"Bento XVI é de uma Igreja com muita liturgia, muito latim, muito incenso, muita piedade. Não é uma Igreja de engajamento na sociedade e no mundo, mas uma Igreja-fortaleza que se defende contra os riscos do mundo. É uma nostalgia de uma igreja que já não existe mais."
(Leonardo Boff)
Durante a visita de Bento XVI, a emissora de televisão convida um sacerdote de sotaque italiano para dar informações técnicas aos telespectadores. A certa altura, o tal locutor sai-se com esta: "O Episcopado brasileiro vem de condenar os jovens por ficarem, como eles denominam certas ligações íntimas sem compromisso algum. Considerando que a Igreja quer atrair os jovens, essa censura não veio em má hora ? " Com alguém servindo de bandeja uma bola dessas até eu faria a cesta que o tal padre fez: "Uma coisa é atrair o jovem; outra coisa, muito diversa, é trair o jovem." E deitou falação sobre a moral sexual tradicional, compromisso e responsabilidade. O locutor era um despreparado ou se fez de besta ? Ou desempenhou, conscientemente, o papel de escada para o sacerdote ?
Há em muitos de nós um deslumbramento com tudo que é moderno. Telefone celular e Internet, com suas mil e uma utilidades, são elevados a patamares excelsos. Como foi que conseguimos sobreviver sem isso ? Aquela calhordice de censurar a nudez, coisa mais retrô. "Está vendo essa moça nua na capa daquela revista ? É minha filha ! Está ganhando mais do que eu, graças àquele corpinho sarado dela." Antigamente isso se chamava prostituição, coisa que alguns até sustentam ser uma profissão como outra qualquer. A mãe dele, por exemplo, era e ele nunca se envergonhou disso. Aliás, reconheçamos que naqueles idos até se falava em baixo meretrício, que ficava ali na rua Itaboca e adjacências, aqui em São Paulo. O que nos permitia concluir que havia um alto meretrício, exercido nas chamadas garçonières, se não lhe falha a memória do teu avô. O problema, portanto, não estava no meretrício, mas no andar em que ele era exercitado. E por quem. "As mulheres hoje trabalham deitadas e descansam de pé", como disse certo boquirroto, desses que nos convidam a mudar de programa de televisão quando aparecem ? Que é ser moderno ? E, pior ainda, que é ser pós-moderno ?
Tanto o judaísmo como seu dileto filho, o cristianismo, são, como todas as verdadeiras religiões, eminentemente conservadoras. Não é a religião que deve adaptar-se ao mundo, mas o mundo que se deve adaptar às verdades dela, por isso que são eternas, no entender de seus líderes. Ou isso não seria uma religião. A dificuldade está em seus agentes nem sempre rezarem a célebre oração do Almirante Hart : "Senhor, dê-me força para mudar o que pode ser mudado; dê-me resignação para aceitar o que não deve ser mudado; e dê-me sabedoria para distinguir uma coisa de outra". O fato de o Papa atual vir ao Brasil utilizando-se de um meio de transporte moderno, como é o avião, já é, para alguns, a demonstração de que ele nada tem de inflexível. Fosse um fervoroso agostiniano, teologicamente falando, e teria vindo em lombo de burro. Ou a pé. Quais os padrões éticos a serem observados na modernidade e pós-modernidade ?
A escolha de um Papa já é em si mesmo algo misterioso. Em primeiro lugar, por que será que o Espírito Santo teima porque teima em escolher apenas cardeal europeu para ungi-lo Papa ? Ele, o tal Espírito deve ter lá os seus celestiais motivos, inacessíveis a nós mortais. Aliás, até outro dia, não bastava ser europeu: deveria ser italiano. Carrancudo como Giovanni Battista Enrico Antonio Maria Montini, ou bonachão como Angelo Giuseppe Roncalli, mas, sendo italiano, tutto bene. O segundo até falava em ecumenismo, um palavrão que os pósteros mandaram para o limbo, não fosse o limbo vir a ser mandado para a lata de lixo pelo Papa atual, com ecumenismo e tudo mais que havia lá dentro. Assim caminha a Humanidade.
Fosse lá por quais motivos fossem, o fato é que, seguindo à risca o roteiro do ex-seminarista Morris West, o Espírito Santo resolveu, a certa altura do campeonato, calçar as sandálias de pescador em pés que haviam nascido extra muros. Chega de oriundi. Um polaco ontem, um bávaro hoje e talvez um negro africano amanhã, ou, quem sabe ?, um mulato sul-americano no futuro distante. Sincretismo ? Tesconjuro !
