"Que é a arte? Por que o homem a cria? Poucas perguntas são capazes de provocar um debate tão caloroso e resultar em tão poucas respostas satisfatórias."
(H. W. Janson, Iniciação à História da Arte)
Eu seria a última pessoa a falar mal das artes visuais, pois estaria cuspindo na própria paleta. Menção honrosa no 50º Salão Paulista de Belas Artes, graças a um peixe de bronze que a Maria Helena acabou por me furtar, isso muito tempo antes de transformarmos nossa amizade em casamento, e uma petite medaille d’or numa exposição em Nice, ali no Sul da França, por conta de um Jesus crucificado vestido à Francisco de Assis, eu jamais terçaria pincéis com os admiradores da arte moderna, por exemplo. Nesse assunto eu sou mais Tarsila do Amaral do que Monteiro Lobato, mesmo porque o fato de alguma obra parecer mistificação ou expressão de paranóia não lhe retiraria o rótulo de "obra de arte", o que quer que isso signifique. Estão aí os borrões coloridíssimos daquele paranóico holandês que só conseguiu vender um quadro em toda sua vida, embora tivesse, em um acesso de loucura, pintado dez quadros em dez dias. E hoje os seus girassóis e céus dramáticos, com aquelas pinceladas tresloucadas, são disputados a peso de euro !
Diga com sinceridade: você colocaria sobre aquele elegante móvel da sala um solitário pneu de bicicleta, sem guidão nem selim, simplesmente porque ele trouxesse uma plaquinha com o nome de Marcel Duchamp, outro amalucado ? Ou penduraria na parede do hall o faltante selim de bicicleta, ao qual um tal de Pablo Picasso houvesse soldado o lá também ausente guidão ? Assim é a vida.
Mas tudo tem também o seu lado humorístico, como é de conhecimento comum.
Numa exposição realizada no Ibirapuera, estavam expostas obras notáveis de nossos maiores pintores e escultores, pois era uma retrospectiva da arte brasileira. As pinturas nas paredes e as esculturas distribuídas pelo assoalho, como é de todo óbvio. Eis que uma senhora, impressionada com um Portinari, foi-se afastando para poder vislumbrar melhor a brodosquiana obra, sempre de olho na atraente peça dependurada na parede fronteira. E acabou tropeçando nuns bichos metálicos da Lygia Clark. "Quem largou essa porcaria aqui ?" indagou ela furiosa aos circunstantes, ao levantar-se.
Nenhum de nós está imune a essas confusões, certamente. Falo de mim principalmente. Em pleno Museu do Prado eu percorria uns salões onde se realizava uma exposição de algo que alguns chamam de "arte conceitual", envolvendo artistas de vários países. Não sei bem como se diz isso em espanhol, mas lá estava o trabalho de um artista, cujo nome, tanto quanto o dos demais, vinha indicado numa pequena tabuleta em uma das paredes da sala. Era um monte de terra de pouco mais de meio metro de altura, tendo em torno, deixadas displicentemente, umas pedras brancas. Confesso que, sem algum guia para auxiliar-me, eu me limitei a olhar aquilo, sem ver a mensagem pretendida, se é que obra de arte tem, de fato, de conter alguma mensagem. Obra de arte é que nem namorada moça de amigo velho: se você elogia, ele te olha atravessado; se não elogia, ele se ofende.
Minha mulher só balançava a cabeça, lobatianamente, inimiga declarada desse tipo de expressão artística. "Melhor que isso eu faço", logo ela que.
Mais adiante havia uma corda muito grossa, desses camelos bíblicos que se usam para puxar navio. Pendurada no teto por quase invisíveis fios de náilon, ela subia e descia, dando voltas à direita e à esquerda, sugerindo-me o caminho percorrido por alguém, a desoras, do bar até sua casa. Um Vinicius de Moraes, por exemplo. Fui até a parede e lá estava o nome do artista e o título da obra. Escritos em japonês.
Havia nas demais obras ali expostas esse quê de insólito, que me foi cativando aos poucos. Se são artistas de lugares tão distantes uns dos outros, como podem eles expressar-se de maneira tão assemelhada ? Eu ainda não havia, naqueles idos tempos, me envolvido com os escritos junguianos e a palavra sincronicidade significava para mim o mesmo que nada.
Passado o susto inicial, fui tentando ver as obras, mais do que apenas olhá-las, lembrado de um dito do Pontes de Miranda, quando fala da interpretação das leis: "Se o exegeta não tiver um pouco de boa vontade, nenhuma lei é boa."
Pois foi com esse propósito que fui observando as demais obras daquela curiosa exposição. E eis que chego diante de uma que me cativou imensamente. Era uma escada de alumínio, muito nova, aberta e dirigida contra uma parede, na qual não havia absolutamente nada. Apenas sua imensa cor azul, um azul celeste, como o de uma tarde de inverno européia. Ela tinha três ou quatro degraus somente. No primeiro degrau havia uma caixa de madeira fechada, enquanto que no último havia um belo martelo de cabo negro emborrachado. Nessa ocasião, eu estava saindo de um desses momentos cruciais que por vezes nos derrubam, meio perdido quanto a meu futuro profissional. Aliás, aquela viagem havia sido programada "para espairecer", como nos aconselham os amigos nessas ocasiões em que parece que "estamos sobrando". E o psicoterapeuta, pragmaticamente nos adverte: "a única coisa chata dessa viagem é que você irá junto". Cretino !
E aquela escada era a síntese do meu estado emocional. Eu estava diante de um caminho que me levaria para onde ? Para um futuro de céu azul ? Mas faltava nesse céu alguma coisa que me atraísse e que eu não vislumbrava bem o que seria. A caixa fechada era, sem a menor dúvida, a famosa boceta de Pandora, a misteriosa caixa que nossa prudência aconselha a não ser aberta. Sabe-se lá que malefícios advirão dali ! E o martelo, que lembrava uma cruz, era o inevitável elemento que me esperava naquela caminhada. Como era mesmo o nome daquele curioso que o soldado romano convocou para ajudar a carregar a cruz na caminhada ao calvário ? Meu impulso foi abrir a caixa e guardar ali o martelo, o que meu psicoterapeuta certamente interpretaria como o propósito de fugir dos problemas, em lugar de encará-los. Vai-te, Gaudêncio ! Que eu carregasse minha cruz e ponto final !
Estava eu ali, a procurar na parede o nome da obra e do seu autor, quando surge um rapaz de macacão, abre a tal caixa e retira dali algum objeto, que depois vim a saber ser um prego, un clavo, como se diz por lá. Pega em seguida a minha simbólica cruz de cabo emborrachado, sobe na escada e enfia o prego na parede. Feito isso, pendura nele um cartaz que nos indica las prójimas exibiciones, desce da escada, pega a caixa, o martelo, dobra a escada, e leva para local ignoto toda aquela expressão do meu sofrimento.