personagem está falando ao telefone e, ao mesmo tempo, admirando seus traços fisionômicos, aqueles mesmos traços que sua mãe teria apalpado logo que ele nasceu, pois ela era cega. Com as duas mãos sobre o rosto da criança, ela teria perguntado à enfermeira: "Mas onde está a parte de cima?" Morreu de desgosto alguns dias depois, segundo contaria a Dianne Keaton em sua autobiografia, onde ela incluiria a biografia dele, vingando-se porque ele havia publicado sua autobiografia dele, incluindo aí a biografia dela. Isso se ela escrevesse uma autobiografia. E se me consultasse antes.

Finalmente, sempre dentro do banheiro e diante do tal espelho, o tal personagem encerra a conversa e leva o celular até o bolso da calça, quando toma conhecimento que não havia dado as tradicionais três balançadinhas no outrora chamado órgão viril, não hoje, com essa expansão do. Resultado: a cabeça do mencionado órgão, descansando sobre a cueca, liberou o restante do líquido disponível, que, agora, produz uma mancha oval, que a câmera faz questão de mostrar em close. Ele, claro, tem um chilique daqueles que já teve em inúmeros outros filmes e procura, com o mesmo desajeito, remediar a situação, com um expediente mais inadequado do que outro, como tentar sair do banheiro carregando a lata de papel usado com as duas mãos diante do corpo. Desiste da idéia ao notar que a vendinha está vazia.

Deixa ali a tal lata e dirige-se então à prateleira de livros, onde procura algum livro de filosofia, já que o Königsberg se acha grande conhecedor dos clássicos, coisa que ele deixa claro em seus filmes, a conselho do psiquiatra que ele visita, sem resultado palpável, há mais de trinta anos, tudo segundo o depoimento da Dianne. Pega um livro de bolso que tem por autor um tal de Platão. "Deste tamanho, deveria chamar-se Platinho" diz ele e devolve o livro à prateleira. Com seu jeito desajeitado, ao devolver o livro, esbarra numa prateleira ao lado, derrubando ao solo um pacote que contém carne de coelho, logo coelho, que lhe dá urticárias. Em sua imaginação fértil, a caixa, quando cai ao solo, se abre e partes do coelho são arremessadas para todo lado, mexendo-se como se estivessem vivas. Uma senhora gorda, sempre há uma senhora gorda em seus filmes! desmaia ao ver aquilo. Ele se ajoelha e se põe a chamar os pedaços de coelho de volta para a caixa, dizendo cúti, cúti, cúti, como diria se estivesse recolhendo pintinhos de volta à saia da mamãe galinha. Passado o delírio, ele pega a caixa, que permaneceu fielmente fechada o tempo todo em que esteve no solo, e se dirige ao caixa da loja.

Na verdade, a pequena loja possui dois caixas. O mais próximo é um homem de cara mal-humorada, que está envolto em fumaça, que toma conta daquele aquário onde ele lê o jornal do dia, com um charuto entre os dedos da mão direita.

- Fumante? indaga o caixa.

- Deus me livre! Morrer de câncer, nem pensar. Prefiro infarto do miocárdio, ou derrame cerebral, ou Aids, ou ser atropelado por uma bicicleta na ponte do Brooklin.

- Então dirija-se ao outro caixa, diz o homem sem tirar os olhos do jornal.

O outro caixa não tem cara mais amigável do que o primeiro. Aliás, em todo filme do Woody Allen o caixa é sempre um homem, coisa ligada à infância do autor, figura paterna, provedor da família, pão duro filho de uma égua etc. Aliás, recomendação de seu psicoterapeuta, segundo nos diz a mesma Diane, cuja palavra sempre deve ser recebida com reservas, como a palavra de toda ex-esposa que se preze, mas que serve para umas fofocas dessas. O fato é que o nosso personagem coloca a caixa de mercadoria sobre o balcão e o caixa faz cara de nojo.

- Você também não gosta de coelho?

- Só se estiver vivo. E na horta do meu vizinho, responde o caixa, sem esboçar o sorriso que a piada merecia. Por falar em estar vivo, com essa sua cara, o senhor bem que está precisando de um formicida. Temos doses individuais.

- Aquela queimação goela abaixo? nem pensar, diz o Woody.

- Tenho, para casos assim de pessoas com pressa, um estoque de revólveres da pior qualidade, alguns deles custando até menos do que uma dose de formicida. Tudo o que ele consegue fazer é dar um ou, no máximo, três tiros. Não mais. Se lhe interessa, está ali naquela prateleira, ao lado dos doces e das chupetas.

- E acha que ficaria bem eu morto no assoalho da sala tendo ao lado um revólver que não fosse de aço sueco, cabo de madrepérola e pelo menos cinco balas intactas no tambor?

- São US$ 3,37, diz o caixa com o mesmo entusiasmo.

- Com as balas ou sem elas?

- Estou falando do, argh!, coelho, diz o caixa.

O nosso personagem pega um cartão do bolso e coloca na maquineta, enquanto o caixa volta a ler o jornal, parece que os caixas daquela lojinha fazem questão de estar bem informados mesmo vivendo naquele fim de mundo. Ao virar a página, nota que a maquineta não liberou a papeleta para ser assinada. O comprador retira o cartão e descobre que é da Blockbuster.

- Não consigo me livrar da concorrência dos blockbusters, diz o Woody, em uma de suas conhecidas frases dúbias que só entende quem sabe que ele não consegue colocar seus filmes em mais do que quatro cinemas no dia do lançamento, ao contrário do que ocorre com os arrasa-quarteirões, tradução de blockbuster, se me permite o esclarecimento. Com seu jeito estabanado, o personagem vai retirando de cada bolso outros cartões, sendo três de drogarias, dois de sex-shops, cinco de livrarias e um de outra casa de aluguel de filmes, especializada em clássicos, a E Pur Se Movie, trocadilho que só alguns pouquíssimos espectadores vão entender, mas que se danem os espectadores, eu faço filmes é para mim mesmo, dirá ele depois em entrevista coletiva, antes de ir tocar saxofone naquele barzinho da Quinta Avenida, imitando o Luis Fernando Veríssimo, que nunca dirigiu filme algum.

- Este cartão caiu de seu bolso, diz-lhe uma senhora gorda e feia, que lhe entrega um cartão da American Card.

Ele olha para o cartão e exclama: "Não caia na rua sem ele". Talvez alguns espectadores entendam a piada. A senhora gorda, pela cara mais feia que faz, certamente não entendeu.

Terminada a compra ele procura um modo de segurar o, argh!, pacote de modo a cobrir a mancha ovalada da parte dianteira da calça, que decorreu da desatenção dele ao conselho paterno: As três batidinhas são a segunda coisa mais importante que você vai fazer com esse membro. A primeira é a circuncisão.

Surpresa das surpresas, com o passar do tempo, a tal mancha simplesmente desapareceu! Feliz da vida ele atira o maldito pacote na lata de lixo existente ao lado da porta da saída, sob a pia, onde ele lavará as mãos, para se livrar de vez daquele maldito cheiro de, argh!, coelho.

Antes que o caixa pudesse avisá-lo, se é que algum caixa estaria disposto a avisá-lo, ele descobre que a torneira da tal pia está com defeito e, assim que acionada, despeja água para todos os lados. Especialmente na parte da frente de sua calça. Onde produz uma mancha escura ovalada.

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Colunista

Adauto Suannes foi desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.