As pessoas que nos honram com sua atenção, lendo o que escrevemos, costumam fazer os melhores juízos daqueles que se atrevem a narrar-lhes fatos. "Que imaginação prodigiosa tem fulano !" Por vezes chegam a expressar isso que se poderia chamar de inveja : "Quem me dera escrever com tanta facilidade como você !" Ou, tentando ser originais: "Você usa mais a inspiração ou mais a transpiração ?"
O que eles não supõem é que a maioria das histórias que inventamos, eu e todos os que escrevem, está ali, ao lado de quem nos lê. Prestassem mais atenção e descobririam isso. Podemos acrescentar ou retirar um dado mais revelador, nunca empregamos o nome batismal dos envolvidos, alteramos o sexo e a nacionalidade dos personagens, quando isso se mostre conveniente, mas a imaginação do escritor geralmente se encerra aí. Somos como esses fabricantes de rede de pesca : amarramos espaços com barbante.
Veja o caso desse incensado "Caçador de Pipas", da autoria de um escritor cujo nome nenhum de nós consegue guardar, por mais que tenha apreciado o livro dele. Algumas pessoas que haviam lido o livro antes de mim juraram que era autobiográfico. O personagem é um afegão que foge para os Estados Unidos, onde se torna escritor. O autor, que nasceu no Afeganistão, fez o mesmo roteiro. O personagem casa-se com uma conterrânea, ao fim de peripécias de toda sorte. O autor é casado com uma afegã, cujo nome tem quase o mesmo som do nome da personagem do livro. E daí ?
Imaginemos que eu lhes fosse falar da importância do nosso anjo da guarda. Então eu citaria a história de um homem casado que viajava para uma cidade do interior, por uma estrada mal conservada, como tantas em nosso país. Ao desviar-se de um buraco, o carro, desgovernado, sai pelo acostamento, bate numa pedra e capota. O motorista, embora meio atordoado, verifica que não sofreu dano físico nenhum. Quando ele tenta sair do veículo, este começa a rolar, e segue ribanceira abaixo, dando voltas e mais voltas em torno de si. O motorista, mais tonto ainda, continua vivo, agradecendo a seu anjo da guarda por aquela segunda ajuda. Para exagerar minha narrativa, direi que, num derradeiro giro, o automóvel cai no rio que passava, exatamente nesse momento, lá no fundo do vale, e se põe a afundar, com o motorista lá dentro. O anjo da guarda providencia a abertura da porta do lado do motorista, que consegue sair do automóvel e nada até a margem do rio, satisfeito por ter um anjo da guarda daqueles. Ali, exausto, ele estende o corpo e cai no sono. Seu anjo da guarda, mais cansado do que ele, deita-se a seu lado, e cai num sono ainda mais profundo. Graças a isso, nenhum dos dois percebeu a aproximação de uma cascavel, que pica o pescoço do motorista, que, finalmente, morre.
É ou não é uma história bem inventada ? Se achar que sim, cumprimente a filha do tal motorista, a Vivi, que trabalha no Soho e me apara as madeixas de vez em quando. Foi ela quem me contou essa história incrível, quando lhe perguntei como seu pai havia morrido.
Querem mais ?
Imaginem uma dentista brasileira passeando, em gozo de férias num desses países exóticos que nossa ignorância chama de Arábia. Pode ser o Egito, o Paquistão, a Índia ou qualquer outro daqueles nos quais as mulheres vestem até o rosto e os homens usam turbantes. Fazendo um parêntese, uma das cenas mais incríveis que eu não tive coragem de fotografar, foi ver numa loja de Paris uma mulher, numa loja elegantíssima, trajando burka, abrindo e experimentando o conteúdo de frascos de perfume, sem jamais exibir o rosto. Imagino uma cena dessas num filme do Woody Allen !
Voltando à minha personagem. Ela está numa grande praça, cansada das visitas a lugares onde se permite o ingresso de pessoas do sexo feminino. Senta-se num banco de jardim, para continuar logo mais aquela peregrinação turística. Aproxima-se um senhor mais velho do que ela, que estende logo ali um tapete. Ela imagina que ele se ajoelhará no tapete, dobrará o corpo na direção de Meca e passará a entoar algum cântico, como se fosse um mantra islâmico. La illaha il Allah, Muhammad u rasul lullah. Ou qualquer coisa semelhante.
Para surpresa dela, não é bem isso o que acontece. Ele, que trazia nos ombros dois sacos de couro, um amarrado no outro, à moda do que faziam os garimpeiros no velho oeste norte-americano, um na frente do corpo e o outro fazendo contrapeso, nas costas, desce os dois sacos. Abre o primeiro deles e dali retira um número inacreditável de dentes. Repito: ela é dentista. Logo, não tem dificuldade em diagnosticar que aqueles dentes, a maioria cariados, são dentes humanos. Ele espalha os caninos, os molares e os incisivos alheios sobre uma das metades do tapete. Depois disso, abre o outro saco e dali retira número incalculável de dentaduras, que enfileira delicadamente uma ao lado da outra.
Ela se põe a fotografar aquela incrível obra de arte, mesmo não atinando com a mensagem que aquele artista pretendeu transmitir. Ele fala um inglês bastante razoável e ela se põe a falar sobre obra de arte. Ele não está entendendo nada, até porque, como diz a ela, mal entende de sua arte. "Qual a sua arte ?" é a indagação óbvia. Sou dentista, diz ele. Ela, desconfiada, põe-se, delicadamente, a fazer algumas indagações técnicas e conclui que, de fato, ele é seu colega.
Se aquilo não é uma bizarra exposição de arte, que diabos é aquilo ? É a indicação aos passantes de que ele é dentista. Apenas isso. Vendo o número de dentes que ele já extraiu, os interessados terão mais confiança em entregar a boca aberta ao boticão do homem. Simples, não ?
E as dentaduras ? Antes que ele responda, uma senhora, bem velhinha, abaixa-se e começa a experimentar uma a uma as dentaduras, pois lhe faltam na boca todos os dentes. Devolve uma, muito apertada, depois devolve outra, um tanto folgada, e, finalmente, com um novo sorriso no rosto, pergunta a ele qual é o preço da dentadura que lhe serviu nas murchas gengivas. Ele diz o preço, o marido dela tira de uma trouxa algumas notas e lá vai a velhinha exibindo seu novo sorriso aos circunstantes.
"Mas como o senhor consegue fazer tantas dentaduras ?"
Ele não faz. Ele as compra. De quem ? Dos familiares dos defuntos, claro. Qual a necessidade que um morto tem de ser enterrado com os dentes postiços ? Além de poderem servir a novos donos, sempre proporcionam aos herdeiros um dinheirinho extra, pondera com toda propriedade.
Que escritor teria imaginado uma história dessas ? Eu de mim apenas lhes transmito a explicação que a doutora Junqueira me deu quando me admirei das estranhas fotos pendurados nas paredes da sala de espera de seu consultório dentário. E que ela havia tirado em sua recente viagem ao Egito. Ou à Índia. Ou ao Paquistão, sei lá.
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