Circus

Poliana

Poliana

22/6/2007

 

"Onrradês é uma palavra tão fora de moda que eu já nem mais sei como se escreve."

(Do Livro das Sínteses)

Conhece aquela menina que vai atravessando a rua, amparada num par de muletas ? Não parece, mas ela nasceu em 1913, sendo filha de Eleanor Hodgeman Porter, uma escritora norte-americana quase desconhecida por aqui. Ela, a filha, está passando férias no Brasil. Assim que chegou foi atropelada por uma bicicleta na avenida Brasil e quebrou a perna. Sua primeira providência quando se levantou do chão foi chamar um táxi, colocar o ciclista dentro dele, recomendando ao motorista que o enviasse ao melhor hospital do Rio de Janeiro, entregando a ele, adiantadamente, o preço presumido da corrida. Quanto ao passageiro, entregou-lhe o seu cartão de crédito para que com ele fosse paga a conta da hospitalização e depois lhe restituísse pelo correio, enviando-o para o hotel onde está hospedada. E pediu-lhe desculpas por estar sobre a calçada no fatídico momento em que ele ali trafegava em alta velocidade. Ainda bem que o ciclista sofreu só escoriações.

O gerente do hotel onde ela está hospedada ficou inconsolável. "A senhorita mal chega a nosso país e lhe acontece uma coisa dessas !" Poderia ter sido pior, disse ela. Imagine se eu quebrasse as duas pernas ! Ele, teimoso, insistiu: "Mas a senhorita vai ficar dois dias na cama !" E ela, no mesmo tom: "Eu bem que estava precisando de um descanso".

Ela, que é fã de esporte, veio ao Brasil para assistir aos jogos pan-americanos. E está encantada. Antes mesmo de eles começarem, ela foi informada de que os brasileiros já bateram um recorde mundial : nunca na história dos Jogos Pan-americanos a construção das dependências necessárias à hospedagem dos atletas e à realização das provas consumiu tanto dinheiro. Ela jamais havia imaginado que o Brasil fosse um país tão rico ! Segundo levantamento ainda não definitivo, os cálculos iniciais já foram quintuplicados. Essa medalha de ouro obtida no item "desperdício" tem muito mais valor quando sabemos que o Brasil não mais tem inflação e o dólar, moeda que serve de parâmetro para o julgamento dessas competições de despesas, está mais desvalorizado do que o Poder Judiciário brasileiro.

Ela também está encantada com a dedicação dos atletas brasileiros que se preparam para a dificílima competição. Tiro ao alvo, por exemplo, é um dos que têm mais adeptos. Ela ouve estampidos a todo instante seja quando passeia pelas prazerosas avenidas da cidade maravilhosa, seja quando está na varanda do hotel onde está hospedada a apreciar a paisagem, sem o ridículo colete à prova de balas que lhe entregaram na portaria do hotel, pois a cor dele não combina com nenhum dos seus vestidinhos de florzinhas. Nenhum membro de outras delegações vem treinando com tal afinco, pelo que ela tem conferido in loco.

Além disso, a julgar pelo número de garotos que treinam corrida nas areias das praias, de manhã, à tarde e até à noite, nem os etíopes serão páreo para aqueles meninos magrinhos que disparam a correr e não há adulto que consiga alcançá-los. "A prova da maratona é dos brasileiros. Ninguém tasca" diz ela, já usando o vocabulário que vem aprendendo em sua breve estadia em nosso país. Eles somem lá na frente e não voltam nem para receber as medalhas a que fazem jus. As autoridades encarregadas de entregá-las ficam ali paradas, olhando os civis para os militares e os militares para os civis e, depois de algumas horas, resolvem ir embora, até porque amanhã haverá mais treino. Que as crianças, ela tem certeza, ganharão outra vez. "Barbada", diz, entusiasmada.

Dizem pelo mundo afora que no Brasil nada funciona no serviço público. Mais uma mentira que ela está pronta para desmentir. Dizer que o Judiciário leva meses para publicar um mero despacho, que o Executivo até agora não implantou o Programa Fome Zero nem o PAC, que no Congresso Nacional um projeto de lei leva anos para ser aprovado deve ser mentira deslavada. Ainda agora ela acaba de ver algo que está indo para o Guinness Book: antes mesmo de terminar a investigação a respeito das irregularidades atribuídas a um membro do Senado Federal, o relator, homem independente, que só tem compromisso com sua esposa, a quem proclamou alto e bom som sua gratidão, pois a ela deve a vida (ao contrário de todos nós, míseros mortais, que devemos a vida a nossa mãe) já adiantou seu voto. "Com provas ou sem provas meu voto já está pronto", proclamou ele para o mundo. Em que país vocês já viram tamanha celeridade num julgamento ? Eis o que ela indagará de seus conterrâneos.

E o espírito prático dos brasileiros, aliado a seu bom humor, só pode dar num país extremamente feliz. Por motivos que nem as mais rigorosas investigações conseguem descobrir, os aviões não conseguem sair do solo no horário marcado. Em qualquer país que se diz civilizado as pessoas queimariam o aeroporto se isso ocorresse por lá. Na França, por muito menos, não queimaram automóveis nas ruas ? No Iraque não aparecem homem-bomba, mulher-bomba, vovó-bomba e criança-bomba ? Falta de imaginação ! "Paz e amor", gente, eis a solução que nossa Poliana, esse o nome da risonha moça manquitola, tem para levar para o mundo todo, pois pretende encetar uma série de palestras mostrando urbi et orbi, como diz ela, toda cultinha, o exemplo brasileiro, única alternativa para salvar o mundo até mesmo do deletério efeito estufa. Ela levará consigo, nesse périplo humanitário, a mais recente invenção do governo brasileiro. O kit "don't worry, be happy", coisa do Ministério do Turismo. Eis a idéia simples e prática, coisa para prêmio Nobel : um pequeno estojo, que está sendo distribuído gratuitamente quando se compra uma passagem de avião. Ele contém um comprimido de um diazepan genérico qualquer e um envelope com uma camisinha de vênus, aquilo que lá no país dela se chama condom. "What for ?" indagou ela ao ser assim presenteada com o oficial mimo. "Como o avião vai demorar para levantar vôo, a senhorita escolha alguém que lhe pareça simpático e carinhoso, vá para trás de um daqueles tabiques disponíveis ali no fundo do aeroporto e ponha em prática os sábios conselhos de nossa ministra de orientação turístico-sexual : relaxe (graças ao comprimido) e goze (porém em segurança)".

E pensar que sua mãe fica perdendo tempo escrevendo esses livros água-com-açúcar que não estão com nada. "Come here, mommy, and see with your own pretty blue eyes how marvelous, kind and industrious people is this" disse ela outro dia à sua mãe, valendo-se de uma ficha telefônica genérica, vendida numa tendinha da praça da Sé, bem em frente o Palácio da Justiça.

Aliás, dear mom, sabe o caso do tal senador a que me referi acima ? Veja o que é a má fé de certas pessoas, mesmo num país maravilhoso como este. O tal senador tem um lote de terreno na Lua. In the moon, maw. Lá ele tem uma plantação de árvores que produzem bois e vacas, que, na Lua, como sabe você, que é escritora, nascem em árvores. De tempos em tempos, o caseiro dele colhe os frutos maduros, encaixota e exporta para Marte e Vênus, enviando depois o dinheiro para a conta bancária do tal senador pela internet galáxica. Sabe que só por isso alguns idiotas, autênticos assholes, querem a cabeça do homem ? Pode, mommy ?

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Colunista

Adauto Suannes foi desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.