"Com um profuso copo d'água, todos brindaram. E faziam, em gesto emocionado, a homenagem ao Professor Goffredo Telles Jr., que hoje, em plena atividade, assiste às comemorações pela passagem de seus 93 anos. Deixe professor Goffredo, assim como suplicava seu saudoso pai nos versos que hoje trazemos, que fiquemos assim, bem seus alunos, ao seu lado. Viva nosso mestre Goffredo !"
Migalhas, 16.5.2008
Tenho pela lógica a mesma paixão que o soldado José tinha pela charuteira Carmen. Só espero que isso não resulte em tragédia semelhante. Quem visse aquela cigana talvez perguntasse onde o soldado estava com a cabeça para largar tudo, ser declarado desertor, aliar-se a contrabandistas só para estar ao lado de sua amada, que o troca por um toreador, despertando as iras do ex-soldado que, louco de ciúme. Veja a ópera, se não a conhece. Há uma versão cinematográfica intitulada Carmen Jones, na qual todos os personagens são negros. Coisa do Otto Preminger, sendo o soldado José interpretado pelo Harry Belafonte, o homem do Banana Boat, lá se vão mais de 50 anos.
Pois algumas pessoas conseguem viver longe da minha paixão, o que eu simplesmente não compreendo. Se Carmen causou alguns tantos contratempos ao José, não será de admirar que a lógica também me faça das suas. Especialmente quando se casa com a lógica. Diz o Millôr Fernandes que, "se dizemos que toda regra tem exceção, estamos mostrando uma regra. Logo, essa regra que enunciamos tem exceção. Portanto, de acordo com essa regra, nem toda regra tem exceção". Lógico, não ?
Por falar em regras, almoço por vezes num restaurantezinho da rua do Riachuelo, cuja comida não é nenhuma maravilha e o preço menos convidativo ainda, mas como ali revejo amigos de cabelos brancos como eu, ou já sem cabelo nenhum, além de senhoras que conheci há muitos e muitos quilos passados, penso que só por isso vale a pena dar uma passada por lá. Além do mais, para quem vive sendo advertido pela cardiologista de que deve deixar de ser preguiçoso e caminhar uma hora por dia e moderar nas massas, nada como um restaurante por quilo, para fazermos as combinações mais heterodoxas que a culinária permite. Folha disto, mais folha daquilo, mais peito de frango, para eu não me sentir um coelho. E sair da mesa ainda com fome, diz a doutora Sílvia.
Dia desses preguei uma peça na simpática proprietária. Disse-lhe que, sofrendo de incontinência urinária, entrei outro dia às pressas no seu restaurante e passei por uma vergonha danada por culpa dela. Ela empalideceu e eu continuei a acuá-la, cinicamente. "É que eu cheguei correndo até a porta do banheiro e lá havia uma tabuleta do lado de fora da porta dizendo 'conserve a porta fechada'. Eu conservei e urinei-me todo". Depois ri muito, mostrando que era uma piada. Pelo sim, pelo não, se você for lá hoje, verá que não há mais placa nenhuma na porta.
Num restaurante da Alameda Santos, famoso por seus galetos, precisando ir ao banheiro, como sempre, dirigi-me a uma porta que tinha a letra "S". O maitre, aflito, agarrou-me dizendo que eu estava entrando em banheiro errado. "Mas S não quer dizer Senhor ? " disse eu cinicamente. Ele me apontou uma outra porta, com a letra H. "Pensei que fosse para Homossexuais" disse eu mais cinicamente ainda.
Pior é quando colocam na porta do elevador a placa "em manutenção". Eu procuro o zelador, indagando-lhe, como se eu não soubesse, o que quer dizer aquela placa. "É que o elevador quebrou", esclarece o homem de boa vontade. "Então vamos, de agora em diante, ter de ir pela escada para todo o sempre ?" indago, cinicamente. "Logo, logo o elevador estará consertado", diz ele, caindo na esparrela. "Acho que não", retruco. "Se ali diz que estão mantendo o elevador como ele está, estando ele quebrado, vai continuar quebrado ad infinitum". Manter não é isso ?
Outro restaurantezinho, este especializado em saladas, como recomendou a mesmíssima doutora Sílvia, e em moças e moços bonitos, desses que se vestem como se tivessem vindo de um batizado, sempre falando não sei que tantos assuntos pelo eterno telefone celular, também tem seu banheiro, que eu, evidentemente, não pude deixar de visitar. São, aliás, dois banheiros, no alto da escada, um à direita e outro à esquerda de quem lá chega. São duas portas : uma com um desenho do rosto de um homem ; outra com o desenho do rosto de uma mulher. Em cada um deles só pode entrar uma pessoa por vez. Desço e pergunto ao simpático maitre, um jovem quase de minha altura, com idade para ser meu neto : "Se só cabe uma pessoa em cada banheiro, por que a tabuleta na porta ?" Ele pára o que está fazendo, ri muito e conclui, encerrando o assunto: "Sua observação tem sua lógica!".
