“Tem só dois tipo de político: os ruim e os pió.”
Alvarenga e Ranchinho, a dupra que era uma navaia
"Todos são iguais perante a lei, como diz o general ao anão". Todos os circunstantes riram da minha frase de efeito, que, por sinal, está no inédito e já afamado Livro das Sínteses, sendo aquilo algo que a minha amiga Noca chamou de boutade, erguendo um cálice de kir, na calçada daquele bistrô que fica a duas quadras do apartamento dela, na Îlle de Saint Louis. Para sermos mais exatos, na Rue Poulletier, quase esquina da Rue Saint-Louis-en l’Ile, como, aliás, me havia informado o Chico Buarque, quando eu vagava meio perdido por aquela cidade que tem aquela enorme antena de rádio, como dizia o Garrincha.
Falávamos, já se vê, de democracia, isso de que o W. Bush e o irmão dele acham que entendem, aprendido, obviamente, com o pai deles, que fez preciosos contatos com os árabes quando chefiava a espionagem norte-americana e associou-se ao pai do Bin Laden, como sabemos todos. O qual, outrossim, morreu quando o avião em que viajava explodiu, enquanto sobrevoava o Texas, em circunstâncias que até hoje a polícia norte-americana não conseguiu esclarecer.
"E como é a democracia na Noruega ?" pergunta um dos tais circunstantes, talvez o Belisário, homem bom numa serenata e nessas coisas de justiça e cidadania. Pigarreio e passo à reclamada peroração.
A vida lá não é diferente da vida que temos cá, assim começo, meio solene. Nasce-se, cresce-se e morre-se. Aqui o corpo vai imediatamente para a sepultura. Ou para o crematório. Parece-me que o que queremos é nos livrar logo daquela companhia incômoda. Lá, o defunto vai para uma geladeira, à espera do momento propício para o enterro. Ou seja, pela volta do coveiro, se é verão, pois ele está na Espanha passando as férias com a família nas Islas Baleares. "Mas estamos no inverno !", exclamará alguém, pouco afeito aos hábitos locais dos noruegos. O homem da funerária explica pacientemente: "e você acha que o coveiro vai querer cavar aquele terreno congelado ?" Solução: o corpo do falecido vai para o depósito e, meses depois, quando as condições pessoais e climáticas forem favoráveis, os familiares serão disso avisados. "Diga lá: que diferença faz o cadáver estar guardado na sepultura ou numa gaveta de necrotério ?" diz-me o Berge Furre. Nada a responder.
Mas falávamos de política, lembra alguém da roda. Explico: não se fala de política sem conhecer a índole do povo a que nos referimos quando falamos dela. Foi o que aprendi numa viagem entre Oslo e Copenhague, cruzando os fjords e me empanturrando de queijos e caviares. Eu que já havia aprendido em Portugal, a duras penas e trançando pernas, a ir, no Porto, com o Silva Franco de uma destilaria a outra ("exp’rimente este !; agora est’outro !"), que não há apenas uma cor de vinho do Porto, mas um arco-íris deles, agora aprendo que também não há caviar de uma só cor, mas de várias. O sabor é sempre uma droga, mas que isso dá um status danado a quem come e depois conta aos amigos, isso lá dá.
Havia a meu lado no tal navio três rapazes conversando em italiano, coisa de suscitar a atenção de um surdo. Chamo de rapaz todo aquele que tem 50 anos ou menos de idade, esclareço desde já. O Oscar Niemeyer não chama de menino quem completa 80 anos ? Pois então. Cansado daquele inglês com sotaque local (Te vímen vent from te vór, dizia-me o Diedrik, grande economista escandinavo, com livros publicados e tudo o mais, explicando que as mulheres haviam já voltado da guerra, a pretexto de nada) não pude deixar de prestar atenção na conversa dos três italianos. Quando surgiu a palavra Berlusconi, não resisti e me ofereci para completar o quarteto. O tal italiano falava em como o grande líder patrício havia utilizado as suas empresas de televisão para influenciar o eleitorado. Para muitos italianos, só existe o que os canais de TV do homem quer que exista. "Já ouviu falar no Chatô ? no Roberto Marinho ? na Igreja Renascer ? no Edir Macedo ?" indago. "Io conosco il Cafu, il Kaká, il Adriano, ma questo Marino, questo Macedo ..."
O outro italiano falava agora de futebol e dos resultados arranjados das partidas. Tudo coisa do mesmo Berlusconi, segundo eles. "Vocês tiveram lá algum juiz que, antes de começar o jogo, levantava a imagem de Nossa Senhora no meio do gramado, depois dava um beijinho nela, persignava-se três vezes e em seguida, em lugar de dirigir a partida, dirigia o resultado ?". Eles se entreolham. "Ma questo brasiliano è pazzo ?"
