“A FALTA QUE ELA ME FAZ”
Título de livro de crônicas do Fernando Sabino, de 1980, onde ele não se refere nem à mãe, nem à esposa, nem à amante, nem à namorada
Na Europa, as casas não possuem mais a chamada empregada doméstica. Sinal da evolução social, pois se cuida de função humilhante, incompatível com a chamada dignidade humana, dizem os esquerdistas brasileiros, que conhecem o problema apenas por fotografia. Mais digno do que isso é essas moças e senhoras pedirem esmola junto ao semáforo e fazer careta quando você as ameaça com algum emprego. Como os filhos delas têm a promissora e incipiente carreira de malabarista, com direito a foguinho nas extremidades da vareta que eles giram diante do teu carro parado enquanto a luz verde não chega, logo logo as mães deles vão nos brindar com algum espetáculo de strip-tease. Quem viver verá.
Na Noruega, que conheci ao vivo e a cores, funcionária da embaixada de certo país sul-americano teve problemas com o Departamento de Imigração, pois havia levado na bagagem uma brasileira para exercer lá a tal humilhante função, apresentada então, como convém a brasileiros, como parente do casal. Como a cor da pele dos membros do casal não combinava com a da sua alegada familiar, os fiscais do tal Serviço de Imigração fizeram a chamada campana durante algumas semanas e descobriram que ali estava uma imigrante ilegal, que foi deportada para o país de origem. Ter imigrante ilegal em casa só sendo senadora norte-americana, esposa de presidente que gosta de charutos e futura candidata à presidência do país. Para alegria das vizinhas, falo novamente da Escandinávia, que não suportavam aquela absurda exibição de poder econômico por parte do casal sul-americano. Devem ser traficante de alguma coisa para um gasto desses, teriam cochichado.
Quando digo que na Noruega a faxina da casa é feita uma vez por ano, as pessoas mais sensíveis saem de perto. "Só pode estar bêbado para querer que acreditemos nisso !" Essa faxina é feita na véspera da Páscoa, pois eles levam isso de "passagem" ao pé da letra. Não houvesse a Páscoa, nem haveria a tal faxina anual. Feita, aliás, pelos donos da casa. Quando muito, os vizinhos fazem um mutirão, na base do eu ajudo a limpar a tua e você ajuda a limpar a minha. E aquilo vira uma festa de congraçamento, que até tem nome específico que, como não acontece com mais freqüência, não entrou para o meu magérrimo vocabulário norueguês. Espero que o Terje Borresen, que está aprendendo português apenas para ler o Circus no original, se manque e me ajude. Aproveitando, é claro, para perguntar à esposa brasileira por que motivo deverá andar ele a fingir que é aleijado físico para me atender. Acho que quem deu uma mancada fui eu, Terje.
No Brasil, de fato, graças aos sindicatos petistas, as empregadas domésticas descobriram seus direitos, o que só pode ser aplaudido pelos que dizem acreditar em igualdade social. "Isso que a senhora está mandando que eu faça não se inclui entre os deveres de uma secretária do lar" disse uma delas a uma amiga nossa, que lhe havia pedido que lhe fritasse um ovo, algo próprio de uma cozinheira, como sabemos. Como colocar naquele apartamento minúsculo uma empregada doméstica, uma lavadeira, uma passadeira, uma cozinheira e uma mordoma é um problema que não pertine a elas, como diriam se tivessem sido alunas da professora Fonseca Rolim. Pena que os sindicatos petistas não se lembrassem de que jus et obligatio sunt correlata, coisa que não traduzo porque não mais sei o que isso quer dizer. Bacharelices ? Never, never more !
