Circus

Vigarices

Vigarices

15/2/2008

O Benedito é um motorista de praça de quem me sirvo quando o trânsito de São Paulo ameaça acabar com minha paciência. Como temos um único automóvel em casa, basta alguém manifestar o propósito de usá-lo para que eu, fingindo generosidade, prefira ir de táxi para as minhas andanças por aí. Pois o Dito é quase sempre o que está a postos no ponto de táxi ali da esquina. É um caboclo feito nas Conchas, segundo diz ele, fazendo trocadilho com a cidade onde nasceu e de onde vem seu forte sotaque. Faz umas observações muito sensatas, sendo, como tantos outros motoristas, de citar a Bíblia, de que traz um exemplar sobre o banco, que lê enquanto aguarda cliente.

Numa das vezes em que entrei no carro, ele desligou o toca CD, onde rolava um disco de músicas caipiras. A meu pedido ele religou o toca-disco e eu, para surpresa dele, acompanhei o Pena Branca e o Xavantinho : "domingo detardezinha, eu estava mermo à toa, cunvidei meu cumpanhero pra i pescá na lagoa; levemo a rede de lance; ai! ai ! fumo pescá de canoa". Ele se admirou de minha versatilidade. Isso porque ele ainda não me viu fazendo dupla com o Sydney Sanches cantando a Morte do Chico Mineiro. "Fizemo a úrtima viage, foi lá pro sertão de Goiais". Aliás, o Sydney tem um primo que é motorista de táxi e faz ponto aqui por perto. E é parecido com ele. O mesmo cabelo que o Sydney herdou do pai. Coisas da vida.

Mas voltemos ao Dito cujo. Passamos, dia desses, por uma praça, onde um rapaz fazia o famoso jogo dos três dedais e um grão de milho. Como o tráfego estava emperrado, deu para apreciar parte da encenação. Roda de cá, roda de lá, e o espectador não consegue acertar sob qual dos dedais está o milho. Prestidigitação, esclareço ao Benedito, nome técnico da arte de fazer os dedos serem tão rápidos que os olhos não conseguem acompanhá-los. Grego, Dito. É bom mostrar cultura numa hora dessas, mas nem sempre isso funciona. "Pra mim isso é vigarice mesmo, doutor", sintetiza ele, encerrando o assunto.

Encerrando coisa nenhuma. Ele me fala do Largo Treze, lá em Santo Amaro, onde existem muitos daqueles prestiqualquercoisa, fazendo pouco do meu tolo exibicionismo. Um deles vende feijão de corda. "O senhor conhece? Pois ele vende cada baciada a dois barão". Barão, Benedito ? Dois real, vá lá. E qual a vigarice, Benedito? "É que em antes de encher a bacia com o feijão, ele coloca dentro uma bacia menor, com a bunda pra cima. Assim, fica um espaço vazio entre as duas bacias e quem compra o feijão leva aquele tanto de ar junto. Quando a pessoa faz atenção no dinheiro que vai entregar pro vendedor, ele, zas !, coloca o feijão no saquinho e o comprador não percebe a manobra".

Prestidigitação, sem a menor dúvida, sentencio.

E lá se vende de tudo. De tampinha de bideu a aparelho de vídreo e rádio de pia. Aparelho de vídreo me parece uma trouvaille digna do Guimarães Rosa, mas imaginar que alguém compra rádio apenas para pôr sobre a pia... Talvez coisa de cozinheira ou copeira, dessas funcionárias cujo espaço físico não passa daqueles dois metros quadrados da casa, se tanto.

E tem o vendedor de ficha para telefone. Que nunca produz o prometido. "Mas quem é que conta o número de chamadas que se faz com uma ficha dessas ? E o vendedor vai lucrando em cima dos panaca. Compra ficha usada e vende como nova. É o que sempre digo: onde tem trouxa aparece sempre um esperto. Trouxa e boa cabeça juntos só na Bahia".

Bahia, Benedito ? "Então não viu as lavadeiras voltando do rio equilibrando aquela trouxa de roupa enorme ?" Positivamente, o Benedito hoje está com a macaca.

E por falar em macaca, sabe que eles também vendem passarinho ? Sei que isso é proibido, mas se brasileiro só fizesse o que é permitido, olha o desmazelo de gente de braços cruzados ! Pois eles vendem uns papagaios brancos que são uma beleza. Importados, Benedito ? "Cândida, seu doutor". Que cidade é essa ? "Cândida, QBoa, esses produtos que distintam as coisas", ensina-me ele. Eles colocam o papagaio num balde com cândida e, se ele não morrer no banho, fica com as penas desbotadas. O comprador só vai perceber quando o papagaio, se não morrer no caminho, trocar de pena na época da postura. "E lá tem sagüi, tartaruga, sanhaço, o que o doutor querer".

E tem também caneta importada. Ele tira uma do bolso, muito bonita, cor preta brilhante, com uma estrela branca de seis pontas no alto da tampa e frisos dourados. Examino bem a caneta e lanço meu diagnóstico. Mas esta caneta é falsa, Benedito, feita na China, com toda certeza. Ele faz uma cara de espanto, pára o carro com ar indignado, dramatizando a cena. "Se isso que o doutor está dizendo for verdade, eu perdi vinte barão". E dá uma sonora gargalhada, desfrutando da peça que me havia pregado. Vinte reais, Benedito ? "Por uma Montebic o doutor queria que eu pagasse quanto ? O que conta é a carga, que é com ela que se escreve, não é aquela frescura toda em volta dela. Se eu saco de uma caneta legítima, alguém acreditaria que eu paguei 500 ou 600 barão ? E se o doutor, todo bacano nesse terno e com essa gravata de seda, sacar de uma destas Montebics, alguém vai acreditar que não pagou nem 30 real por ela ? Diga : vai ?"

O Benedito, positivamente, sabe das coisas.

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Colunista

Adauto Suannes foi desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.