Para as pessoas de fé católica, essa importação de craques estrangeiros não muda em nada o estilo de jogar da seleção do Vaticano, pois o técnico continua o mesmo. Ocorre que, se um italiano já mostrava alguma dificuldade em entender o que se passa nos ininteligíveis países da América latina, pesasse a ligação afetiva que nos une a nossos antepassados da península itálica, imagine-se um cardeal polonês, criado sob o dogma da absoluta incompatibilidade entre Marx e Jesus. "Quem não está comigo está contra mim", pouco importando que Karl Marx fosse, antes e acima de tudo, um humanista, tanto que inspirou algo chamado Teologia da Libertação. "E quem disse que o cristianismo deve ser humanista ? " Em outras palavras: enquanto a Igreja latino-americana dava mais atenção à cidade dos homens, a Igreja européia, agora mais do que nunca, dava mais atenção à cidade de Deus, para lembrarmos a dicotomia proposta por Santo Agostinho, que passeou pelas ruas de ambas. Seu filho bastardo Adeodato que o diga. "Misturar fé e política em nome da fé é privilégio meu" poderia dizer o cardeal Woytila, para desespero do bispo Pedro Casaldáliga.
E quando os alunos do mestre-escola Joseph Ratzinger resolveram pensar com a própria cabeça, tome reguada no alto do cocuruto. "E não me venham outra vez com uma composição infantil do tipo a Águia e a Galinha que eu expulso da classe. Brincadeira tem hora !" O cerebral Ratzinger tentar compreender o jeitinho sul-americano ? Mais fácil as águias do Leonardo Boff cacarejarem. Ou as galinhas dele voarem em bando harmonioso e elegante.
Quando o eleito Ratzinger resolveu homenagear São Bento, choveram especulações, nenhuma das quais acenando para algo próximo de uma diminuição da afinação de violino realizada pelo seu antecessor polonês. Muito pelo contrário, como bom músico, sabia o novo Papa que as pausas são importantíssimas para apreciarmos melhor os solos propriamente ditos. Além disso, há que dosar prudentemente a afinação dos instrumentos, pena de partirem-se mais cordas do que o necessário.
Aqui chegado, houve quem se surpreendesse com seu sorriso ao contatar a irreverente juventude brasileira. "Vocês não perdem por esperar" deve ter ele pensado, enquanto abençoava os que lhe foram dar as boas-vindas enfrentando o frio e a paulistana garoa. Allegro ma non troppo.
Infelizmente, não lhe permitiram conhecer o "vira de Jesus" do animador de auditórios Marcelo Rossi, para quem, segundo entrevista dada à Folha de S. Paulo, a diferença entre ele e Bento XVI é de cerca de 350.000 fiéis. De fato, comentando o número pífio de fiéis levados pelo concorrente, esnoba, modesto de Souza: "Aparecida poderia ter tido 500 mil pessoas e teve 150 mil." E aproveita para dar aos fiéis uma lição de humildade: "Eu estava à disposição. Se não quiseram, glória a Deus". O que apenas confirma que cada um de nós ou tem fé demais, ou fé de menos.
Que ficará neste hemisfério sul, de paisagem tão diferente da de sua fotogênica e impecável Bavária, depois que Sua Santidade voltou ao hemisfério norte ? A julgar pelo que sabemos do Brasil, este continuará a ser o maior país católico do mundo e também o mais pragmático. Houve já quem traduzisse o jeitinho brasileiro por brazilian by-pass, um modo de contornar obstáculos sem questionar a pertinência deles. Pois é essa atração pelo by-pass que explica o número ínfimo de católicos brasileiros que saiba dizer o nome da mais recente encíclica do Papa Bento XVI. Ou, pelo menos, o seu tema. Ou, pelo menos, o que seja uma encíclica, que longe está de ser meio de transporte, como supõe algum chefe de Estado desavisado. E também explica o número elevadíssimo de católicos que jamais a lerá. Ou o número de pessoas que continuará a ir à missa aos domingos e também ao centro espírita na quinta-feira. Ou a comungar mesmo recusando-se a utilizar o falibilíssimo método anticoncepcional oficial do Vaticano. Ou.
Agora que a visita foi embora, voltemos à nossa normalidade. O Papa fica com sua ortodoxia germânica absolutista e nós ficamos com o nosso relativismo pragmático, vulgo mais-ou-menos: mais ou menos religiosos, mais ou menos cristãos, mais ou menos católicos. E nossas cristãs autoridades continuarão mais ou menos éticas, mais ou menos honestas, mais ou menos confiáveis.
Fosse vivo o padre Charbonneau, que longe estava de ser um "padre de passeata", para relembrarmos Nélson Rodrigues, talvez repetisse aquilo que já havia dito há quase meio século, a respeito de si e de seus colegas: "Se, como é infelizmente o caso de nossa época, a moral evangélica parece evaporada, a condição de seu renascimento não residiria nessa redescoberta de suas raízes naturais ? Será que não quisemos, até agora, fazer cristãos onde não se tinha ainda conseguido fazer homens ? O resultado não é dos mais brilhantes: não temos mais nem homens nem cristãos".