O jogo de pôquer prosseguia e, a certa altura, baixei o meu straight flush. "Chi è questo Re d’oro ?" indaga um deles ao ver minhas cartas. É um amigo do Juca Kfouri e futuro presidente da FIFA, esclareço. Se vocês acham que já viram tudo em matéria de futebol, esperem pelo genro do Havelange.
A viagem prosseguia e o terceiro italiano, cujo sotaque eu já havia percebido, apresenta-se-me: Erik Petersen, ou coisa que o valha. Era norueguês e havia aprendido italiano apenas para ter o prazer de conversar com aqueles dois amigos, esclarece, gentil. Afasta da mesa as cartas e as fichas imaginárias e se põe a discorrer sobre a história da Noruega. Isto aqui era um fim de mundo tão desprezível que, em 1906, quando nós nos proclamamos libertos do domínio da Suécia, a que havíamos pertencido durante anos, como pagamento de indenização da guerra napoleônica, o governo sueco concluiu que não valia a pena brigar por este pedaço de gelo. "Ruim conosco, pior sem nosco" deve ter pensado o rei, diz o norueguês, num italiano horroroso, aqui traduzido por mim livremente.
"Vocês, no Brasil, dizem que o nordestino sofre porque a seca mata o capim que deveria alimentar o gado. Você tem idéia do que acontece com o capim norueguês durante os meses em que a neve cobre tudo por aqui ? Ou você acha que gado norueguês não tem fome no inverno ? Ou se alimenta de neve ? De brisa ?" O homem era bem informado, positivamente.
Vocês sabem por que o nosso bacalhau chegava a Portugal salgado e sem a cabeça ? É que não tínhamos navios frigoríficos e o peixe deveria ser biblicamente conservado com sal, ensina-me o loquaz escandinavo. E as cabeças nós as retínhamos para nós, como tempero de sopa de pedregulho.
Acho que a diferença entre nós, cá dos fjords, e vocês, que vivem do outro lado do mundo, seja no sul da Europa, seja na América do Sul, è molto percepitibile. Vocês acham que Deus fez o homem à sua imagem e que, portanto, enquanto o homem não chegar a ser Deus ele não deve sossegar. Nós, ao contrário, fizemos Odin à nossa imagem e semelhança. Reparem que ele não tem um dos olhos. Ele é tão imperfeito quanto nós. Os santos católicos parecem artistas de novela das oito. Dos rostos cinematográficos das santas então, melhor nem falar. Pois veja o nosso Trol, padroeiro das florestas e dos animais. É mais feio do que político nordestino. Nariz enorme, olhos esbugalhados e, de quebra, um rabo de ponta peluda. Dá pra perceber a diferença de conceitos ? Vocês acham que o ser humano pode atingir o absoluto. Nós nos contentamos com menos. O que faz os nossos processos judiciais terem apenas três recursos. Para que mais do que isso ? Tese, antítese e síntese. Fim.
Em lugar de falar sobre nossos políticos, continua ele, vou dizer apenas que seja aqui, seja na Itália ou no Brasil, a discussão entre políticos a respeito da desonestidade que uns atribuem a outros, parece briga propagandística entre Coca-Cola e Pepsi-Cola. Se você reparar bem, não há, a rigor, briga nenhuma: o que essa falsa propaganda quer é convencer o consumidor de que há apenas essas duas marcas de refrigerantes na praça. Política é isso.
Vou contar-lhes, diz-nos o Erik, nome que homenageia seu antepassado que descobriu a América 500 anos antes do Colombo, informação que os historiadores do lado de cá do Atlântico nos sonegam, vou contar-lhes uma fábula que encerra esta nossa desagradável conversa e mostra como nós lidamos com nossos políticos, feito do mesmo material dos seus.
Um empregado procurou o empresário norueguês para despedir-se, pois estava de partida para a Finlândia. Havia sido muito bem tratado durante todos aqueles anos que trabalhara naquela empresa e, por isso, queria retribuir a gentileza, dando ao agora quase ex-patrão uma informação importante. "O gerente da empresa desvia bens para ele" informou, solene. O patrão agradeceu a gentileza, contratou o melhor detetive de que dispunha a Escandinávia, o qual, depois de um trabalho meticuloso, entregou o relatório, dando conta da situação da empresa. Ela vinha crescendo nos últimos meses, coisa de 10% em média por mês. Mas era fato que o tal gerente embolsava parte desse lucro. Coisa aí duns 3% do lucro líquido mensal. O empresário terminou de ler o maçudo relatório, fez as contas, tomou um último trago de aquavitæ, foi até a lareira e atirou aquela papelada inútil nas chamas crepitantes. "Vale a pena mantê-lo no posto", murmurou de si para consigo.
E, sentencioso, encerrando nossa desagradável conversa: "o problema não está na corrupção; está no volume dela !"
Acaso ele estaria querendo dizer que a ética política é sempre relativa ?