Passado quase meio século de minha formatura, fico a imaginar que diriam nossos mestres de Direito Penal se se dispusessem a analisar a sociedade brasileira contemporânea. Ainda se pode falar no Direito como o "mínimo ético exigível" ?
Tenho em mãos, ao redigir estas notas, o noticiário jornalístico destas últimas semanas. Por ele fico sabendo que determinado desembargador foi condenado pela prática do crime de falsidade ideológica1. Um magistrado ser condenado porque se excedeu ao revidar a um ataque à sua honra, ou que, como qualquer cidadão, envolveu-se em uma briga de trânsito será sempre para lamentar. Isso, porém, é compreensível especialmente se ele vive em uma dessas cidades estressantes que a incúria de nossos governantes permite que sejam construídas, com desprezo dos mais comezinhos princípios que deveriam nortear a convivência humana. Mas, amante da verdade por dever de ofício, é simplesmente inconcebível que esse profissional traia seus deveres funcionais, que dizem não apenas com sua propalada vocação profissional, mas especialmente com a confiabilidade da instituição a que ele pertence. Pois o noticiário nos diz que não só foi ele condenado como que sua pena teve a execução suspensa, nos termos da leniente e irresponsável legislação penal que temos hoje neste país. Mais : como decorrência dessa suspensão, o condenado foi autorizado a voltar a judicar. Em termos práticos, os advogados que doravante a ele se dirigirem para obter despacho em alguma petição, estarão a dirigir-se a um criminoso, que este é o título com que os magistrados se referem a quem tem pena a cumprir. Será para indagar se Sua Excelência não se sentirá constrangido ao ter de julgar caso envolvendo um colega específico, isto é, outro réu condenado por falsidade.
Tal situação é tanto mais surrealista se nos lembrarmos de que, para inscrever-ser em concurso para ingresso na magistratura, o bacharel em Direito não pode apresentar "maus antecedentes", assim entendida até mesmo condenação por mera lesão corporal produzida em choque de veículos. O candidato a juiz não pode ter maus antecedentes; já o juiz, a existência deles não o impede de continuar no cargo. Isso quando ele não é "punido" com a inacreditável "sanção" representada pela aposentadoria com vencimentos integrais, imoralidade contra a qual somente agora a sociedade brasileira parece querer levantar-se, a julgar por projeto de lei apresentado pelo deputado federal Raul Jungmann2, que procura, assim, suprir a omissão do Supremo Tribunal Federal, ao qual compete tomar a iniciativa de um tal projeto moralizador.
Relatam ainda os mesmos jornais que certo membro do Ministério Público, ao ser abordado por um motociclista desarmado, despejou sobre ele nada menos do que 10 (dez) tiros3, saídos, por sinal, de um revólver de uso exclusivo das Forças Armadas, que o chamado custos legis trazia consigo.
Eu poderia ainda citar aquilo que vem ocorrendo em nosso Congresso Nacional, onde pessoas sob investigação não se pejam de participar do julgamento de colegas também sob investigação, criando-se uma inaceitável distinção entre "infração ética" e "infração meramente política", a tornar vazio o texto constitucional que nos impõe a todos, especialmente ao ocupante de cargo público, o respeito aos sadios princípios da moralidade e da impessoalidade.
Diante de fatos como esses, que dirá o homem comum ? Como é possível dizermos a ele que, de fato, o crime não compensa ? Como poderemos nós, os chamados operadores do Direito, repetir essa desacreditada afirmação sem corarmos ?
Vejamos aquilo que a doutrina mais equivocada chama de "ressocialização" do criminoso, palavra que não resiste ao menor sopro crítico para estar no chão, de onde jamais deveria ter saído. "Ressocialização" talvez signifique convencer alguém (não nos esqueçamos de que, em tempos passados, o condenado era, otimisticamente, chamado de "convicto", como o pecador que se confessa arrependido de seu pecado para obter o refrigério do perdão e voltar a pecar, como é dos humanos) de que o adequado padrão de conduta que a sociedade dele esperava não era aquele que o levou à prisão. Que ele doravante siga os padrões exibidos pelos homens de bem, eis o que lhe propõe o Estado ressocializador. "Qual deles, cara pálida ?" indagará o condenado, tal qual na conhecida anedota. "Acaso deverei espelhar-me no desembargador condenado por falsidade ? No fiscal da lei que portava ilegalmente arma de fogo ? Talvez na pessoa do Presidente do Congresso Nacional e seus discutíveis rebanhos".
O sistema punitivo brasileiro, que de sistema tem muito pouco, tais os odiosos casuísmos que encerra, é, sob certos aspectos, um incentivo à prática do crime. Veja-se o recentíssimo caso de certo empresário, arrecadador de dinheiro não contabilizado para a campanha do Partido dos Trabalhadores, que, condenado por sonegação fiscal, teve a pena cancelada e voltou à condição de réu primário, graças ao pagamento, na undécima hora, dos tributos até então sonegados4, benesse que lhe é assegurada pela lei n. 10.684/2003, aprovada por nosso nada edificante Congresso Nacional para beneficiar os criminosos de colarinho branco. Se esse tardio arrependimento eficaz faz parte de nosso sistema penal, porque motivo ele não alcança o ladrãozinho que, preso logo em seguida ao roubo ou furto, devolve à vítima, tão espontaneamente quanto fez aquele conhecido empresário, aquilo que à vítima deve pertencer ? O legislador, para beneficiar os já beneficiados sociais, eliminou aí a distinção que sempre houve em nosso Direito Positivo entre infração criminal, infração civil e infração administrativa, entidades que tinham vida própria, como vasos não-comunicantes. Consumado o crime e descoberto seu autor, pouco nos importa se o agente, na esfera civil ou naquela administrativa, veio a indenizar a vítima. Resta puni-lo exemplarmente, para escarmento daqueles cujo lume ético bruxuleia. Aceitar que o pagamento dessa indenização a qualquer momento tenha reflexo na esfera penal é enfraquecer perigosamente o sistema punitivo, sabido que o que o lastreia é, principalmente, a convicção dos comuns mortais de sua inexorabilidade.