A Noruega, aliás, atingiu tal ponto de evolução que um funcionário encarregado da limpeza das salas da Universidade de Oslo ganha cerca de 1/3 do que ganha um professor da mesma universidade. E se acha tão importante quanto o diretor, já que ninguém se apresenta para aquele serviço altamente relevante. Minha mulher ocupava uma sala com direito a seu belo nome numa plaqueta na porta. Dentro da confortável sala, mesa, computador, estante para os inúmeros livros e o indefectível sofá, onde todo ser humano dá suas cochiladas depois do almoço. Diante da nudez do assoalho, dei a ela de presente, num acesso de saudade dos rincões sudamericanos, um tapete peruano, com não mais de 1m por 0,50m. O diretor administrativo, delicadamente, ponderou que aquilo certamente traria problema, pois quando o encarregado da limpeza semanal da sala foi contratado não havia aquela fonte de trabalho adicional. Ou ela tirasse dali o tapete ou o enrolasse na véspera da limpeza semanal.
Aliás, os empregados noruegueses recusam promoção, pois o adicional mínimo que lhes será posto no salário não compensa o aumento de responsabilidade. Os efeitos deletérios do "bolsa família" já são lá conhecidos há muitas décadas.
Voltemos, porém, ao Brasil. Amigo nosso, em viagem de negócios pela Europa, telefona à mulher, para ter notícias da família que aqui deixou, disposto a pagar a dinheirama que isso custa a um membro da outrora chamada classe média, hoje trilhando a mesma senda dos dinossauros, do macaco leão dourado, das baleias e outros animais menores. A empregada, toda solícita: "vou chamar". Larga o telefone e anda três ou quatro quarteirões para avisar a patroa, que estava no cabeleireiro, que o patrão queria falar com ela. Que não demorasse. Deve ser a mesma secretária do lar que, nova na casa assobradada, quando do outro lado da linha perguntaram "de onde falam", não teve dúvida: "de debaixo da escada", que era onde ficava a mesinha do telefone.
Já o Zé Francisco, membro da mesma classe em extinção, graças à vagabundagem oficial proporcionada pela demagógica "bolsa família", paga, aliás, pelo imposto que não temos mais coragem de sonegar, economizou e foi com a mulher até Buenos Aires, aproveitando que a gangorra cambial pende a nosso favor atualmente, graças aos demagogos do lado de lá da fronteira, que isso não falta na América latina. Como todo turista brasileiro que se preza, trouxe um casaco de couro legítimo, coisa mais fina. Que certo dia deixou inadvertidamente fora do armário e foi parar na máquina de lavar roupa. Sorte do porteiro do prédio, que teve neste inverno as noites mais bem agasalhadas de sua vida. Até porque o que conta é matar o frio e não a belezura, né não, doutor, como explicou ele ao generoso doador.
E houve aquela faxineira que era um azougue. No que a Maria Helena foi dar suas aulas de Direito Espacial, ela resolveu limpar os livros das estantes, onde já se viu aquela poeirada toda, dona professora. Quando a distinta professora voltou, à noite, quase teve um chilique: os livros estavam todos limpíssimos, agora arrumadinhos de acordo com o tamanho e a cor da lombada. Isso de "assunto" é coisa que a Zenóbia nem sabe como que se escreve. Quando a dona da casa conseguir arrumá-los novamente tal como estavam antes da tal faxina, certamente já será hora de limpá-los novamente. E aí, salve-se quem puder!
A ignorância, certamente, não é privilégio das empregadas domésticas. Em nome da contenção de gastos, empresas contratam pessoas que não têm a menor familiaridade com a atividade que vão desempenhar. Numa das lojas de uma rede de supermercado de nome francês, por exemplo, atendia, na seção de pães, uma moçoila cujo sotaque mostrava não ser francesa nem paulista. Perguntei-lhe quanto custava o croissant. A cara que ela fez daria a impressão de que lhe fiz alguma proposta indecorosa. Outra casa de nome elegante, de finíssima aparência, nos chiquérrimos jardins, serve doces estupendos. Pedi à moça que me preparasse um frappé de coco. "Nós não temos". Então ponha uma colher de sorvete de coco num copo alto, complete com leite e bata no liquidificador. "Mas isso é milk-shake", diz ela. Em inglês, o verbo é to shake; em francês, é frapper, digo-lhe eu. Querer que uma simples atendente de balcão saiba essas coisas é ranzinzice de velho. Mas quem cobra o que eles cobram por um reles sorvete deveria retribuir com um serviço à altura. Pelo menos uma balconista trilingüe. Não acha a senhora ?