Aluno do aniversariante Goffredo, ouvi com a atenção devida sua explicação do chamado "imperativo atributivo", lá vai mais de meio século, valha-nos Deus ! Dizia ele : uma norma impõe uma conduta, que deve ser observada, sob pena de o infrator ser punido. Isso, concluía ele, contribui para que a sociedade se desenvolva e todos busquem a felicidade. Atrevidamente eu pensei perguntar-lhe à saída da aula : "Imaginemos uma norma que diga que todas as pessoas devem matar uma pessoa, para restabelecer o equilíbrio ecológico. Na China, por exemplo. E isso deve ser feito sob pena de morte. Imaginemos que todos os habitantes daquela sociedade cumpram essa norma, como bons cidadãos que são. Portanto, B mata A; C mata B; D mata C até que Z vem a matar Y. Com isso esse tal Z fica sendo o único habitante daquele hipotético país. Cadê a tal sociedade, mestre ?" Meu atrevimento lógico não chegava a tanto.
Vou pela estrada a dirigir, procurando fugir desses pensamentos lógicos, que, como toda paixão, tanto me atormentam. O DNER colocou avisos simpáticos ao longo da Rodovia Carvalho Pinto. Um deles diz : "Para ver melhor e ser visto, use o farol aceso". Grande aviso ! De agora em diante, quando eu estiver em um quarto escuro e precisar iluminá-lo, vou pedir que me tragam não só uma lanterna, como também as respectivas baterias, todas elas em perfeito estado de funcionamento. Não esqueçam de testar, hein ? Sempre é bom ser claro como o DNER, até porque eu não tenho a menor idéia a respeito da utilidade de um farol apagado. Ou de uma lanterna sem pilhas. Ou pilhas descarregadas. Só ser for para matar barata. Mas, no escuro ?
O próprio DNER nos adverte : "Não beba antes de dirigir". Vi num Oktoberfest, lá no Sul do país, uma cartola pândega, que é, na verdade, uma mini-geladeira. Você coloca nela uma garrafa de cerveja, aberta, é claro, com o bocal para baixo. O líquido, geladinho, chega até tua boca por um caninho plástico. Prático, né não ? E você pode ir bebendo durante a viagem, enquanto dirige. Isso, ao que parece, não é proibido, segundo o DNER.
Chego a Campos do Jordão e vou visitar o seu Horto Florestal. Logo na entrada há uma tabuleta : "É proibida a entrada de animais domésticos". Paro e afirmo ao simpático porteiro que da próxima vez eu virei com um leão e ele será obrigado a deixar-me entrar. Ele faz um ar de espanto fitando-me sem explicitar o pensamento, que somente pode ser um : "De onde saiu esse doido ?" Ao lado dele, um outro rapaz, de mesma idade, despeja uma solene gargalhada. Dessas de dobrar o corpo e bater com as palmas das mãos nas coxas. "O cara tem razão, mano. Leão não é animal doméstico !". E tome gargalhada enquanto eu avanço com o carro, como se não tivesse nada a ver com aquilo.
Acha pouco ?
Estou sentado aguardando a vez de despachar uma petição com a juíza, que se prepara para interrogar o réu. "Pela Constituição Federal o senhor pode ficar calado. Mas de acordo com o artigo tal do código tal o seu silêncio poderá ser interpretado por mim como confissão de culpa". O rapaz diz lá umas tantas coisas, com seu defensor só olhando. Terminado o interrogatório, aproximo-me e obtenho o tal despacho. Antes de despedir-me, provoco : "A senhora pode esclarecer-me algo ?" Ela aceita. "Como a senhora me explica que alguém que acaba de exercer um direito de índole constitucional pode vir a ser prejudicado por aquilo que se encontra em uma simples lei, inferior, hierarquicamente, à Constituição ?" Surpreendentemente ela esboça algo próximo de um sorriso e me manda às favas com toda educação. "O senhor há de admitir que uma discussão dessas levaria horas !".
Volto para casa e, no caminho, há um bloqueio feito por guardas de trânsito. "Alto lá !" diz um deles. Penso em perguntar : "Lá onde ?". Melhor não.