Nossos mestres nos ensinaram que a justiça é o caminho para pôr ordem no caos e chegarmos à paz. Opus justitiæ pax. Em livro ainda não editado, tento demonstrar que hoje em dia, tanto intra muros como no campo internacional, o que se vê é exatamente o inverso : o caos nos envolve e invade nossa sociedade, sem que possamos deter essa maré montante, pois as instituições brasileiras e os organismos internacionais mostram-se extremamente débeis para realizar o necessário para que essa crescente anomia seja domada.
Simon Blackburn, falando da história da Filosofia, mostra que, ao longo do tempo, nenhuma das três perguntas clássicas (quem sou ? de onde venho ? para onde vou ?) foi respondida de forma satisfatória pelos filósofos, criando-se sempre um pêndulo dialético : posta uma tese, surge sempre uma tese contrária (ou antítese, isto é, anti-tese). O encontro entre essas duas forças provocará uma terceira : a síntese. E quando pensamos que tudo está resolvido, essa síntese se torna uma nova tese, que, à sua vez, provoca o aparecimento de uma nova antítese. E por aí vai. Em razão disso, ele classificou os pensadores como se estivéssemos diante de um campeonato de futebol: absolutistas versus relativistas, tradicionalistas versus pós-modernistas, realistas versus idealistas, objetivos versus subjetivos, racionalista versus construtivistas sociais, universalistas versus contextualistas, platônicos versus pragmáticos5. Cuidasse ele do Direito e certamente incluiria em seu rol outra disputa : positivistas versus jusnaturalistas, como se uma coisa excluísse outra.
Um autor respeitável nos advertia de que "a Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo. Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão : o que é e como é o Direito ? Mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito"6. Dito de outro modo: o conhecimento do Direito Positivo não exclui o questionamento da aeticidade ou mesmo antieticidade nele contida.
Sabemos todos que a chuva de aeticidade que se despeja sobre nossa sociedade já atinge proporções diluvianas, e tudo o que temos é um surrado guarda-chuva ético cujo modelo, ao que parece, já saiu de linha. Nestes tempos pós-modernos de pragmatismo suplantando idealismo, hedonismo desenfreado e relações internéticas, esperar que as pessoas se debrucem sobre os livros clássicos de deontologia talvez seja pedir demais, ante a presteza do Google, essa babá eletrônica especializada em imbecilizar internautas acríticos.
Em momentos como este, talvez não seja o caso de citarmos juristas ou políticos, mas de irmos aos poetas, como o imortal criador do famoso Estatuto do Homem, de lembrança mais do que necessária, nosso Thiago de Mello, que nos alimentarão com sua invejável esperança:
"Madrugada camponesa,
faz escuro (já nem tanto),
vale a pena trabalhar.
Faz escuro mas eu canto
porque a manhã vai chegar".
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1 Cf. Jornal internético Migalhas, edição de 26.12.2007
2 "Um dos privilégios mais antigos da toga - a aposentadoria remunerada como punição disciplinar a juízes processados criminalmente - pode estar com os dias contados. Proposta de emenda constitucional em tramitação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara prevê o fim do benefício, que é exclusivo da magistratura. ‘Esse é caso flagrante de privilégio porque é uma trincheira de defesa corporativa no mau sentido’, diz o deputado Raul Jungmann (PPS-PE), autor do projeto. ‘Provoca escândalo e perplexidade o fato de que aquele que usurpou de suas competências, desonrou o Poder Judiciário e promoveu o descrédito da Justiça seja agraciado com a concessão, à guisa de punição, de um benefício pecuniário, suportado por toda a sociedade.’ A punição remunerada tem amparo na Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman), editada no regime militar, em 1979, mas contemplada pela Constituição de 1988. A Loman estabelece seis penas disciplinares, graduadas segundo a gravidade da ‘ofensa à ordem jurídica e à dignidade do cargo’: advertência, censura, remoção compulsória, disponibilidade com vencimentos proporcionais por tempo de serviço, aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais por tempo de serviço e demissão. A aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço é aplicável ao magistrado eventualmente enquadrado em quatro situações: negligência manifesta no cumprimento dos deveres do cargo; conduta incompatível com a dignidade, a honra e o decoro de suas funções; escassa ou insuficiente capacidade de trabalho, e procedimento funcional incompatível com o bom desempenho das atividades". (Fausto Macedo, jornal O Estado de São Paulo, edição de 27.12.2007)
2 Cf. Jornal internético Migalhas, edição de 8.1.2008
2 Cf. Verdade: um guia para os perplexos, Civilização Brasileira, 2006, p. 13
3 Cf. Jornal internético Migalhas, edição de 7.1.2008
4 Cf. Jornal internético Migalhas, edição de 8.1.2008
5 Cf. Verdade: um guia para os perplexos, Civilização Brasileira, 2006, p. 13
6 Hans Kelsen, Teoria pura do Direito, Martins Fontes, 1999, capítulo I