Circus

Herói Adormecido (O)

Herói Adormecido (O)

22/8/2008

 

"Sei que meu trabalho é apenas uma gota d’água num oceano, mas sem ele o oceano seria menor."

Madre Tereza de Calcutá

Joseph Campbell brindou-nos com notável reflexão a respeito da saga do herói, esse repositório de virtudes que, ao longo da História, preenche narrativas que passam de geração a geração. A figura arquetípica de que fala Jung. Aquele modelo de ser humano que, superando as limitações humanas, dá à sua (e à nossa) existência um sentido cuja dimensão nem sempre percebemos. Para Campbell, o tecnicismo da sociedade contemporânea conduz as pessoas ao tédio e à alienação, incapazes de assumir o herói que cada um traz dentro de si, envolto por um ambiente de competição que a todos nos massacra. O heroísmo, assim, passa a ser entendido como o esforço para a vivência da vida em sua plenitude, como assunção de sua história pessoal exclusiva e única, vivida com intensidade. Quem se habilita ?

Deixando de lado o aspecto religioso (não por ser menor, mas por suscitar discussões que aqui não cabem), será fácil invocar as figuras heróicas de Moisés, de Jesus, de Maomé ou do Buda, vendo-se neles apenas suas qualidades, como é próprio de todo herói autêntico. Heróis que não chegaram aonde chegaram graças a poderes especiais, mas em razão de um caminho extremamente espinhoso. Per aspera ad astra, como se dizia outrora. E é justamente o inatingível desses personagens (cuja historicidade também não importa, pois eles sempre serão maiores do que a História) que nos afasta, não poucas vezes, da chamada religião, pois as figuras desses heróis passam a se tornar como que propriedade de grupos humanos que, no limite, cometem atrocidades em nome de quem representaria a elevação máxima do ser humano. Despreza-se o fato mais importante, que é o substrato do herói, que o torna superior a qualquer nome que se lhe dê. A profundidade da mensagem mitológica passa então a ser substituída por narrativas pretensamente históricas. Meros contos de fadas, até porque, como nos ensina Jung, quando dizemos "Deus", estamos apenas enunciando uma palavra, não um conceito. O máximo a que conseguimos chegar é à imagem de uma figura antropomorfa. Como dizia o filósofo grego, se os cavalos soubessem pintar, pintariam Deus com cabeça de cavalo. Os hinduístas que o digam.

O que nos encanta nas narrativas dos feitos desses heróis é, de certa forma, uma projeção especular, se me permitem o pernosticismo : vemos o herói como quem se vê num espelho. Sua saga é, no geral, um morrer e um renascer dentro da mesma vida, a nos convidar a superar as dificuldades que nossas limitações humanas nos impõem diuturnamente. A vida, rigorosamente, alimenta-se da vida, o que o sacramento da eucaristia ilustra perfeitamente.

O cinema, é ainda Campbell quem faz o reparo, trabalha desde sempre com essas figuras arquetípicas. A quantas pessoas ocorrerá que o vilão de Guerra nas Estrelas chama-se Darth Vader (corruptela de Dark Father), para expressar o anti-herói, o Pai Sombrio que o filho Skywalker (textualmente, "caminhante do céu") tenta resgatar na hora da morte (do pai) ? A força interior do filho naquela narrativa mitológica não lhe é dada de graça, sendo, antes, fruto de longo caminho de aprendizado e superação de obstáculos, muitos dos quais ligados à sua condição de ser humano, até convencer-se de que "eu tenho a força", como poderia ser "eu tenho a fé". Os jesuítas não fazem exercícios espirituais ?

Quando o nome do filme Shane, de George Stevens, foi traduzido para o português como Os Brutos também amam, tudo o que podemos concluir é que o tradutor não tinha o mais remoto conhecimento de psicologia nem de mitologia. A figura do homem sem passado nem futuro, que assume, com desassombro, o papel de justiceiro, de enviado dos deuses, não diz com um homem real, mas com aquele herói que todos temos dentro de nós e que, por motivos os mais variados, nem sempre vem à tona. Não nos esquecendo de que o filme narra a história tal como é vista por um garoto, não sendo demasia concluir que o heroísmo de Shane seria mera projeção do heroísmo que o garoto esperava do pai, essa figura mítica de que todos necessitamos para desenvolvermos uma personalidade tão sadia quanto possível.

Infelizmente, os resumos dos jornais e das revistas mostram-se, no geral, incapazes de apreender a grande mensagem trazida por muitos filmes, como esse maravilhoso O Último Samurai, em que o próprio título é propositadamente ambíguo. Quem é o capitão Nathan Algren ? É um ser humano chegado à mais insuportável degradação, que se prostitui para sobreviver e se embriaga para suportar uma vida insuportável. Algo que Aurélio Agostinho conheceu muito bem.

Como todo herói mítico, o capitão Nathan tem sua Estrada de Damasco, onde as Parcas lhe poupam a vida, para dar-lhe a oportunidade de dar a ela um sentido condizente com sua condição de herói, tanto quanto Aurélio Agostinho, que veio a tornar-se bispo de Hipona e doutor da Igreja católica.

Quem poderá deixar de lembrar-se também do inesquecível Augusto Matraga, de nosso Guimarães Rosa ?

Não estivéssemos diante de figuras arquetípicas e até se poderia pensar num plágio. Matraga, como Nathan, cometera toda sorte de atrocidades em sua vida pretérita de cangaceiro. Emboscado pelo destino, é jogado em uma ribanceira, dado como morto pelos desafetos. Ressuscita e dá à sua vida um sentido heróico, com o declarado propósito de entrar no céu, nem que tenha de arrombar suas portas a coice. "Cada um tem a sua hora, e há de chegar a minha vez !". E ela chega pelas mãos de Joãozinho Bem-Bem, vivido magistralmente no cinema por Jofre Soares.

Tanto Augusto Matraga como Nathan Algren (e como, certamente, qualquer um de nós) têm sua hora e vez (quantos comentadores, desatentos das sutilezas do grande escritor, colocam entre esses dois substantivos um inexistente a), aquele momento de conversão íntima, a partir da qual a vida passa a ter o seu real sentido.

Em suma : todos nós teremos sempre uma hora e vez, aquela oportunidade de nosso herói adormecido despertar e dizer a que veio.

 

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Colunista

Adauto Suannes foi desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.