Circus

Espelho (O)

Espelho (O)

30/1/2009

 

"Mirror, mirror on the wall,
who is the fairest of us all?"1

Rainha Má,

no desenho
da Branca de Neve

Toda história tem um personagem. Um ou mais de um. Mas pelo menos um. Ou uma. O ideal é que esse ou essa protagonista seja alguém viável. De preferência, inteligente como o leitor se supõe ser, ou bonita, como a leitora se considera. Claro que essa é uma afirmação machista, pois há homens pouco inteligentes e mulheres não tão belas. Mas o horroroso chavão que os antigos nos passavam, geração após geração, era que a mulher era um animal de cabelos longos e idéias curtas, enquanto os homens. Claro que era o modo de ver dos homens. Mulher publicava livros de receita, quando muito. Juíza? Nem pensar. Hoje é mais fácil encontrar homens de cabelos longos, sedosos, esvoaçando ao vento, do que mulheres com esse mesmo adorno capilar. E quanto à palavra inteligência, caiu em descrédito depois que lhe acrescentaram uns tantos adjetivos, distinguindo-se inteligência para isto de inteligência para aquilo. Até uma sigla foi inventada: E.I., para designar a inteligência emocional, o que quer que seja isso. Se é que isso é, de fato, alguma coisa.

Se em relação à inteligência há essa relatividade, no que diz com a beleza basta ver como as modelos femininas foram-se modificando ao longo do tempo. Tanto as gordinhas que exibiam seus pneus e culotes na nudez lânguida das pinturas dos artistas clássicos até as anoréxicas que desfilam aquele requebrado mecânico para as câmeras dos retratistas atuais são escolhidas pelo mesmo critério: a beleza que, aos olhos desses artistas, elas possuem. O que deixa, agora e antes, à margem da vida e da história aquelas que, por oposição, chamaríamos de feias. E é sobre uma dessas que versa nossa história de hoje.

Ela era, de fato, extremamente feia. A natureza não fora madrasta em relação a ela, pois jamais houve madrasta assim tão má. Escolher essa frase feita seria dizer muito pouco para classificar aquilo que com ela havia feito quem, lá onde isso é programado, escolheu as células que, ao final do processo de formação daquele ser humano, a fez ser assim como as pessoas a viam. Nem Pablo Picasso teria tido o atrevimento de colocar algo semelhante em alguma de suas centenas de quadros, nem mesmo naquela tela enorme, que mostra pessoas e animais destroçados e que despertou a atenção de um general franquista, a Guernica. "Foi o senhor quem fez?", teria indagado o militar. "Eu não. Foram os senhores" teria respondido o atrevido malagueño.

Sei que é cruel trazer um fato desses para diversão dos leitores. Não me move esse propósito sádico, mas, ao reverso, a sadia intenção de mostrar-lhes que, por mais que não nos conformemos porque nosso rosto não é assim o de um Brad Pitt ou de uma Maria Sharapova, há pessoas que têm mais motivo do que nós para só sair à rua depois que o sol se põe. E andar por ruas sem iluminação. E usando burka.

Certo juiz, que não era assim um Adônis, caçoava da feiúra de um desembargador, tido e havido como o mais feio dos juízes de São Paulo, talvez do Brasil. Feio por fora e por dentro, como diziam seus inúmeros desafetos. O Augustinho, que fora escrevente e depois juiz em Sorocaba, um gozador emérito, não teve dúvida em esclarecer o assunto ao comentarista: "O desembargador fulano é feio por antiguidade; você é feio por merecimento".

Fosse por merecimento, fosse por antiguidade, nossa personagem só saía de casa à noite, o que não fazia se houvesse lua no céu, por mais minguante que fosse. E naquele dia fatídico lá foi ela, em caráter absolutamente excepcional, à inauguração da mais nova loja da cidade, em um bairro onde ela jamais encontraria algum conhecido. Loja granfiníssima, havia-lhe assegurado o material publicitário que lhe chegara pelo correio, essa inconveniente mala direta que nos alcança até numa ilha deserta.

O que ela não sabia era que no hall de entrada da chiquérrima loja a infeliz decoradora mandara instalar um espelho enorme, desses cujo tamanho o fez entrar para o livro do Guinness. E os ignorantes convidados que ali chegavam eram recepcionados por ninguém menos do que eles mesmos, ali do outro lado daquela parede invisível. E assim se deu, como não poderia deixar de dar-se, com aquela senhora de quem aqui nos ocupamos.

Por menos que ela o desejasse, soltou um grito estridente ao dar com aquela outra ela ali em sua frente, com uma cara tão assustada e tão assustadora quanto a sua. Toda a loja voltou-se para o centro do salão, identificando ali a espantada senhora. Ou as gêmeas espantadas, se se quiser. Viram então uma delas, a do lado de cá do espelho, tirar ambos os sapatos e, com golpes sobre golpes, pôr abaixo aquela indiscreta peça decorativa.

Ela foi processada, como não poderia deixar de ser, pelo óbvio crime de dano que praticou contra a propriedade alheia. O juiz, de cabelos brancos e vivência muita, absolveu-a, sob o fundamento de que a ré agira sob legítima defesa.

É esta, evidentemente, uma falsa história, uma invenção literária de quem não tem mais nada com que passar o tempo, como já deverão ter concluído os leitores.

Realmente, não existem juízes assim tão compreensivos.

 

1No Brasil, a frase da rainha má foi assim traduzida: "Espelho, espelho meu, haverá no mundo mulher mais bela do que eu?"

 

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Colunista

Adauto Suannes foi desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.