"Quid est veritas ?"
(Pontius Pilatus)
Verdade e mentira são conceitos filosóficos, que a vida prática nem sempre confirma. Dizer que a verdade não dói é coisa em que nem quem diz acredita. Como na vez em que o professor Fernão Mendes de Almeida, precisamente irmão do velho Canuto (aquele para quem a diferença entre inquérito policial e ação penal é a mesma que existe entre uma lagartixa e um jacaré) se encontrava na casa de um de nossos colegas, seus alunos de Direito Administrativo. Entre bebericos (naquele tempo se falava em birinaites ou coisa que o valha) e petiscos, alguém começou a tocar piano e todos nós entoando algo próximo de uma música. "Qüim qüim qüerum goodnight qüerum, qüim, qüim qüerum goodnight qüerum. Ó Nicodemo ! O, hô, hô, hô ô Jalauba". Um dos presentes, indiscreto, informou que o professor sabia tocar piano. E ele, modesto: "Eu toco muito mal". E os alunos: "Toca ! Toca ! Toca!". Ele se fez de rogado durante algum tempo, como se deve, mas cedeu às nossas súplicas. Tocou alguma coisa e, quando terminou, após os convencionais aplausos, um de nós, talvez o Chicão, eterno moleque, até agora quando já é avô, sentenciou. "Toca mal mesmo !" Muito embora isso fosse apenas a confirmação do que o próprio pianista havia já anunciado, a cara enfezada do Fernão positivamente não correspondia às suas convicções a respeito de seu talento musical.
E cito outro caso envolvendo a verdade. Era no tempo em que havia carteiros. Sei que ainda há, mas com a comodidade do correio eletrônico, quem se dispõe a envelopar mensagem e ir até o posto do correio lamber selo e postá-la ? Esse passeio talvez seja feito apenas quando lá vamos buscar alguma mercadoria importada graças exatamente aos serviços da Internet e que enroscou na Delegacia da Receita Federal.
Nos filmes norte-americanos da época até se podiam ver uns iglusinhos no jardim, postados sobre um pedestal, com uma bandeirola, que era acionada pelo peso da carta, quando esta era deixada na caixa do correio, que era precisamente o tal iglu. Se a bandeirola estivesse de pé, o morador saberia que havia novidade postal. O que mostra o espírito prático do norte-americano: gastar tempo e energia para ir até a caixa do correio, tão longe, ver se havia mensagem ? nem pensar, já que se poderia ter a informação sem desperdício de fôlego. Eis a razão de ser da tal bandeirola.
Era isso, pelo menos, que eu supunha que ocorresse, se lá se era assim mesmo que a coisa funcionava.
No Brasil jamais adotamos aquele artifício, o que diz bem com o espírito de nossa gente. Se podemos complicar, para que simplificar ? Aliás, enquanto lá no país do norte havia a tradição de, "faça chuva ou faça sol, o carteiro sempre cumpre seu dever", cá no sul a fama era a inversa. Coisa mais fácil era justificar ausência a alguma cerimônia atribuindo ao notório mau funcionamento dos correios e telégrafos a culpa pelo não recebimento do convite. E houve o caso daquele brasileiro que, indo viver no Japão, criou a maior confusão porque tentou justificar a ausência com a velha história do não recebimento do convite pelo correio. Pois obrigaram-no a fazer a declaração por escrito, instauraram uma sindicância e apuraram que, muito pelo contrário, o convite havia sido entregue no dia tal a fulana de tal. Por sinal, a esposa do convidado, que teve de mentir dizendo que se havia esquecido de entregar o convite ao marido, cujo cargo justificava a mentira.
Pois o que eu queria contar era um caso real, envolvendo um carteiro brasileiro.
Ou porque não ganhasse o suficiente, ou porque estivesse desgostoso da vida, ou porque não tivesse – ironia das ironias – quem lhe escrevesse queixando-se de saudade, nosso personagem resolveu atirar o conteúdo do malote num terreno baldio, contando com a colaboração da chuva, que cobriria de lama aquele monte de envelopes, ou os levaria para o rio Pinheiros, como tantos outros objetos que por ali trafegam. Entre pneus e latas de plástico, quem repararia naqueles retângulos de papel boiando ?
Deu-se que um cidadão prestativo, desses chatos que deveria haver em maior número, dando com aquele monte de cartas, resolveu recolhê-las e levar ao posto do correio mais próximo. Cá, como lá, instaurou-se uma sindicância, que identificou o carteiro relapso, que foi demitido e processado criminalmente, como era de lei.
A juíza que julgou o caso era uma loira de meia idade, muito bem humorada, vizinha de sala do Homar Cais, acho que atualmente desembargadora, pois não a vi mais. Colega dos dois era o Sebastião, homem do interior, fumador de cigarrim de paia, espirituoso, de alto astral. Certa quinta-feira, ela informou ao Sebastião que na sexta-feira precisaria faltar ao expediente. Indagou se ele poderia cobri-la, como se diz em tais casos. E ele, malicioso, homem do interior, criador de gado, revirando os olhos: "Quem me dera !"
Pois tudo começou quando ela, durante uma festa, mostrou-se em dúvida atroz: não sabia se ficava alegre ou triste com o que havia ouvido a seu respeito. Diante da indagação dos circunstantes, ela esclareceu que, naquele dia, quando voltava do almoço para o fórum, ali na Paulista, um pedreiro, do alto do andaime, berrou a plenos pulmões: "eta coroa gostosa !" Sua dúvida: ela não sabia se ficava triste pelo coroa ou alegre pelo gostosa. Pois isso deu ensejo a que os presentes, descontraídos, também contassem casos curiosos. E lá pelas tantas, a roda que se formara e foi girando, voltou até a vez dela. E ela nos contou a história do tal carteiro e todos nós ali imaginando qual seria sua originalidade para merecer inclusão no rol de causos curiosos.
Disse ela que, quando interrogou o tal réu, ele prometeu dizer a verdade, toda a verdade, nada mais do que a verdade. O que demonstrava que ele era fã de filme norte-americano. E, de fato, narrou o fato em todos os seus pormenores, com a maior naturalidade, sem esconder nada, em sua linguagem de homem simples. E falou da sindicância, que acabou descobrindo tudo o que havia ocorrido. A essa altura o réu fez um silêncio, que se prolongou por vários segundos. Ela, toda espontânea, procurando incentivá-lo a prosseguir: "E aí, seu Manoel ?" E ele, com a mesma naturalidade: "Aí ? Aí fudeu, dona !"
A narrativa foi interrompida pelos muitos risos, pois algumas pessoas ali presentes jamais esperavam ouvir sair da boca de uma juíza tal expressão. E ela, naquele seu jeito peculiar, completou: "Pior foi ter de esclarecer a escrevente se ela deveria escrever o tal verbo com o ou com u".